RETORNO A RAVNICA: O SECRETISTA – PARTE UM

Título original em inglês: The Rough Crowd
The Secretist
Autor: Doug Beyer

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CAPÍTULO 04: A MULTIDÃO BARULHENTA

Enquanto estava parado em frente à porta, Jace sentiu uma rajada de ar quente vinda debaixo de si. Ele estava sobre uma grade de ferro na rua. Diante dele estava o notório clube noturno que procurava, onde todos os tipos de desejos estranhos podiam ser satisfeitos pelo Culto de Rakdos. Fumaças sulfurosas e chamas tremeluzentes se erguiam da grade abaixo, assim como os ecos de gargalhadas, risos escandalosos e rosnados inumanos. O sinal sobre a entrada exibia o nome do clube: A MULTIDÃO BARULHENTA.

Ele bateu.

Uma criatura abriu a metade superior da porta. O indivíduo era do tamanho de uma criança, mas com presas curtas e um crânio oblíquo. Ele usava uma coleira decorada com algo que pareciam dentes. Ele apoiou os antebraços pálidos no peitoril da porta e olhou Jace de cima a baixo, lambendo as presas. “Dor ou prazer?”

“Eu tenho negócios a tratar aqui.”

“Vamo lá, raio de sol,” a criatura disse. “Cê sabe que num tem opção. Quer se machucar? Ou quer ficar aí fora?”

“É um assunto urgente que envolve os cultistas de vocês.”

“Cai fora.”

O porteiro lançou-lhe um sorriso zombeteiro e bateu a porta na cara dele. Jace preparou um feitiço e bateu de novo.

A criatura abriu a porta novamente e suspirou. “Eu acho que te disse—“

“Seu turno acabou.”

Jace lançou seu feitiço e o porteiro caiu em um sono repentino e profundo antes de desabar no chão. Jace se inclinou sobre a porta e a abriu por dentro. Ao invés de pernas, a criatura tinha um monociclo enferrujado em sua metade inferior.

Jace entrou no clube Rakdos, se empurrando contra uma parede de odores e sons. O teto era surpreendentemente alto na parte de dentro, cheio de bandeiras e correntes espinhosas penduradas. Uma criatura diabólica assobiava conforme se balançava em uma corda alta enquanto um homem vestindo calças de couro engolia bolas de fogo e as cuspia de volta através de seus dentes horríveis. Dragonetes de escamas negras cheios de cicatrizes lutavam violentamente em celas que pendiam do teto, e o cheiro de suor e carne queimada vinha de aposentos adjacentes.

De pé contra a parede estava uma enorme sentinela, alguma coisa entre um homem roliço e um gigante compacto, vestida com o que parecia o traje colorido de um arlequim misturado com arame farpado. Era um ferroador Rakdos. Jace sabia que ferroadores eram ferozes em batalhas, principalmente porque não se importavam se estavam causando mais dano a si mesmos do que aos seus inimigos. O ferroador olhou Jace enquanto este entrava, apertando o cabo de uma maça com pontas de ferro do tamanho de um eixo de carrinho de mão.

Jace queria subir em uma mesa e desafiar o clube inteiro. Ele queria ameaçar todo mundo que visse, exigindo saber onde Emmara estava. Mas se acabasse sendo morto, nunca a encontraria. Jace tinha que encontrar uma forma de localizar aqueles que a capturaram. Ele não podia chegar e perguntar aos clientes do clube Rakdos se conheciam alguns sequestradores. Mas precisava agir antes que alguém notasse que havia deixado o porteiro inconsciente.

Por todos os lados, pessoas de todas as formas e tamanhos bebiam e dançavam e se divertiam. Ele não via ninguém que parecesse um líder Rakdos aqui – esses eram clientes e fregueses, aqui para satisfazer desejos devassos. Ali perto, uma mulher com língua de cobra sussurrou na orelha de um clérigo Orzhov. Um viashino participava com um goblin de uma competição de bebida – do sangue escorrendo do braço de um homem bem vestido. Jace passou por um vão coberto por uma cortina de miçangas, mas não olhou muito de perto para ver se eram miçangas mesmo ou outra coisa.

O aposento dos fundos estava cheio de pessoas de aparência mais dura iluminadas por tochas bruxuleantes. Guerreiros com chifres o encararam e diabretes sádicos riram. Gargalhadas e gritos emanavam em igual medida das alcovas privativas nos cantos da câmara. E através de fendas estreitas nas portas dos quartos, Jace podia ver de relance traços de carne reluzente. Havia uma pequena plataforma no meio do aposento, vazio naquele momento, mas manchado com sangue seco e escuro. Ele se sentiu ainda mais fora de lugar nesta câmara, como um ator pisando no palco sem saber suas falas – ou pior, sabendo que aquela atuação seria o fim de sua carreira.

