Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
TALRAND, INVOCADOR CELESTE
O enorme corpo do baloth convulsionou uma última vez nas mandíbulas de Kalyntri, seus olhos arregalados se alterando da fúria e do medo que marcaram os últimos momentos para a trêmula resignação da respiração e cautela. Assim que os olhos da besta se fecharam, Kalyntri fincou as presas no torso do baloth, as grossas placas ósseas se quebraram como varetas enquanto o belo sangue e carne iniciava sua passagem apressada pela garganta do dragão.
Kalyntri parou de comer para rugir seu triunfo ao céu e o ao mar. Ele queria que Talrand ouvisse, onde quer que o maldito tritão estivesse. As proclamações de Talrand tinham sido muito claras: todo o Kapsho agora era o reino de Talrand e todos os seus habitantes estavam sob o seu controle. As predações de Kalyntri terminaram, afirmou Talrand, e o dragão teria de se curvar fielmente, abandonar os mares de Kapsho ou morrer. O reino dele? Kalyntri provaria a medula dos ossos de Talrand!
O dragão olhou para os outros baloths ainda agrupados em um grande círculo, de costas uns para os outros. Eles eram predadores ferozes, acostumados a dominar, mas sabiam que não deveriam desafiar Kalyntri. A lei da superioridade era uma lei natural, seguida por aqueles no domínio de Kalyntri por centenas de anos. Seguida pela maioria, pelo menos. Os baloths saíram da clareira, recuando para as selvas de sua ilha natal. Kalyntri jogou o que restava da carcaça para o alto e abriu a boca para pegá-la, engolindo-a por inteira. Com a barriga finalmente cheia, levantou-se no ar, pronto mais uma vez para examinar seus domínios.
E também era um bom domínio. Kalyntri fora o governante natural desta parte dos mares de Kapsho por mais de trezentos anos. Flanqueado por grandes ilhas ao norte e ao sul, entre milhares de quilômetros quadrados de oceano e arquipélagos, o domínio formava áreas de caça perfeitas para o dragão voraz. Assentamentos humanos ocasionais se formariam nas ilhas, mas quando eles ficassem grandes demais, Kalyntri os destruiria. Os tritões também se ofenderam algumas vezes por Kalyntri caçar no oceano, mas eles desciam tão suavemente pela garganta do dragão quanto os outros alimentos do mar.
Talrand foi a primeira nota de discordância no que havia sido uma melodia harmoniosa de poder e alimento durante todos esses anos. Talrand apareceu pela primeira vez há um ano em uma das muitas cavernas das ilhas que Kalyntri usava como covil. Embora fosse um tritão, ele parecia igualmente confortável tanto no solo quanto nos mares. Ainda mais incomum era a evidente energia mágica que irradiava dele. Um mago, e um mago muito forte. O mais incomum, e mais ofensivo para Kalyntri, eram os servos dragonetes que se sentavam em cada ombro. Kalyntri ouvira as tagarelices do tritão alguns segundos antes de responder com uma rajada de fogo que encheu a caverna. Ele não esperava que o mago morresse tão facilmente, mas não havia nenhuma pilha de ossos carbonizados e cinzas à espera sugerindo que aquele assunto havia sido rapidamente resolvido. Talrand simplesmente sumiu, e o único problema – ele e seus dragonetes – permaneceu.
Dragões e dragonetes, os “pequenos dragões” sempre tiveram um relacionamento conflituoso. Os dragonetes temiam seus primos maiores e a óbvia superioridade dos dragões. Mas o que lhes faltava em poder eles possuíam em números. Para si e para o mundo exterior, eles eram conhecidos como dragonetes e estavam em toda parte. Catadores coniventes, eles caçavam em bandos, usando seus números para derrubar presas que não mereciam. Mas o pior para Kalyntri eram aqueles dragonetes que abdicavam de qualquer pretensão de liberdade, como aqueles que agora serviam ao oportunista Talrand.
Como Talrand convenceu os dragonetes a servi-lo? Certamente os pequenos, sempre com inveja do poder, estavam dispostos a servir aqueles que o tinham; o próprio Kalyntri teve alguns como lacaios ao longo dos anos. Mas os esforços e o alcance de Talrand sugeriam uma quantidade de apoio que era surpreendente para o dragão. Bem, não importa o quão poderoso o mago era, o reinado de Talrand chegaria a um final sangrento assim que sua cabeça fosse arrancada de seus ombros e comida como um lanche delicioso. Tudo o que Kalyntri tinha que fazer agora era encontrá-lo.
