Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
A VISÃO DE CRUFIX
Texto original
por Kelly Digges
Houve uma pausa.
Algumas vezes, seus convidados apenas não queriam ser perturbados. Outras vezes, ela requisitaria, pela porta ainda fechada, que a comida fosse deixada no corredor. E, ocasionalmente, ela convidaria seus acólitos e os envolveria em uma conversa, como se ela gostasse deles, como se ela quisesse estar ali.
“Entre,” disse a oráculo.
Diantha abriu a porta.
A oráculo de Crufix era uma linda mulher, com longos cabelos negros. Ela estava olhando pela janela, como costumava fazer, com os braços apoiados na estrutura. Dois outros braços, translúcidos, quase reais, oscilavam preguiçosamente ao seu lado. Crufix marcou bem seus oráculos, de tal forma que ninguém os confundiria, e nenhum tolo selvagem faria nenhum mal a eles.
A oráculo virou-se para ficar de frente a ela, e sorriu.
Diantha baixou a bandeja – carneiro, recém-saído do fogo, e uma variedade de vegetais grelhados, azeitonas frescas, e queijo. Crufix possuía poucos devotos e seu templo em Meletis era pequeno, mas eles não poupavam nada para a oráculo de seu deus.
“Saudações, oráculo.” disse Diantha. “Espero que esteja bem?”
“Bem o suficiente,” disse a oráculo. “Eu estava apenas pensando sobre o templo.”
“O templo, minha senhora?”
A oráculo sorriu.
“O templo de Crufix – seu verdadeiro templo – onde duas grandes árvores se erguem nos confins da terra.”
“Você…” Diantha hesitou. “Você fala como se você tivesse o visto, minha senhora.”
“Eu vi. Quando estava em perigo, Crufix espiritualmente me levou ao seu templo. Eu passei um tempo em sua companhia lá durante a revolta.”
Diantha se curvou.
“Essa é uma grande honra, aprender com o próprio Crufix.”
A oráculo deu um sorriso desvanecido.
“Aprendi,” ela disse. “Sim. Sim, pode-se dizer que fiz isso.”
Diantha quase se curvou, quase se virou, quase saiu da sala.
“Eu invejo você,” ela disse, ao invés disso.
“Ah é?” disse a oráculo.
“Sim, muito,” disse Diantha. “Eu sou uma sacerdotisa, e como tal eu tenho fé – fé na sabedoria de Crufix, fé em sua autoridade sobre os outros deuses.” Ela olhou para baixo em direção aos seus pés. “Mas eu não ouço sua voz, minha senhora, e eu nunca caminhei em sua presença. Há alguma…”
Diantha hesitou. Ela não deveria perguntar.
“Há alguma coisa que você pode me dizer? Sobre o que aprendeu?”
A oráculo se virou para encarar o exterior da janela novamente, olhos fixados no horizonte distante, e por um longo momento ela não disse nada.
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De sua elevação dentro dos grandes troncos do templo de Crufix, Quidele viu tudo acontecer. Ela se abraçou contra a madeira viva com suas mãos humanas, e contra o céu estrelado com seus dois braços translúcidos, membros imateriais que Crufix lhe deu quando ela acordou como sua oráculo.
E ela viu Heliode, que se autodenominava o maior de todos os deuses, arrancar a arma das mãos de Elspeth – a lâmina que ele havia consagrado para ela, tornando-a sua campeã.
Você se parece muito com o sátiro, o deus do sol havia dito. Teus olhos viram coisas que não posso compreender. E um campeão não pode saber mais que seu deus. Eu sou o soberano do panteão. Eu sou o maior dentre eles.
E então ele a matou, sua própria campeã, com sua própria arma.
A crise passou. O panteão estava seguro, e Nyx estava se recuperando da violência de Xenagos.
Quidele se sentia morta por dentro.
