Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

ORIGEM DE CHANDRA: A LÓGICA DO FOGO

Doug Beyer

Diretor de game design do time de construção de mundos de Magic: The Gathering. Escreveu dezenas de textos importantes, inclusive o Projeto Besouro Relâmpago.

Arte de Chase Stone

CIDADE DE GHIRAPUR, PLANO DE KALADESH

Chandra Nalaar, onze anos de idade, escalava em meio a uma chuva de faíscas. Um de seus pais, ou ambos, estava soldando algum lugar no eixo da mina que estava acima, e ela sorria quando os pequenos pedaços de fogo pulavam de seus cabelos avermelhados. Ela subia, uma mão por vez, pela rede de andaimes que se agarrava às paredes do túnel. Hoje era o dia, finalmente. Seus pais eram inventores, seus avós foram inventores, os antepassados da família de Chandra foram inventores. Hoje era o dia em que ela finalmente abraçaria o que sempre fora seu destino: tornar-se uma entregadora de cilindros.

Inventar nunca fora o seu ponto forte.

Não é que ela não apreciasse mecanismos. Seu mundo era cheio de invenções impressionantes, de maravilhas que estalavam, de vida artificial movida por engrenagens. É que de algum modo sua paciência acabava antes de seus projetos. E, de alguma maneira, às vezes, durante a fase de construção, seus punhos quase que invariavelmente acabavam colidindo com o rosto de alguém que merecia.

Era uma fraqueza pessoal. Ela aceitara.

Ela tentara outras vocações. Pensara em se tornar uma artista, e tivera um quarto cheio de pincéis quebrados e telas rasgadas para provar. Ela tentara se tornar uma acadêmica, até o dia em que foi enviada para casa com os punhos feridos e um bilhete do diretor. Ela nunca encontrara seu lugar em um mundo governado por regulamentos e cônsules. Mas hoje começaria sua verdadeira vocação.

Talvez Chandra nunca seria uma ferreira como seu pai ou uma inventora brilhante como sua mãe, mas em um mundo que funcionava com máquinas elegantes, ela poderia abastecer a fonte de energia – o místico Éter – daqueles que precisassem. O abastecimento de Éter era fortemente controlado pelo consulado, mas seus pais conheciam métodos de consegui-lo, e eles sempre ajudavam aqueles que precisavam de combustível para suas paixões inventivas.

Chandra subiu a grade da plataforma onde seu pai trabalhava em uma de suas próprias criações metálicas. Ele colocou seus óculos de lentes grossas em sua cabeça, deixando uma marca ao redor de seus olhos, semelhante a um máscara de guaxinim. “Chandra! Eu não te disse para ficar dentro da grade de segurança? Para quê eu construí aquela coisa?”

“Funciona melhor como uma escada,” disse Chandra. Ela abraçou sua cintura. “Então. Querido papai. Estou pronta para ir. Você sabe que estou pronta para ir? Eu estou te informando. Agora.”

Seu pai girou os olhos. “Eu não vou nem tentar incutir a virtude da paciência em você. Mas não é comigo que você tem que falar. Está com a sua mãe.”

Sua mãe desceu uma apertada escada espiralada, usando luvas pesadas e um xale bordado em sua cintura. Ela carregava um cilindro de metal com a cerimônia de um bolo de aniversário. “Sua primeira entrega! Oh, olhe para ela, Kiran! Ela está prestes a explodir. Aqui, filha, venha e me ajude a selar isto antes que o carregamento – ou você – exploda.”

A mãe de Chandra abaixou o cilindro. A tampa abriu e assoviou com um jato de vapor efervescente. Ao mesmo tempo, seu pai lhe disse uma palavra – “Cuidado” – Chandra pisou no cilindro com sua bota. A tampa amassou, mas parou de assoviar. Chandra sorriu.

“Eu já posso afirmar que você será a melhor transportadora que essa cidade já viu,” disse sua mãe com uma piscada.

Arte de Tyler Jacobson

Chandra ergueu seu queixo, como se fosse da realeza. “Por favor, preparem todas as minhas medalhas e troféus para quando eu retornar. Eu tentarei me lembrar de todos vocês quando eu for a fora-da-lei mais importante do mundo.”

“Nós preferimos ‘veículo de transformação,'” disse seu pai. “Mas isso é uma séria responsabilidade, Chandra. O consulado está patrulhando. Pessoas precisam do que nós fornecemos, mas se nós levarmos problemas, elas vão se virar contra nossa causa. Sua mãe e eu estamos procurando pessoas em que possamos confiar.”

Chandra colocou o cilindro em sua mochila e prendeu em suas costas. “E hoje, nós confiaremos na velha senhora que vive perto da Fundição.”

“Sra. Pashiri, sim,” disse seu pai.

“Ela sempre gostou de você,” disse sua mãe. “Lembre-se, ela saberá o sinal. Aqueles que sabem o sinal sabem quem nós somos de verdade.”

“Eu já sei quem eu sou de verdade – Chandra, a Maior Transportadora do Mundo.”

Sua mãe lhe deu um abraço desajeitado, batendo no cilindro em suas costas. “Nós acreditamos em você. Você conhece as ruas. Você conhece a cidade. Você fará tudo perfeitamente.”

“Certifique-se que ninguém esteja te seguindo quando voltar para cá,” acrescentou seu pai, mas Chandra já estava escalando.

O sol ofuscava seus olhos. A cidade de Ghirapur se movia como se fosse uma coisa viva, a arquitetura se adaptando às necessidades dos artesãos, topteristas, relojoeiros e dos outros inventores e artesãos que enxameavam sobre ela. Chandra se esforçava para atravessar a multidão, puxando uma túnica da escola com os dentes, o cilindro batendo contra suas costas.
Arte de Magali Villeneuve

A via estava bloqueada com tanta gente. Ela tomou uma decisão e deu uma guinada perpendicular em direção ao canal. Duas metades de uma ponte deslizaram para se encontrar com uma série de cliques metálicos, fundindo-se para se tornar uma extensão sobre o canal, e Chandra saltou sobre a abertura antes que ela se juntasse. Ela se esgueirou através dos portões de Akhara, uma enorme praça redonda rodeada de bancos enfileirados, pulou as engrenagens que giravam na calçada e o estrado elevado no centro, esquivando-se de um bando de eterologistas tagarelas.