Jace caminhou através da multidão lúgubre e deixou seus sentidos mágicos escorregarem para fora de si. Ele se concentrou em pensar em Emmara, tentando encontrar uma mente que tivesse qualquer tipo de conexão com ela.

Algo se prendeu em sua mente como um gancho. Alguém neste aposento tinha uma conexão de algum tipo com Jace. Ele não conseguia ver Emmara exatamente – mas era como se estivesse ouvindo ecos de uma voz familiar saltando de volta para si em farrapos de sua memória. Era tudo o que ele tinha para prosseguir. Jace caminhou em direção ao fundo da câmara por instinto, buscando a parede mais distante da saída, e a impressão de conexão se tornou mais forte. Havia uma mulher sentada sozinha à mesa. Ela usava vestes de couro escuro decoradas com ganchos farpados. Jace podia ver linhas verticais cortando seu rosto e passando por olhos da cor do fogo – se eram uma maquiagem ou cicatrizes, ele não sabia dizer. Ela sorriu perversamente enquanto Jace se aproximava.

“Parece perdido, docinho,” ela disse.

“Estou procurando alguém,” disse Jace. “Uma amiga minha. Uma elfa da guilda Selesnya. O que você sabe sobre isso?”

“Estamos todos procurando alguma coisa, querido. Olhe à sua volta. Todos os gostos podem ser satisfeitos aqui. Por que não para de procurar e se diverte um pouco?”

“Não estou com humor para brincar.”

“Que pena. Você está no lugar errado. Por que não vai embora e deixa a gente se divertir?”

Jace bateu com o punho na mesa. Ao mesmo tempo, enviou um lampejo com a imagem de Emmara para a mente da mulher. “Você viu ela, não viu?” ele intimou.

A mulher Rakdos piscou de surpresa, e então a surpresa se transformou em raiva. “Quem te deixou entrar aqui?”

Jace se abriu para a mente da mulher, deixando as emoções dela o inundarem, lendo a reação dela ao ver o rosto de Emmara. A mulher a reconhecera, isso estava claro. Por um curto momento, ele viu um lampejo da mulher liderando um grupo de guerreiros Rakdos para a Estalagem Torre de Pedra. Jace os viu invadir o edifício, assobiando e brandindo suas armas. Se ele tivesse um pouco mais de tempo, poderia olhar mais a fundo e descobrir mais, talvez até saber para onde levaram Emmara. Mas a mulher sentiu sua magia. Ela se levantou, derrubando a cadeira, e agarrou um cajado retorcido de trás da mesa. Seus olhos chamejaram e seus lábios se curvaram em algo como um sorriso. “Você está fora do seu lugar, garoto. Acha que pode exigir algo aqui? Sabe quem eu sou?”

Com isso, ela gritou, e o grito se transformou em uma risada insana e estridente. Todas as cabeças no clube se viraram para eles quando a cortina de miçangas se partiu e o enorme ferroador apareceu, pronto com sua maça.

“Estava esperando que você começasse alguma coisa,” grunhiu o ferroador.

Com isso, uma luz se acendeu iluminando a plataforma no centro da câmara. O guerreiro Rakdos gigante pegou Jace e o levou para a luz, onde artistas da guilda com aparência sombria rodearam o palco, apontando lanças e espadas denteadas para ele.

“Senhoras e senhores,” cantarolou a mulher de olhos de fogo, balançando seu cajado ao redor para todos os espectadores reunidos.

“Exava!” aplaudiu a multidão reunida de assassinos, cultistas e bêbados joviais.

“Gostaríamos de pedir sua atenção para o palco principal!”

Todos os olhos estavam em Jace. A multidão saudou o novo ato voluntário com um coro de palmas e copos erguidos. Exava foi na direção dele, controlando habilmente a multidão com sua voz estrondosa. Ela era uma bruxa sanguinária, Jace percebeu. Exava não era só uma atendente do bar ou mesmo líder de apenas um grupo da guilda. Ela era uma feiticeira de alta hierarquia do Culto de Rakdos.

“Nossa estrela é um jovem mago com sonhos de fama, que veio ao Multidão Barulhenta procurando sua grande chance!”

A audiência riu. Jace não gostou do jeito que ela disse “chance”.

“O que dizem, pessoal?” gritou a bruxa sanguinária Exava, gesticulando animadamente. “Devemos dar a ele o que espera por ele?”

Vieram palmas e assobios, incluindo algumas sugestões sinistras do que o ato de Jace deveria ser.

“Atravessa ele com a presa de um loxodonte!” Risadas.

“Faz ele comer os próprios pés!” Mais risadas.