O dragão estava voando alto sobre os mares de Kapsho. Com as asas totalmente abertas, o sol brilhando nas escamas vermelhas metálicas da cabeça e das costas, Kalyntri sabia que ele era uma visão inspiradora. Um cometa vermelho entre os mares azuis e os céus. Ninguém se atrevia a confrontá-lo. Ninguém se atrevia por muito tempo. Talvez fosse bom que o ocasional estúpido e arrogante adversário tivesse pretensões. Fazia muito tempo desde que Kalyntri tivera a oportunidade de mostrar plenamente seu poder.
Perdido nesse pensamento, Kalyntri quase perdeu a solitária nuvem negra de tempestade à frente. Uma única pequena nuvem de escuridão em meio a um céu infinitamente azul. O ar tinha o cheiro picante de uma tempestade, passada recentemente. Quando Kalyntri voou para baixo, ele pôde ver um pequeno anel de ilhas pontilhando a água sob a nuvem. E lá, no meio das ilhas, sobre a água, estava um homem. Não, ele estava dentro d’água. E não era um homem, mas um tritão.
Bons deuses, Talrand era suicida? Ou simplesmente estúpido e delirante. Kalyntri nunca entendera como as raças menores pensavam. Ele voou baixo, ansioso, querendo não perder Talrand novamente como da primeira vez que se encontraram. Mas desta vez Talrand escolheu os mares abertos. Nenhum lugar para correr, nenhum lugar para se esconder. E se Talrand pensava que poderia nadar para longe… Kalyntri já tinha feito muitos petiscos saborosos de criaturas que achavam que os oceanos profundos eram um refúgio suficiente.
Talrand estava na água, pequenas bolhas constantemente se agitando no mar sob seus pés para mantê-lo no ar. Não havia dragonetes por perto, não que alguns deles tivessem feito alguma diferença. Kalyntri tinha visto muitos tritões durante seu longo reinado, e não havia nada de fisicamente notável em Talrand – nenhum sinal claro de que esse fosse um ser com pretensões de grandeza. Ele era apenas um pequeno boneco de carne com duas pernas, como os milhares de outros bonecos de carne que o dragão havia comido ou queimado ao longo dos anos. Exceto que a maioria dos bonecos de carne não tinham o poder mágico que Talrand parecia ter. Mas mesmo magias poderosas não eram páreo para um dragão enfurecido.
O idiota estava com uma mão levantada. Kalyntri estava se divertindo. Ele queria ouvir as últimas palavras deste boneco de carne. O dragão pairou a uma curta distância do mago de pele azul, suas narinas deliberadamente soltando nuvens de fumaça. Sinta o calor crescente, sinta sua morte iminente. Kalyntri ainda não havia decidido se iria comer ou incinerar Talrand. Ambos seriam imensamente satisfatórios. Talrand olhou para o dragão, e seu rosto não demonstrava medo, nenhuma sugestão sobre o destino cauterizante que o esperava. Kalyntri ficou impressionado com o poder de autoengano do mago.
“Eu não queria ter de matá-lo. Eu preferiria encontrar uma maneira de usá-lo produtivamente. Sua força e previsibilidade são seus principais recursos. Eu explorei muitos caminhos para mantê-lo vivo. Eu lamento que nenhum deles foi viável.” Enquanto Talrand falava, sua voz era calma e racional. Uma voz forte, obviamente usada para liderar. Mas era a voz de um homem louco. E logo será um morto. A raiva de Kalyntri crescia a cada sopro quente que atravessava suas narinas.
“Na verdade, enquanto eu examinava você e seu ambiente mais de perto, quase tive inveja. Você foi criado para atacar os mais fracos do que você. É uma vida simples e que você é muito bom nela. Infelizmente, eu fui feito para realizar atividades mais complexas. Aprendizagem. Análises. Compreensão. E assim que eu entendo como algo funciona – uma mágica, um sistema, uma cultura, o mundo – eu devo fazê-lo funcionar melhor. Como deixar de fazê-lo? Sim, às vezes eu queria ser apenas um predador.”
Kalyntri rugiu, uma onda incandescente de raiva que se transmutou em chama escaldante, um clarão luminoso que ferveu toda a água e o ar que tocou. Ele vai queimar! No entanto, Talrand já estava se movendo, correndo de lado na água, e um nevoeiro começou a se desenrolar de todas as direções. Kalyntri notou um estranho “eco” mágico quando Talrand convocou o nevoeiro, mas ele não prestou atenção enquanto avançava, perseguindo a figura melindrosa de Talrand. Gêiseres enormes irromperam da superfície do mar e formaram jatos que açoitaram as asas do dragão, tentando imobilizá-lo. Outro estranho eco ressoou na mente do dragão.