Ela fez mais duas curvas fora de rota e parou em uma parede de barro cozido incrustada com mosaicos vibrantes que retratavam os grandes inventores. A superfície era pura e lisa, mas ela colocou a bota em um ponto acima do nariz de um inventor e subiu, descendo por um caminho pintado com listras.

Quando ela atingiu o solo, um grupo de soldados – de costas eretas e cabelos bem cortados – parou em seu caminho: forças do consulado. Eles usavam as padronizadas lâminas retráteis presas a seus antebraços, e um deles tinha um lançador de dardos carregado com éter.

“Para onde você vai, jovem?” perguntou um deles. “Essa é uma área restrita.” Ele notou o uniforme de Chandra, uma réplica dos que algumas crianças usavam no Instituto de Construtores. “Você não deveria estar na escola?”

“Eu estou com pressa,” disse Chandra. “E meu examinador vai me comer viva se eu me atrasar novamente, então, se me der licença…”

“Como eu tenho certeza que você sabe, senhorita, essa é uma área restrita,” disse um segundo soldado. A lâmina retrátil estalou para fora da bainha em seu antebraço, sua lâmina brilhando. “A via de pedestres está atrás, do outro lado do pátio.”

“E o sinal da escola já tocou,” disse o primeiro guarda. “Você tem certeza que é uma estudante?”

“Você não estaria transportando produtos ilegais, estaria?”

“Por favor, entregue a bolsa.”

Um calor irritadiço cruzou a testa de Chandra. Ela não podia se esquivar, e também não podia exatamente correr deles.

“Se eu ganhar mais uma advertência na escola eu estou acabada”, ela disse, mirando a lâmina brilhante do soldado até seus olhos. “Você não pode apenas me deixar passar?”

Um deles assentiu para o outro. “Traga o detector de Éter.”

Chandra tentou se esquivar daquele que a cercou, então correu para o outro lado, dando uma cotovelada no estômago de outro dos soldados. Ela se recuperou e esmurrou a clavícula do primeiro. Isso provavelmente foi uma má ideia, ela pensou um instante depois de ter feito. Essa era a lógica do punho.

Os soldados caíram sobre ela como uma armadilha. Suas mãos prenderam as dela em suas costas, assim ela só conseguia olhar para o chão. Ela chutou um deles na canela e tentou dar uma testada no peito de outro, mas não conseguiu se libertar. Uma onda de calor e fúria a inundou, e ela cerrou seus dentes.

Os soldados pararam. Outros pés se aproximaram.

“Capitão Baral,” disse um dos soldados.

Chandra mexeu seus pés e olhou para ele. Capitão Baral era um monólito em forma de homem, forte e escultural, com um rosto que parecia insultar aqueles ao redor por serem menos bonitos. Os outros soldados se mantinham em silêncio.

“Qual é o problema aqui?” ele perguntou, olhando para Chandra, mas não se dirigindo a ela, sua voz era um sussurro grave.

“Falta de cooperação, senhor. Uma possível matadora de aulas.”

“Nós a avisamos que essa não é uma passagem para pedestres.”

O Capitão Baral sorriu para ela. “Você tem que usar palavras pequenas com essas crianças de rua,” ele sussurrou. “Ordens simples. ‘Sente.’ ‘Fique.'”

As mãos de Chandra se fecharam em punhos. A raiva se espalhou rapidamente sobre ela, como uma caixa de fósforos acesa, incendiando todos os nervos do seu corpo. O calor se espalhou por seus braços, descendo para suas mãos, ainda aquecendo suas costas.

“Eu sei que você não é uma estudante.” disse Baral. “Deslize a mochila de suas costas e me entregue.”

“Não”

“Eu acho que você não entendeu, garota. Você já está infringindo a lei em uma meia dúzia de maneiras. Obedeça, ou eu vou te forçar.” Ele colocou sua mão no ombro de Chandra – gentilmente, mas sem qualquer delicadeza. Era um toque clínico, de alguma maneira revoltante pelo seu frio distanciamento.

Os músculos de Chandra se tensionaram e ela se afastou, emitindo um som através de seus dentes. Ela queria atacar, gritar, jogar sua fúria sobre ele.

E então aconteceu algo que nunca havia acontecido com ela antes. Suas mãos brilhavam por dentro, iluminando os ossos, os vasos sanguíneos e as linhas nas palmas das mãos. Crescendo em intensidade, o calor irrompeu por sua pele até que suas mãos foram engolidas pelo fogo como duas tochas. Chandra gritou em choque e ficou ali, deslumbrada, olhando as costas e as palmas de suas mãos, enquanto elas queimavam.

Arte de Eric Deschamps

Os soldados se afastaram em um semicírculo. Capitão Baral continuava parado, sua surpresa se tornando genuína curiosidade.

Chandra balançou suas mãos. Elas não sumiam. Ela pensou em esfregá-las contra si mesma, mas pensou melhor. Ela olhou para os homens, muito revoltada para falar, gesticulando com suas mãos flamejantes. Estranhamente, sua pele não estava queimando. As chamas envolviam suas mãos, mas não havia dor.

Baral colocou sua mão nela novamente. “Deixe-me ajudar com isso, garota.”

“Me larga!” Chandra instintivamente empurrou o agressor, criando um arco de fogo ardente no ar. Os homens se afastaram. O fogo evaporou, e por um instante, todos apenas piscaram.

Chandra começou a correr. Ela deslizou entre dois dos soldados, ambos fazendo uma meia-marcha inadequada para impedi-la, e ela se foi. Atrás dela, ouviu o sussurro grave de Baral se tornar um grunhido. “Eu quero turbilinos atrás dela. Agora.”