A maioria dos oráculos ouvem a voz de um deus alta e clara em sua mente, tinindo como um sino quando os pronunciamentos vêm e caem outra vez em silêncio. Pobre Daxos, oráculo de todos os deus e sem ser deus, ouvia todos eles falarem, o tempo todo. Um coro ensurdecedor de divindades. Mas com Crufix era diferente. Crufix falava em sua mente quase que constantemente, um sussurro de ladainhas de imagens e eventos pairando bem além de sua habilidade de ouvir, como o sol espreitando abaixo no horizonte.
Mas desde o ato de traição de Heliode, a voz de seu deus caiu em silêncio. Mesmo aqui, em seu templo com vista para a grande cascata que beira Nyx, ela não ouvia nada. Ela captava ocasionalmente lampejos de sua forma de sombra movendo-se pelas salas de seu templo, mas ele nunca falava.
Era difícil dizer quanto tempo se passou, aqui no limiar do mundo.
Quidele vagava pelo chão do templo, perdida em pensamentos, quando a voz familiar de seu deus ecoou ao seu redor.
Você está aflita.
Não era, atipicamente para o deus dos mistérios, uma pergunta.
Quidele se virou para ficar de frente com o estrelado contorno de quatro braços de Crufix no horizonte.
Crufix não disse nada, mas gesticulou para Quidele caminhar com ele. Enquanto ele se aproximava para caminhar ao lado dela, o deus encolheu, uma bizarra inversão de perspectiva, até eles possuírem a mesma altura.
“Foi uma coisa boa, o que aconteceu?” perguntou Quidele. Ela envolveu seus braços verdadeiros graciosamente à sua frente, mas seus braços transparentes balançavam-se inquietantemente. Eles não estavam inteiramente sobre seu controle.
Bom que Xenagos tenha se tornado um deus? Perguntou Crufix. Bom que Elspeth tenha o abatido? Bom que ela também pereceu?
Quidele deu de ombros impotente.
“A ordem está restaurada,” ela disse. “Tudo está certo em Theros e Nyx. Xenagos não ameaça mais o mundo, e os Nascidos de Nyx novamente servem e guiam os mortais como deveria ser.”
Crufix aguardou. Ele estava sempre aguardando.
“Então porque,” ela finalizou, “isso tudo parece tão errado?”
Você fala do maior mistério de todos. Da existência, e de seu propósito.
“A ascensão de Xenagos levanta questões preocupantes,” disse Quidele. “Sobre Nyx, e a natureza dos deuses. Os filósofos ensinam que os deuses são eternos, imutáveis. Mas se um deus pode nascer e morrer em um espaço de semanas, então o que podemos dizer sobre os outros?”
Isso, disse Crufix, não é nenhum mistério. É uma simples questão cuja resposta poucas pessoas realmente gostariam de ouvir.
“Eu gostaria de ouvi-la,” ela disse imediatamente.
Crufix a considerou por um longo momento antes de falar, inescrutável.
Os deuses são crenças que tomaram forma dentro do tecido de Nyx.
“Os deuses inspiram fé,” disse Quidele. “Certamente os deuses vieram primeiro.”
Eu sou o mais antigo, disse Crufix. Mas mesmo assim eu não precedo a fé mortal. A primeira vez que um mortal de Theros olhou acima para o céu noturno e disse ‘eu imagino…,’ uma parte de mim veio a existir. Eu sou o desconhecido, o irreconhecível. Eu sou o que jaz além do longínquo horizonte.
“Amor?” disse Quidele.
De fato. E muitos mais, que os mortais esqueceram. Ou você acha que Heliode sempre foi o deus do sol?
“Como pode ter havido outros deuses? Nós nos lembraríamos deles.”
Se você se lembrasse deles, disse Crufix, eles ainda existiriam. Assim que Heliode tomou seu lugar no panteão, ele se tornou o deus do sol – e sempre o foi. Mortais possuem memória curta sobre esses assuntos. Se eles tivessem memórias a longo prazo, Nyx iria romper-se ao meio com disputas e contradições.
Quatro braços espalharam-se amplamente em um gesto total de abrangente derrota.
Talvez eu não tenha sido realmente o primeiro, disse Crufix. Como eu saberia?