Kalyntri soltou-se de suas amarras aquosas e levantou-se para limpar o nevoeiro rasteiro. Mais alto no ar, ele pôde distinguir uma frágil figura humanoide envolta em névoa e investiu para atacar. Talrand olhou para cima para ver o dragão que se aproximava, e ventos e ondas surgiram para encontrá-lo. Eles apenas diminuiram a velocidade do dragão, que lançou uma chama brilhante de fogo apontada para a cabeça de Talrand. Nessa curta distância, o mago não tinha espaço para manobrar e uma explosão de água encontrou e por pouco não desviou a chama que se aproximava.
Kalyntri reduziu a velocidade e enviou sua grande cauda chicoteante ao redor da coluna de água, mais rápido do que se imaginava, colidindo com Talrand com uma batida aguda que fez o mago voar pela água. O dragão virou-se para a perseguição e viu quando a água saltou em inúmeros pequenos lugares para amortecer os golpes em Talrand e diminuir a velocidade mortal. Outro eco. Eu vou comer a cabeça dele! O dragão investiu para dentro de Talrand, e apenas uma parede de água fracamente invocada impediu o dragão de esmagar Talrand sem rodeios. O impacto do golpe fez com que Talrand se espalhasse pela água mais uma vez antes de saltar para a praia de uma das ilhas próximas.
Talrand caiu de costas, ensanguentado e lutando para se levantar. Kalyntri se aproximou e sorriu, tendo saboreado o pensamento deste dia durante todo o ano. Essa é a consequência de lutar contra o poder. O dragão bateu suas grandes asas lentamente, pairando sobre a figura surrada e vulnerável, e se preparou para descer e se banquetear. Talrand levantou a cabeça e falou, sua voz ainda soava estranhamente forte e confiante. “Eu tenho um presente para você, dragão. Eu te trouxe-” e aqui ele parou e olhou para cima, uma sombra passando por seu rosto como se algo estivesse entre o sol e seu corpo – “chuva”. Outro eco. Kalyntri virou o longo pescoço para olhar ao céu. Ele viu a nuvem de tempestade que originalmente marcava a localização de Talrand e, agora, gotas muito grandes de chuva estavam caindo dela. Ele virou para se livrar daquele tritão inútil, quando algo rasgou a membrana externa de sua asa esquerda.
Kalyntri gritou de dor. Ele olhou para cima e percebeu que não eram grandes gotas de chuva caindo do céu. Dragonetes. Os ecos. Eles estavam voando da nuvem acima, dezenas deles, muitos para contar. Todos miravam em Kalyntri. Outro dragonete mordeu sua orelha e voou quando o dragão tentou agarrá-lo em suas mandíbulas. Kalyntri soltou uma explosão de chamas, mas foi bravamente desviada pelos dragonentes que saíram de sua trajetória.
Os dragonetes estavam entrando e saindo, procurando pontos para arranhar e morder Kalyntri. A maior parte do dragão estava protegida por escamas grossas, mas nem todas. Logo, o ar ficou tão denso que Kalyntri não pôde deixar de rasgar ou triturar alguns, sem muito esforço. Mas para cada um ou dois que ele matava, outros dez sangrava o grande dragão. De repente, ocorreu a Kalyntri que ele estava perdendo a luta.
Seus olhos se arregalaram de medo, ele tentou se erguer, fugir. Os pequenos não podem me ultrapassar no céu. Um grande gêiser oceânico bateu em seu corpo e o esparramou na praia. Ele lutava para se levantar, mas estava falhando. Eu perdi muito sangue. E os dragonentes ainda estavam pululando, bicando, mordendo, mastigando. Ele tentou evocar mais chamas, mas o fogo já havia sido gasto. E lá estava Talrand, em pé, ainda ensanguentado e ferido, mas parecia calmo, confiante. Kalyntri queria desesperadamente comer seus ossos. O corpo do dragão continuou a se debater, embora com movimentos cada vez mais suaves.
O dragão viu um grande dragonete voar do oceano mais profundo para o lado de Talrand. Talrand coçou o queixo do dragonete, que fez pequenos roncos roucos. Então o dragonete olhou para o dragão e sua fome era inconfundível. Uma fome que o próprio dragão possuía, não muito tempo atrás. Ou era uma eternidade?
O dragonete olhou para Talrand e Talrand assentiu.
“Como eu prometi. Me servir significa o fim da tirania dos dragões. Ele é seu.” O dragonete galopou na direção do dragão. Ele olhou nos olhos arregalados de Kalyntri, tão recentemente marcados pela fúria e pelo medo, agora dando lugar à percepção de sua necessidade física, àquelas resignações trêmulas da respiração e cautela. O dragonete desapareceu da vista de Kalyntri e, em seguida, o dragão sentiu as mandíbulas afiadas em seu pescoço desprotegido, e as sentiu mastigar. Os olhos do dragão se fecharam.
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