Chandra fez várias reviravoltas pelas ruas, deixando os soldados do consulado e um emaranhado de emoções desconcertantes para trás. Ela continuou olhando para suas mãos, mas, agora, não pareciam ser nada além de mãos. Não havia sinal da loucura autoimolante de momentos atrás. Não é que ela nunca houvesse visto magia antes; inventores regularmente construíam coisas que desafiavam a lógica, tornando-as ainda mais maravilhosas pelo poder do Éter. Mas conjurar fogo sem o uso de um dispositivo – isso era novidade para ela.

Arte de Lius Lasahido

Ela correu sobre uma ponte, de volta para sua casa, mas congelou no meio do caminho. Erguendo-se quase silenciosamente havia três roterotópteros voadores ornamentados, batendo o ar com seus rotores giratórios, cada um com uma grande lente olhando diretamente para ela.

Ela ainda tinha o cilindro. Ela não tinha certeza se ainda era elegível para o Prêmio de Melhor Transportadora do Mundo – se perguntou se haveria um prêmio para a Pior – e, mais que tudo, queria muito correr para casa. Mas isso levaria os turbilinos para lá, diretamente para sua família. Os espiões voadores reportariam as atividades de seus pais e ela tinha certeza de que o Capitão Baral iria procurá-los. Ela não tinha certeza sobre qual era a punição pelo tráfico de suprimentos de Éter, mas ouvira histórias de sentenças duras e dolorosas realizadas em Akhara, na frente de multidões de pessoas.

Os turbilinos mergulharam e giraram no ar em direção a ela, ficando logo atrás enquanto ela corria de volta pela ponte. Era difícil fugir a pé de algo que voava; os turbilinos se erguiam facilmente sobre os obstáculos que ela tinha que dar a volta e ela tinha que checar constantemente o que estava diretamente à sua frente. Ela se enfiou em becos estreitos e correu por dentro de lojas, mas os turbilinos giraram-se agilmente para encontrá-la assim que ela saiu do outro lado.

Arte de Svetlin Velinov

Ela se aproximou de um marco familiar: A Fundição do Consulado, a fábrica movida a Éter que produzia autômatos em massa para o consulado. Ela estava prestes a dar a volta e entrar na cidade, quando ouviu seu nome.

“Chandra?” Era a Sra. Pashiri, o contato de Chandra e uma amiga da família Nalaar. Ela estava saindo das portas principais da Fundição, com um molho de chaves em sua mão.

“Sra. Pashiri!” exclamou Chandra, sem fôlego.

“O que está havendo, querida? Nós não devíamos nos encontrar aqui.

“Eles estão atrás de mim,” disse Chandra, apontando por cima dos ombros dela, para os turbilinos que se aproximavam. Então hesitou, lembrando-se dos avisos de seus pais sobre em quem confiar e olhou para o molho de chaves da Fundição do Consulado. Por reflexo, seus punhos se apertaram.

Mas a Sra. Pashiri fez um círculo com o seu polegar e o dedo indicador, mantendo-o próximo à sua testa, como se ela estivesse levantando um par de óculos. Parecia com o sinal que os pais de Chandra haviam lhe mostrado. Quando a Sra. Pashiri fez o gesto, ela o fez com reverência, quase como uma saudação. “Os Nalaars e eu nos conhecemos há muito tempo, criança,” ela disse.

Chandra vacilou. Ela podia ouvir a chegada dos turbilinos. Ela queria confiar em seu contato, essa amiga da família que conhecia o gesto certo, mas o molho de chaves significava algum tipo de conexão com o consulado. As opções giravam ao seu redor.

Os olhos da Sra. Pashiri se estreitaram no momento em que ela olhou atrás de Chandra e viu os turbilinos. Ela se virou e destrancou a porta da Fundição novamente. “Entre aqui. Saia pelos fundos. Eu vou distraí-los.”

Era o último lugar em que Chandra escolheria para entrar. Enquanto ela se debatia, a Sra. Pashiri produziu um delicado pássaro de cobre de sua túnica. O pássaro ganhou vida, agitando suas asas entalhadas, e se lançou em direção aos turbilinos. O pássaro cúprico colidiu com um dos turbilinos e explodiu, lançando uma chuva de peças na rua.

“Entre,” disse a Sra. Pashiri com um aceno de cabeça, produzindo um pequeno morcego de filigrana prateada. “Os maquinistas ainda não estão aí dentro. Vá, querida. Vá para a segurança.”

Chandra correu para dentro enquanto a Senhora Pashiri começava a xingar os turbilinos.

Arte de Johann Bodin

O interior da Fundição era uma maquinaria silenciosa de natureza morta. Autômatos semimontados estavam imóveis, suspensos por seus torsos nas estações dos maquinistas. Pernas e garras em prateleiras, esperando por sua vez de serem rebitadas e se tornarem outro servo produzido em grande escala. As lâmpadas principais estavam apagadas e a única luz vinha de uma claraboia redonda de vidro na abóbada do teto. Um grande pilar, plantado no centro do lugar, subia até o topo da cúpula. Braços automáticos e manipuladores acionados por engrenagens estavam retraídos no pilar, como as asas de um pato.

Chandra rastejou entre as estações de montagem e as engrenagens filigranadas, procurando a outra saída. Ela ouviu outra pequena explosão do lado de fora, e as invenções da Sra. Pashiri desvanecerem ao longe. Chandra respirou fundo, agradecida pela distração.

Ela ouviu um som de tique acima. No teto, uma série de elegantes engrenagens girou, e a claraboia se abriu. Um inconfundível sussurro de rotores anunciou o último turbilino, que desceu pela claraboia e a encontrou com sua lente.

Uma série de lâmpadas laranjas cintilou no teto da fundição, cascateando à vida em um padrão espiralado. Os braços do pilar se agitaram, espalhando seus membros surpreendentemente longos e pinças semelhantes a garras. Por todo o chão da fundição, criaturas artefato se desprendiam de suas fixações e giravam suas cabeças em direção a ela sob a lúrida luz das lâmpadas.

Uma onda de calor inundou seu corpo. Suas mãos formigaram e começaram a brilhar.

“Não, obrigada,” ela disse para as mãos. “De novo não. Não, não, não.”