No meio de todo o caos, Jace não conseguia se concentrar para examinar a mente de Exava em busca de informação. Ao invés disso, procurou saídas. Ele teria que pular para fora do anel de aberrações Rakdos ao seu redor, então chegar até a porta dos fundos, que no momento estava bloqueada pelo ferroador brutamontes. Ou podia tentar voltar pela cortina de miçangas, mas ela estava bloqueada por espectadores.

“Qual é o seu nome, garoto?” Exava perguntou.

“Pode ser Berrim,” ele disse.

“Pode ser Berrim,” ela imitou, recebendo mais aprovação do público.

Isso estava ficando feio. Jace tinha pouco tempo. Ele sabia que os Rakdos eram impulsivos e perigosos, e tão abruptos e imprevisíveis quanto crocodilos. Não adiantaria ser mais esperto do que eles. Ele precisava impulsioná-los.

“Bem, Pode-Ser-Berrim, é nossa tradição aqui no Multidão Barulhenta deixar a audiência escolher a natureza da performance da nossa estrela.”

“Vou poupá-los desse trabalho todo.”

Com um rodopio, Jace lançou ilusões de pirotecnia explodindo ao redor do palco enquanto colunas de fumaça ondulante encobriam Jace em uma névoa azul. Os guardas Rakdos em volta do palco avançaram para onde ele estivera. Suas mãos agarraram tornozelos, e eles puxaram uma figura para fora da fumaça.

Para a surpresa de todos, pareceu que a própria Exava emergiu da névoa, furiosa e chutando. Mas a ilusão de Jace é que lhe dera a forma de Exava. Ele chutou e ganiu, atuando e tentando parecer tão furioso quanto ela teria ficado se fosse pega pelos próprios lacaios. Ele apontou um dedo para onde Exava estivera e executou sua melhor imitação dela, berrando, “Matem ele!”

A luz se moveu para onde Exava estava, e a mulher fora trocada de lugar com a forma de Jace em sua capa azul.

Exava, com a aparência de Jace, caiu para trás quando seus guardas avançaram contra ela. Em meio a seus protestos, os guardas Rakdos a agarraram. Mas os guerreiros Rakdos enfurecidos não pararam aí.

“O show acabou mais cedo, homenzinho,” disse o ferroador enorme, e ele atravessou as tripas da bruxa sanguinária em um só golpe com a ponta de ferro de sua arma. Sangue jorrou da boca dela.

A multidão no Multidão Barulhenta aplaudiu vigorosamente, acreditando que o trapaceiro Jace fora o transpassado. Na nuvem fumacenta, as pessoas não perceberam que ele, disfarçado de Exava, ia em direção à porta dos fundos.

“Tenha certeza de ficar de olho nele,” ele disse ao guerreiro que portava um machado nas portas dos fundos, apontando o polegar para a ferida Exava. Então saiu dali.

Assim que estava do lado de fora, Jace desfez a ilusão sobre si mesmo. Ele esperava que ao fazer isso a ilusão que conjurara sobre a bruxa sanguinária duraria o suficiente para lhe dar um tempo para respirar. Então talvez ele conseguisse um momento para esquadrinhar a mente da bruxa sanguinária de novo, se ela ainda estivesse viva. Mas a parte de trás do Multidão Barulhenta se abriu com uma explosão, a arquitetura do clube totalmente incapaz de se opor ao frenesi e à sede de sangue de uma multidão enraivecida de cultistas Rakdos. Um grupo de diabretes alados rodearam Jace, uivando e convergindo para bloquear seu caminho.

“Onde exatamente você acha que está indo?” disse a bruxa sanguinária.

A ilusão fora quebrada, e Exava estava de volta à sua própria aparência novamente. Com uma mão, ela apertava um ferimento pulsante no estômago. Os outros cultistas fizeram um círculo ao redor dos dois, mas deram a ela um espaço amplo.

“Não faça isso. Tudo o que eu preciso é saber para onde eles a levaram,” disse Jace.

A bruxa sanguinária gargalhou com uma risada lenta e bamboleante que cresceu, respiração após respiração, até virar um cacarejo insano. “Garoto, você não aprendeu? Nunca diga não faça para uma garota Rakdos.”

Ela lançou uma inundação de magia de dor pelos dedos, atravessando a noite e atingindo Jace como garras de relâmpago. Jace caiu de joelhos, cada músculo do corpo preso na rigidez da dor, seus dentes pressionando uns contra os outros enquanto o feitiço de dor perfurava o seu corpo em todas as direções. Finalmente, a bruxa sanguinária cedeu e deixou o feitiço acabar. Jace desabou sobre suas mãos e joelhos, a cabeça flácida, o suor brilhante na testa. Fumaça arcana emanava de seu corpo.

Os saltos de Exava tilintaram nas pedras do pavimento conforme ela se aproximava. A respiração de Jace se acalmou. Alongando os músculos para se livrar da dor, ele se esforçou para colocar um pé no chão, e se empurrou para ficar de pé.