Quidele não disse nada por um longo tempo.
“Então os deuses são mais frágeis do que parecem,” ela disse. “E suas existências dependem dos mortais acreditando neles ou não?”
É o que parece.
“Por quê?”
Por que o tempo passa? perguntou Crufix. Por que a água flui ladeira abaixo? Estrelas deslocavam-se em seu manto, sugerindo um dar de ombros. Algumas coisas apenas são.
“Os filósofos em Meletis debatem tais coisas,” disse Quidele. “A causa do movimento, a natureza do tempo.”
Então deixe-os debaterem, disse Crufix, com uma severidade incomum. Se eles descobrirem as respostas, pode ser que as pessoas venham a reverenciá-los ao invés de nós.
“Você está dizendo que não sabe?”
Crufix virou seu capuz em direção a ela, e ela sentiu uma súbita onda de vertigem, a sensação de que ela não estava mais encarando um companheiro, mas debaixo, em um profundo abismo cheio de estrelas e escuridão.
Estou dizendo que se há uma razão – se existe um propósito por trás da natureza dos deuses – então eu desejo não saber.
“É seu dever saber,” disse Quidele. “É o seu propósito… não é?’
Ela nunca havia contradito Crufix tão diretamente. Muitos outros deuses não tolerariam tal imprudência, mesmo de um oráculo.
Crufix apenas suspirou, um som como a brisa noturna.
Eu sou o conhecedor de tudo que é conhecido sobre Theros, e de muito do que não é, ele disse fatigado. Porém eu aprendi coisas sobre nosso mundo. Sobre nossa segurança. Ele fez uma pausa. Te surpreende, que eu ainda seja capaz de aprender?
“Sim.”
Na verdade, ele fez muito mais do que surpreender Quidele. Ele a perturbou. Crufix é o deus dos mistérios. Ele sabe a resposta de cada questão, para assim ele poder decidir qual dessas repostas os mortais poderiam seguramente saber…ou assim ela pensava.
Deveria.
Ele não disse nada após isso.
“O que você aprendeu?” ela perguntou.
Você está certa que deseja saber?
“Estou.”
Se um oráculo de Crufix se esquivasse da verdade, o que restaria dele?
Não esteja, disse Crufix. Conhecimento é cruel. Irá quebrar seu coração e testar suas alianças. Você tem certeza que deseja essa maldição?
Mas Crufix era o deus dos horizontes, e algumas coisas eram feitas para não serem conhecidas. Não importando quão longe você viaje, sempre haverá outro horizonte.
Exceto aqui, no último horizonte.
“Sim,” ela disse. “Eu tenho certeza.”
Muito bem, disse Crufix.
Ele caminhou em silêncio, e ela esperou. Então, eles chegaram a beira do próprio mundo, onde o oceano retumbava nas profundezas de Nyx e o solo do templo de Crufix se estendia como um promontório em um mar de noite.
Crufix parou e observou Nyx.
Theros é apenas um de vários mundos. Você sabia disso?
“Acho que você não está falando de Nyx, ou do Submundo.”
Não. Há mundos inteiros fora daqui, além de Theros, além de Nyx. Mundos que você não pode ver quando olha para o céu, lugares onde os deuses de Theros não possuem influência. Mundos que você – e eu – nunca poderíamos visitar, com suas próprias civilizações, suas próprias histórias, até mesmo suas próprias leis da física.
“Seus próprios deuses?”
Novamente, a sensação de vertigem quando Crufix a olhou.
Não, ele disse. A palavra soou como um sino. Alguns, talvez, possuam deuses como nós. Mas como regra, não. Nós somos… um fenômeno local.
“E você apenas aprendeu isso recentemente?”
Crufix balançou o que parecia ser sua cabeça.
Não. Existem seres que podem caminhar entre esses mundos. O primeiro a pôr os pés em nosso mundo o fez há muito tempo. Eu sou o que sabe tudo que há pra saber neste mundo, e eu aprendi tudo o que ela aprendeu.