Ela empurrou uma pequena criatura artefato e deu uma cotovelada em outra para longe. Ela avistou a saída, mas uma enorme máquina de seis pernas entrou em seu caminho. Ela se virou para a entrada, mas aquele caminho parecia ainda pior. Autômatos surgiram do nada, caminhando ou se arrastando para ela.

Um constructo humanoide movido a engrenagens estendeu a mão na direção dela. Em vez de mãos, ele tinha algemas de metal, e elas alcançaram seus pulsos com suas garras de grilhões. Ela deu um soco, porque essa era a lógica do punho. Mas, em vez de atingi-lo, seu punho lançou uma rajada de fogo, repelindo o constructo e esmagando-o em pedaços chamuscados no chão. Outra criatura artefato rastejou para ela e ela também socou fogo, chama erupcionando dela no ponto de impacto. Suas mãos floresceram com fogo novamente. Eram máquinas lindas, e ela não controlava de maneira alguma sua habilidade com fogo, mas não havia tempo para parar e pensar. Ela se enfureceu com uma sequência de gritos e golpes, queimando seus intrincados agressores, um por um, enquanto eles a cercavam.

Arte de Daarken

Ela tentou abrir caminho até a saída dos fundos, mas a horda de servos da Fundição chegou rápido demais até ela, e a grande monstruosidade de seis pernas ainda estava de guarda na porta. O turbilino ainda teve a audácia de se abaixar, arrancar uma garra afiada e beliscar as costas dela.

Ela se virou e gritou com ele. De alguma forma, as lâminas do rotor pegaram fogo e se inclinaram, colidindo com o pilar e caindo no chão em uma pilha flamejante.

Chandra lembrou que ela ainda não tinha feito a entrega para a Sra. Pashiri. O cilindro de Éter ainda estava em suas costas. Quando ela se virou para o guardião da porta, uma péssima ideia lhe ocorreu.

“Vamos ver o que vocês podem fazer, mãos”, disse ela. Com os dedos ainda em chamas, ela pegou a mochila nas costas e jogou o cilindro nas portas traseiras. O cilindro rachou contra o guardião cheio de pernas que estava na porta e bateu no chão da Fundição, derrubando a tampa. Um jato de Éter assobiou do recipiente.

Chandra canalizou todo o seu fogo e fúria para o cilindro; ela não tinha tempo de se preocupar se era a coisa certa a fazer.

A escuridão do barraco subterrâneo era um conforto frio. Quando Chandra desceu as escadas, sua mãe apagou um ferro de solda e seu pai levantou seus óculos. Eles podiam ver a expressão no seu rosto e as bordas carbonizadas de sua túnica.

“Eu… eu tenho que dizer uma coisa,” disse Chandra.

Eles a abraçaram. “Você está machucada? Está queimada? O que aconteceu?”

“Estou bem,” ela disse, tremendo em seus braços. “Eu criei… criei fogo.”

“Você ateou fogo? Durante a entrega?”

“Não. Eu criei,” disse Chandra, desfazendo o abraço de seus pais. “Com minhas mãos. Eu encontrei alguns soldados do consulado e fiquei furiosa, e minhas mãos pegaram fogo.”

Os olhos de sua mãe se arregalaram. Ela agarrou as mãos de Chandra, e as girou de frente e de costas, examinando-as. “Você estava machucada? Alguém ficou ferido?”

“Espere,” disse seu pai. “Você encontrou forças do consulado?”

“Ninguém se machucou.” Chandra sentiu um peso, um cobertor encharcado de culpa, com a perspectiva de que alguém pudesse ter se machucado por causa dela. Seus ombros caíram. Um nódulo se formou em sua garganta. “Quer dizer, houve – eu causei – danos. Na Fundição.”

“A Fundição do Consulado?”

“A Sra. Pashiri me ajudou a entrar, mas eu tive que passar pela porta, e, talvez, eu tenha destruído ela.”

“Destruído a porta?”

“Destruído a Fundição.”

Seus pais se entreolharam. Suas bocas se abriram e fecharam como se estivessem tentando dizer algo, mas as palavras não saíam. Por fim, seu pai se virou para ela.

“Suas mãos pegaram fogo, sem um dispositivo? Espontaneamente?”

Os olhos de Chandra ameaçaram ir às lágrimas, mas ela as espalhou com seu pulso. “Sim.”

“E sua pele não se queimou?”

“Minha camiseta sim, em alguns lugares, aqui.”

“Você pode… me mostrar?”

“Eu não sei se eu posso fazer isso quando eu quero. Aconteceu quando eu não queria. O que há de errado comigo?”

“Chandra! Ah, Chandra.” Sua mãe a envolveu em seus braços, pressionando-a para que seu rosto se apertasse contra o seu pescoço.

“Eu sei,” Chandra murmurou. Ela queria alcançar sua mãe, mas manteve as mãos em sua cintura. Ela espremeu uma lágrima no xale bordado de sua mãe. “Eu sou… eu sou uma aberração.”

“Querida, você não é uma aberração,” disse sua mãe. Ela desfez o abraço e manteve as mãos nos ombros de Chandra, olhando em seu rosto, seus lábios pressionados. “Você é uma piromante.”

“Se é assim que você chama alguém com fósforos nas mãos, então eu sou.”

“Ouça-me,” disse sua mãe. Seus olhos estavam intensos. “Isso é um presente. Você tem algo especial, algo que não é visto há muitos anos.”

Chandra ouviu, mas as palavras não registraram nada em sua mente. Ela procurou nos olhos de sua mãe por alguma pista.

Eu não entendo.”

“Sua chama,” sua mãe disse. “É uma forma de magia. Um tipo especial. Mas é algo que os intimida. Se é algo que você pode fazer sem máquinas, sem a necessidade de Éter… você faz do seu jeito, entende? E eles odeiam isso.”

“Eles precisam que as pessoas precisem deles,” disse o seu pai. “E se você não precisar deles, você se torna uma ameaça.”

Chandra cerrou os punhos. Como duas pequenas mãos poderiam causar tantos problemas?

“Agora, Chandra, eu tenho que te perguntar. Alguém te seguiu até aqui?”

“Eu acho que explodi tudo o que poderia ter me seguido.” 