“Pare com isso agora,” ele disse. “Me diga onde ela está, e eu vou seguir meu caminho.”

“Ah, querido, não,” ela disse. “Você não pode ir embora sem isso.”

A maga Rakdos lançou outra onda de agonia que bateu contra Jace. Ele arqueou as costas e caiu de lado, batendo-se contra a rua. Enquanto o feitiço durava um momento e depois mais um momento, Jace forçou os pulmões a respirarem através da dor. Ele respirou ruidosamente entre os dentes, engolindo saliva.

O feitiço de Exava terminou, e Jace ofegou.

“Certo,” ele sussurrou. “Já chega. Estamos quites agora.”

Exava riu das palavras dele. “Quites? Chega? O que são essas palavras que você está dizendo, homenzinho? Estou começando a achar que essa é sua primeira festa Rakdos.”

Exava reuniu poder novamente. Ela criou uma jaula com seus dedos de unhas longas, fazendo gotejar sangue de seu próprio ferimento. Exava fechou as mãos uma sobre a outra, formando uma esfera de agonia que cintilou como o fogo em seus olhos. Os sapatos dela tilintaram para mais perto da forma prostrada de Jace. Finalmente, ela ergueu as mãos acima da própria cabeça e trouxe o feitiço abaixo como um martelo, mas a mão de Jace se ergueu como um chicote, e a esfera de dor congelou entre eles, parada no meio de sua trajetória, girando suspensa e sem peso no ar. Jace se desvirou e levantou, mantendo a mão direcionada ao feitiço Rakdos, os dedos em forma de garras para mantê-lo imóvel no espaço. Ele se ergueu totalmente, alongando seus músculos rígidos. Fechando um punho, Jace se se focou em sua contramágica, e o feitiço de dor evaporou.

Exava bufou zombeteiramente. Ela lançou uma chuva de ataques arcanos, cada um como um rojão feito de morte elétrica direcionado a Jace. Mas ele se moveu agilmente, contra-atacando cada feitiço com uma mágica de negação própria, e a plena força da malícia de Exava nunca chegou totalmente até Jace. Ele caminhou na direção do bombardeio dela, e ela deu alguns passos para trás conforme lançava mais feitiços, todos repelidos pela defesa hábil de Jace. Em um movimento rápido como um raio, ela lançou uma adaga de três lâminas, um ataque físico inesperado. A adaga girou pelo ar e atingiu a bochecha de Jace enquanto passava rapidamente por ele. Os outros cultistas Rakdos berraram de rir e rodearam os dois.

Jace contra-atacou a bruxa sanguinária com magia mental. Ele arremessou a própria consciência contra a dela, sem se segurar. Jace se tornou ela, se deixando ser absorvido por ela, compartilhou a mente dela e enxergou a partir dos sentidos de Exava. Ele sentiu o poder nela, a liberdade feroz independente de lei ou moral ou contenções.

Finalmente, Jace viu uma série de imagens, impressões sem palavras desconectadas do pensamento racional. Ele viu uma câmara úmida no submundo, acessada apenas através de um caminho retorcido por túneis iluminados por tochas. Era uma área reivindicada pelos Golgari, mas os Rakdos ocasionalmente faziam negócios escusos com outras guildas ali. Ele viu uma figura coberta por uma capa lá naquela câmara cheia de musgo, contratando Exava para procurar uma certa dignitária Selesnya. Ele a viu voltando ao Multidão Barulhenta, selecionando uma gangue de rufiões Rakdos e liderando-os à Torre de Pedra para pegar a elfa Selesnya. Jace viu Exava instruí-los a levá-la para a câmara no submundo. E ele a viu lembrá-los de que a elfa devia permanecer ilesa.

Obrigado, ele disse dentro da mente dela.

Jace separou as mentes deles, retornando a si mesmo. Os dois ficaram lá, um de cada lado, os peitos arfando com o esforço do duelo mágico, ainda em posições de batalha.

Como seu último esforço, Jace invocou a ilusão mais simples, porém com o maior alcance que conseguia: as vozes de oficiais Azorius.

“Pela ordem e autoridade do Senado Azorius, eu ordeno a todos vocês que parem,” veio a voz ribombante, tão forte quanto Jace podia projetá-la na mente de todos os guerreiros Rakdos. “Cessem todas as suas atividades imediatamente, e preparem-se para ser detidos em acordo com todas as leis e estatutos governantes.”

Não era muito, e ele tinha certeza de que estava usando as palavras legais erradas, mas foi o suficiente. Houve um momento de confusão enquanto os Rakdos giravam procurando pelos oficiais Azorius e silvando com sede de sangue. Jace empurrou para o lado alguns dos guerreiros Rakdos, se misturou com a noite e desapareceu.



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Traduzido por: Alysteran
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