Quidele pensou por um momento sobre tudo o que ela ouviu e viu nas grandes árvores de Crufix.
“Elspeth era uma desses… viajantes de mundos, não é?”
Astuta, disse Crufix. Sim. Ela era. Mas não apenas ela. Assim como seu companheiro Ajani, o leonino que carregou seu corpo para fora de Nyx. Também a tritã – Kiora, que se auto proclamou Callaphe e ganhou a ira de Thassa.
E também, ele continuou, era Xenagos.
“Ele viajou para outros mundos onde não haviam outros deuses…e concluiu que ele poderia se tornar um?”
Quase, disse Crufix. Ele viajou para outros mundos onde não haviam deuses, e decidiu que todos em Theros deveriam saber que os deuses eram uma mentira.
“Não acho que ele foi bem-sucedido,” disse Quidele.
Não foi, disse Crufix. As pessoas viram o caos. Elas viram a destruição. Elas viram, em suma, um usurpador em um domínio que pertencia a outro, para todos os efeitos, indefinidamente estável. Talvez, se ele tivesse vivido para tomar seu lugar entre os do panteão, as pessoas poderiam se lembrar que lá não havia um deus da festança, e viriam a se questionar o que isso poderia significar sobre os outros deuses.
Crufix deu de ombros novamente.
Eu suspeito, contudo, que eles aprenderiam a adorá-lo, e esquecer suas origens mortais. Eles viriam a acreditar que ele esteve sempre lá, esperando pela veneração deles. Esse é o caminho das coisas. No final, ele não ameaçou nada.
“Então, não é ele o que te preocupa,” disse Quidele.
Crufix riu – realmente riu, um som vazio, ecoante.
Você vê uma grande questão, Minha Oráculo.
Ele cruzou suas mãos estreladas à frente.
Sim, eu estou preocupado, e não é pela ascensão de Xenagos, nem pela existência desses viajantes de mundos.
Estou preocupado com o que os preocupa.
Lá estava. A escura, borda irregular ao redor de onde eles estavam pisando nas pontas dos pés.
A tritã Kiora, disse Crufix, veio até aqui de um mundo cuja existência foi ameaçada por alguma coisa chamada Eldrazi. Eles são imensos e terríveis, iguais a qualquer deus. E eles devoram mundos, Minha Oráculo. Estripam a carne dos ossos da terra deixando uma carcaça morta, passando para o próximo.
O leonino Ajani enfrentou um inimigo imensamente poderoso, um terrível dragão viajante de mundos. Ele é incomensuravelmente antigo, até mesmo para mim. Ele busca poder infinito e uma vida imortal. Suas maquinações alcançam mundos e séculos, e ele não poupará nada nem ninguém que ficar em seu caminho.
Se qualquer uma dessas coisas virem até aqui, ao nosso mundo, ele disse, até mesmo os deuses podem ser impotentes para detê-los. E todas as nossas orações, todos os nossos apelos, cairão em orelhas surdas em um céu silente enquanto este mundo se destrói ou é refeito ou algo pior.
Uma a uma, as estrelas no manto de Crufix começaram a piscar e morrer, até restar apenas a escuridão.
Isso é o que eu temo, Minha Oráculo. Isso é o que perturba a mente de um deus. Theros é um peixinho nadando em uma profunda lagoa calma, sem se importar com suas profundezas, sem saber que alguma coisa maior subirá para devorá-lo em um instante.
Ele a encarou, quatro braços abertos, um borrão de escuridão em contraste contra o estrelado brilho de Nyx.
Então agora você sabe. O que fará com esse conhecimento?
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Diantha esperou.
“Não, criança,” disse a oráculo. “Não há nada. Absolutamente nada.”
Ela não disse mais nada, e Diantha tomou isso como uma dispensa. Ela se virou.
Atrás dela, a oráculo olhava para fora da janela, passando pela cidade, passando pelo horizonte, como se estivesse olhando para uma distância infinita.
Traduzido por: Magic the Gathering History
Revisado por: Blackanof
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