“E os soldados que você encontrou. Eles te identificaram?”

“Talvez. Eu não sei. Mas eu os despistei na arena. Pai?” 

“Sim?” 

“Eu nunca vou ser a Melhor Transportadora do Mundo, não é?”

Sua mãe apertou a mão contra os lábios, segurando as lágrimas.

Seu pai pegou as mãozinhas de Chandra. “Você é a Melhor Chandra do Mundo, minha Chandra. A melhor que qualquer mãe ou pai poderia pedir. Não importa o que aconteça.”

Chandra assentiu e seu pai a abraçou e sua mãe tocou sua mão. De alguma forma, ser ela mesma, ser apenas filha deles, significava muito para eles. Ela imaginou o que eles viam, o que significava ser a Melhor Chandra do Mundo.

A escuridão disse seu nome.

Chandra.

Chegou até ela como se tivesse sido murmurado através de melaço, inicialmente irreal. Sua consciência se apoderou dela e a arrastou.

Chandra.

A voz de sua mãe era suave, mas a mão em seu ombro era firme. “Chandra. Vamos, querida. É hora de acordar.”

Seu quarto estava escuro, iluminado apenas pelas lanternas de seus pais. Estranhamente a escuridão a acordou muito mais cedo do que a luz da manhã. A escuridão não se encaixava na rotina. Escuridão significava que algo estava errado, ainda mais errado do que ontem.

Mochilas. Cintos de ferramentas. Braçadeiras de posses.

“O quê? Onde estamos indo?”

“Pegue uma bolsa e siga seu pai.”

“O que está acontecendo?”

Sua mãe colocou uma mochila nos braços de Chandra. Eles subiram as escadas até a pesada porta segmentada que formava a entrada de sua casa. Seu pai fechou a porta e sua mãe a soldou com um ferro. Eles saíram na noite, sua casa em suas mãos, escondidos entre as sombras. Eles não falaram, e Chandra não fez perguntas enquanto subiam na traseira de uma carroça e colocavam um cobertor sobre si mesmos.

Arte de Dan Scott

As aldeias não tinham nomes. Estradas de terra substituíram os pátios móveis de mosaico de Ghirapur. Os telhados de palha substituíram as torres giratórias. Trabalhadores de campo curvados substituíram retratos inspiradores dos heróis-inventores. Um simples vestido e sandálias substituíram a túnica e as botas de Chandra. Até mesmo sua identidade foi substituída, pois seus pais lhe disseram para apresentar a si mesma e a eles com nomes falsos. Eles lhe deram um lenço azul-marinho para usar sobre o cabelo ruivo, um lenço que ela prontamente perdeu.

Eles aprenderam a não desfazer as malas. Chandra e seus pais ficavam apenas alguns dias seguidos, às vezes partindo para a próxima aldeia depois de apenas algumas horas de sono.

“Quanto tempo vamos ficar aqui?” Chandra perguntou quando chegaram de carroça em uma nova aldeia.

“Não muito tempo,” disse seu pai. “Por enquanto, nossa casa é a estrada. Eu te aconselho a se acostumar com isso.”

“Estamos nos divertindo?” Chandra perguntou, meio brincando.

“É uma aventura, sim,” disse seu pai em voz baixa. 

Sempre que sua família passava por uma elevação, Chandra olhava de volta para a cidade, comparando a distância até a última vez em que ela podia ver o horizonte. Cada vez que ela olhava, as estruturas vivas empalideciam, os pináculos afiados e os brilhantes domos de cobre da cidade eram engolidos pelas amplas formas da cordilheira ao redor. Ela examinava o rosto do seu pai nessas horas, procurando por algum tipo de confirmação de que isso não era difícil para ele, que não esmagava seu espírito estar longe de sua pequena forja e seus projetos. Ela estava se adaptando a este tempo na estrada, até mesmo gostando, mas acreditava em seu coração que esta jornada era toda por causa dela, por causa da confusão que ela causara.

Ela passava os dias vagando pelas aldeias e bosques circundantes, perseguindo pássaros em seus ninhos e explorando os caminhos elevados de galhos entrelaçados de árvores. Os aldeões tinham sorrisos em seus rostos, eles acenavam para ela e a deixavam em paz. Sua mãe disse que as regras eram apenas palavras usadas por pessoas que queriam algo, e essas pessoas não queriam nada dela, então ela se afundou em liberdade. Ela colhia sementes, frutas pesadas e outros presentes da floresta, e os deixava na porta da vila. Às vezes ela pensava em sua chama, mas não a procurava e ela não se mostrava. Ela pensava em seu poder como um dos seus dispositivos descartados em Ghirapur – inacabado, não-manuseado e abandonado.

Em um dia brilhante, quando ela não pensara em nada sobre fogo e quase nada sobre soldados, encontrou um tesouro nas árvores. Um enorme chifre ondulado sobressaía entre dois galhos pesados. Curvava-se em uma forma sinuosa, com estrias que mantinham bem a pintura – um belo presente para alguém na aldeia. Ela subiu para o prêmio e libertou-o, deixando o chifre cair na terra.

Quando ela pulou para o chão, uma manada de bestas peludas a surpreendeu. Os chifres deles combinavam com o que ela havia encontrado – ela estava claramente no território deles. Seus lábios se retraíram, revelando presas destinadas a rasgar carne. Eles berraram em seu rosto.

Ela gritou no rosto deles.

Sua chama veio prontamente, sem pensar, tão natural quanto o impulso de correr. Ela esculpiu punhados de fogo enquanto corria, colocando as mãos em concha como se estivesse pegando argila do ar, roçando os rostos dos animais com ela e cortando seus caminhos. Ela lançou fogo sem hesitação, sem queimar as mangas, sem se esforçar. Desta vez não houve negociação com a chama. Ela precisou e ela veio.

Arte de Victor Adame Minguez

As feras se dispersaram apenas com as peles chamuscadas ou queimaduras superficiais, deixando Chandra sozinha com a respiração pesada e o brilho em suas bochechas. Ela encontrou uma trilha e caminhou de volta para a aldeia, juntando as mãos com um sorriso secreto no rosto. Ela não contou a seus pais que quase foi esfolada até a morte por um rebanho de criaturas da floresta, mas eles pontuaram que ela mal comera no jantar. Ela não podia, não com a excitação fazendo pequenas explosões em seu estômago.

Naquela noite ela se mexeu e se virou na cama, incapaz de dormir. Passou um dedo pelas linhas da palma de uma mão, sentindo os contornos dos ossos, depois trocou as mãos e traçou linhas na outra. Havia algo nela que ninguém mais compartilhava, algo que a deixava sem fôlego, algo que pintar natureza morta ou entregar cilindros nunca faria. Ficou acordada por horas, imaginando uma mariposa esvoaçando dentro de seu peito – uma mariposa feita de fogo, que queimava mas não que se consumia.

Uma vela num invólucro de filigrana projetava sombras elaboradas em volta das paredes do escritório do Capitão Baral. Uma mensageira de uniforme entrou, tocando seu punho no peito em saudação. Capitão Baral levantou os olhos de sua mesa. 

“Relatório, soldado,” disse o Capitão em sua baixa rouquidão. 

“Temos notícias de um dos nossos batedores, Senhor,” disse a mensageira. 

“Eles a viram?” 

“Todos os três. Os Nalaars fugiram da cidade.” 

“Você tem uma localização?” 

“Apenas uma aproximada. Eles estão se escondendo nos arredores, mudando de aldeia em aldeia. Os turbilinos os viram uma ou duas vezes. 

A boca do Capitão Baral se torceu. “Volte para mim quando tiver detalhes. Você está liberado.” 

“Mas… senhor? Há outra coisa.”

O Capitão Baral apenas levantou as sobrancelhas para ela. Ela colocou uma missiva marcada com um carimbo oficial na mesa. “Senhor, o Consulado recomenda que paremos a busca. A missiva afirma que estamos gastando grandes quantidades de Éter para rastrear os Nalaars. Senhor, nós certamente os apreenderemos se eles tentarem retornar a Ghirapur. O Consulado simplesmente não considera que eles valem os recursos para persegui-los.”

“Não se trata de um casal de fugitivos, soldado,” disse o Capitão, sem levantar a voz acima de um sussurro. “É sobre o futuro. Precisamos mostrar às pessoas desta cidade que estamos preparados para ir além da era bárbara do passado, para abraçar o progresso. A garota é um remanescente de um tempo caótico. Um obstáculo. Se vamos seguir em frente, precisamos que nosso caminho seja limpo. O Consulado entenderá isso.”

“Sim, Senhor,” disse a mensageira. “Nós vamos encontrá-los.”

“Bom. Eu quero uma aeronau e um destacamento de soldados prontos.”

A mensageira hesitou. “Senhor? Estaremos preparados para uma luta, caso os encontremos? A magia de fogo da garota – é poderosa.”

“Não temos nada a temer dela, pois somos membros de uma sociedade iluminada de construtores e criadores.” Baral pegou a gaiola de filigrana em sua mesa que continha uma pequena vela e abriu uma pequena porta. A sombra de sua mão apareceu nas paredes. Baral não tocou a chama, apenas segurou sua mão perto dela. A chama diminuiu e sumiu, deixando uma linha sinuosa de fumaça. “Nós sabemos que o fogo nunca cria – ele só destrói. Em última análise, ele não trará nada além de ruína para quem o manipula.”

“Você queria me ver?” – perguntou Chandra, entrando na modesta residência em sua última aldeia.

“Entre,” disse seu pai, batendo em um banco de madeira. “Sente-se.” 

Chandra limpou a poeira da túnica em vez de se sentar. “Espere. Essa é a conversa ‘Nós temos que ter uma conversa séria sobre o seu comportamento, mocinha’? Ou é ‘eu quero que você saiba que eu sempre estarei lá por você, querida filha’? Eu não sei diferenciar. 

“Sempre a última. Hoje, um pouco da primeira também. Sente-se.” 

Chandra sentou-se. “Isso é ‘descobrimos que você colocou fogo em algumas coisas, e isso é ruim?'” 

“Usar seu talento nunca é ruim”, disse seu pai. “É o que é especial sobre você, e isso sempre será uma coisa boa. É só que… nem todo mundo vê dessa maneira.”

“Isso é sobre as bestas? Quem contou?”  

“É que algumas das pessoas nesta aldeia – dependem dos animais da floresta para sobreviver. Eles estão ajudando a nos esconder, porque eles não se dão bem com o Consulado.” 

“As forças do Consulado. Eles estão atrás de nós.” 

“Está certo. As pessoas aqui estão se voluntariando para nos manter seguros. Então, enquanto estivermos aqui, somos seus convidados. Temos que jogar de acordo com as regras deles.”

 “Mãe diz que não há regras aqui.” 

“Eu não tenho certeza se você está entendendo o que ela quer dizer. Nós devemos muito aos nossos anfitriões por sua generosidade. Devemos usar nossos dons de maneiras que não interfiram em suas vidas.”

“É fogo. Qual é o sentido de dizer que é bom se for contra as regras de todos?”

“Você só precisa ter mais cuidado. Eu tenho algo para você, algo que deve ajudar.” Seu pai lhe entregou um pequeno mecanismo. Era uma caixa de metal finamente gravada com aberturas de um lado. Tinha uma alça de ombro e um cabo flexível que levava a ela. 

Chandra virou em suas mãos. “O que é isso?” 

“É chamado de exaustor. É baseado em uma antiga invenção de muito tempo atrás. Sua mãe e eu fizemos isso para você.” 

“Devo agradecer com dúvida? Porque é assim que eu me sinto.” 

“Experimente.” 

Chandra se levantou e colocou a alça por cima do ombro. O exaustor se acomodou em suas costas. Seu pai tocou a ponta solta do cabo até um local de pele exposta, perto da omoplata e ele se aderiu à sua pele. 

“O que isso faz? É pesado.” Ela se virou para olhá-lo. O metal era frio através de sua camisa. E no local onde o cabo encontrava sua pele, ela sentia uma leve carga elétrica. 

Seu pai colocou a mão no queixo e a olhou. “Agora algumas más notícias. Temo que você não possa voltar para a floresta novamente. Nunca mais.” 

Chandra se virou para ele. “O quê? Por quê?”

O exaustor assoviou, expelindo uma quantidade de vapor.

“Teste bem sucedido”, disse seu pai.

Chandra estreitou os olhos. “A dúvida se tornou total desconfiança, querido pai.” 

“Eu sinto muito. O exaustor converte o excesso de energia em vapor. O projeto é geralmente usado para descarregar com segurança o excesso de energia em outros coletores de Éter. No seu caso, seu temperamento é uma fonte de energia. Alimenta o seu talento. E isso ajudará você a controlá-lo.” 

Chandra franziu a testa. “Então, quando eu usar isso, não vou conseguir produzir fogo?” 

“Deve amortecer o seu dom para que ele só se manifeste de uma forma mais segura. Não vai sair quando você não quiser. E você vai usá-lo o tempo todo agora.” 

O exaustor assobiou. Ela pensou na imagem da mariposa flamejante, mas agora imaginou que ela estava dentro do exaustor, sufocando e dissipando-se em fumaça. Talvez a magia de fogo fosse algo de que ninguém deveria gostar. Ela se sentiu subitamente infantil. 

Seu pai apertou o braço dela. “Isto é para o seu próprio bem e para a segurança dos nossos anfitriões da aldeia.” 

Chandra suspirou e se sentou de novo. “Pai. Nós estarmos aqui. É por minha causa? Por causa do que eu fiz na Fundição?” 

“Chandra, me escute.” Seu pai colocou os braços ao redor dela. “Sua mãe e eu estamos muito orgulhosos da pessoa que você está se tornando. Você é a coisa mais importante do mundo para nós. Queremos que você saiba que tudo o que fazemos é para mantê-la segura e para tornar o mundo um lugar melhor para nossa família. Nada mais importa.” 

Seu pai desfez o abraço. Ela olhou para ele e seu sorriso era acolhedor e real. A ponta de metal do pacote de ventilação cutucou suas costas desconfortavelmente, mas ela se segurou e não mencionou.

No dia em que os soldados cercaram a aldeia, Chandra estava explorando a floresta, seu exaustor batendo nas costas enquanto ela andava. Ela não os notou se aproximando das casas, nem sequer ouviu a aeronau descendo. Foi só quando ouviu os gritos que ela correu de volta para a aldeia e os viu.

Eles usavam os mesmos uniformes que aqueles que a haviam parado na área restrita em Ghirapur. Armas estavam afixadas nos antebraços, e muitos deles carregavam lanternas acesas, apesar de estar no meio do dia. Um deles era alto e confiante, e falava com os outros em um sussurro rouco. Capitão Baral. De alguma maneira ele havia os encontrado.

Arte de Daarken

Os soldados criaram uma cerca humana ao redor da aldeia, cruzando os braços e exibindo suas lâminas retráteis. Uma mulher da vila gritou para eles e, sob a ordem do Capitão Baral, os soldados a empurraram para trás. 

O exaustor de Chandra expeliu uma baforada de vapor. Ela saiu do bosque, na direção deles. “Hey,” ela gritou. “Vocês estão procurando por mim? Se vocês me querem, aqui estou eu!” 

Os soldados se entreolharam. “É a menina Nalaar.” 

“Meu nome,” ela disse, levantando-se até a altura do peito, “é Chandra. Deixem essas pessoas em paz. Eles não fizeram nada de errado. Leve-me.”

“Nós vamos te levar,” disse o Capitão Baral. Ela havia esquecido a maneira como sua voz grave soava como pedras sendo moídas até se tornarem pó. “Porque você e os seus são um perigo para si mesmos e para o povo.” Ele se virou para a mulher e os outros aldeões. “Você pode ir.” 

Os aldeões se afastaram, os adultos levando as crianças para suas casas. Chandra procurou por seus pais, mas não conseguiu vê-los no meio da multidão. 

“Eu não sou um perigo,” disse ela. “Não mais.” Ela balançou o exaustor para Baral ver. Um rastro constante de vapor saía de suas aberturas. 

“Sua própria existência é um perigo,” Baral sussurrou. “Você sabe como te encontramos, garota? Essas pessoas desistiram de você, finalmente.”

“Isso é uma mentira. Meus pais disseram que eles estavam nos mantendo seguros.” 

“Os crimes de seus pais são diversos, mas seus crimes são muito piores, piromante. Você é um instrumento de caos e morte. Quantas pessoas você matou?”

“Nenhuma. Eu só quebrei alguns dos seus brinquedos produzidos em massa.”

A boca de Baral ondulou em um lado, revelando seus dentes. “Não foi isso o que eu ouvi. Ouvi dizer que você foi responsável por dezenas de mortes, nesta mesma aldeia. Ele acenou para os outros soldados. “Façam.” 

Os soldados usaram suas lanternas para iluminar os telhados de palha das construções da vila. Eles se incendiaram imediatamente, cuspindo uma fumaça grossa e feia. 

“Não!” Impulsivamente, Chandra estendeu os braços para explodi-los com fogo, mas nada surgiu. O vapor chiou de seu pacote de ventilação. Baral sorriu e algo brilhou em seus olhos. 

“Chandra!” Seu pai veio correndo, do lado de uma construção. “Chandra, corra! Por aqui!” Ele jogou uma pequena esfera de cobre no chão, aos pés dos soldados. Ela causou uma explosão de luz, pulverizando seus rostos com partículas cintilantes. Eles gemeram e bateram as mãos sobre os olhos. 

Chandra correu para a aldeia, seu pai logo atrás. Ela correu entre as casas, agora consumidas pelo fogo e pelos gritos. Fumaça se lançava pelos caminhos sujos, encobrindo o caminho de volta para o local onde sua família estivera hospedada. Ela se mantinha à frente, tentando observar o lugar onde seu pai estava. 

Quando ela emergiu da fumaça, estava do lado oposto da aldeia. O fogo ardia alto, consumindo construções inteiras. As pessoas cambaleavam para fora da aldeia, gritando, rolando na terra para saírem. Os soldados de Baral estavam parados, sem fazer nada para ajudar as vítimas. Ela percebeu que aquilo seria culpa dela. Fora ela quem assustara as feras da floresta com seu fogo e, portanto, algum aldeão devia ter contatado o Capitão Baral. E agora toda essa morte ardente estaria em suas mãos, porque ela era a piromante. Ela fora enganada tão facilmente, e Baral tinha orquestrado tudo, menos falado diretamente para ela. 

Os soldados a avistaram. Ela se virou para o outro lado, mas escorregou em algo e caiu. Seu pé havia se enrolado em um pedaço de tecido escorregadio, pisoteado na terra. Ela o tomou em suas mãos. Era o xale de sua mãe, o que ela sempre usava em volta dela, com seu bordado característico. Estava fumegando e chamuscado pelo fogo. Ela percebeu que estava na frente da residência onde eles estavam hospedados, e que havia sido consumida pelo fogo. 

“Mãe!” Ela gritou, subitamente incapaz de se levantar e correr novamente. “Não!” 

Os soldados desdobraram as lâminas afiadas nos antebraços. Eles se afastaram para deixar o Capitão Baral se aproximar dela. Ele tinha uma simples adaga na mão e se elevava sobre ela. Ela não conseguia se forçar a se mover.

“A arena terá um excelente show,” sussurrou Baral. “O consulado gosta de fazer dissidentes de exemplo. E as multidões desfrutam de demonstrações de força, quando isso não as envolve.” 

Seu pai apareceu de fora da fumaça da aldeia. Ele empurrou-se entre eles, colocando-se entre Chandra e os soldados. “Chega,” ele disse, tossindo. “Leve-me. Sou eu que vocês querem. Eu me rendo.”

Baral aproximou-se de seu pai, pôs uma das mãos em seu ombro e perfurou-lhe o intestino com uma adaga. Seu pai engasgou e desabou, caindo de joelhos, segurando o estômago em suas mãos. Ele olhou para Chandra por um momento, e ela viu sua última emoção em seus olhos – não era medo, mas a decepção de que ele não poderia fazer nada melhor para ela. Ele se inclinou, estremecendo, e caiu no chão.

Arte de Jason A. Engle

Chandra não ouviu o som que ela fez naquele momento. O mundo ficou envolto em vapor, fumaça, e os uniformes dos soldados. Ela não sentiu o tilintar de algemas em torno de seus pulsos, os delicados laços de filigrana de cobre que continham ferro pesado. Ela não sentiu o exaustor soprando vapor. Ela não se sentiu sendo levada para a nave, pisando na soleira e se sentando, segurando o xale da mãe. E ela não viu as colunas de fumaça se arrastando para longe da aldeia quando a aeronau levantou-se e virou o nariz em direção a Ghirapur. Ela só viu seu pai cair na lama, repetidamente, e ouviu o suspiro desanimado de sua última respiração saindo dele.

O executor era alto e largo; seu rosto estava escondido por um capuz com uma máscara de filigrana. Mais relevante para a situação de Chandra era que seu antebraço terminava em uma enorme lâmina de corte. Poderia ter sido colocada sobre uma mão, mas para Chandra parecia enxertado, fundido em todo o traje mortal do papel de executor. Ele andava em um círculo ao redor de Chandra, traçando o perímetro do estrado central da arena. Era Akhara, o mesmo pátio que Chandra havia cortado ao fazer a entrega fracassada apenas algumas semanas atrás. Agora as arquibancadas estavam cheias de pessoas reunidas para assistir ao espetáculo sombrio. 

Ela olhou para as delicadas algemas que seguravam seus pulsos firmemente no lugar. Suas mãos não se pareciam com as armas de uma piromante, mas com as mãos de uma criança comum. 

Um locutor atarracado em uma túnica de seda leu sua sentença com uma voz estrondosa. “Por crimes contra o bem público, destruição da respeitada Fundição de Ghirapur e pela morte de três pessoas no incêndio na aldeia de Bunarat, esta cidadã foi sentenciada a encontrar a lâmina da justiça.” 

Enquanto ele lia, Chandra tentou reunir a sua chama. Mas ela não veio. Ela podia sentir algo pressionando-a, entorpecendo qualquer fogo que pudesse ser reunido. Ela ainda usava o exaustor nas costas, agora descansando logo acima do xale de sua mãe. O exaustor não estava assobiando. Sua raiva se foi, com seu pai. Chandra examinou a multidão em busca de qualquer sinal de sua mãe – se ela estivesse viva, sem dúvida estaria aqui, tentando parar isso, tentando salvar sua filha. Mas nada parou o discurso do locutor, o que deixou aquilo bem claro para Chandra. Sua mãe também deveria estar morta.

Ela não tinha mais nada. Talvez fosse certo que o carrasco tirasse sua vida.

“Hoje todos aprendemos uma difícil lição sobre os limites da compaixão e a importância da vigilância”, continuou o locutor. “Hoje aprendemos que, para alguns, nenhuma quantidade de direção, nenhuma orientação moral pode ser suficiente. Alguns nascem com a destruição embutida neles e, para o bem de todos nós, eles devem ser eliminados.”

Talvez ela não devesse continuar. Talvez ela nunca tenha sido feita para ser a melhor em nada. Talvez ela fosse apenas uma aberração, afinal, um monstro com um “talento” que só poderia causar dor àqueles ao seu redor. Talvez ninguém pudesse confiar nela, ou pudesse amá-la por quem ela era. Talvez ela devesse abaixar a cabeça e aceitar seu destino. 

Algo na multidão chamou sua atenção. Era a Sra. Pashiri, seu contato da Fundição. A Sra. Pashiri acenou para ela da multidão, sua boca uma linha fina e tensa, os olhos brilhando com lágrimas desafiadoras. Lentamente, a Sra. Pashiri levantou a mão. Seus dedos se fecharam em círculo em sua testa – o sinal dos Nalaar, como uma pantomima dos óculos de solda de seu pai, que funcionava como uma saudação. 

Os punhos de Chandra se apertaram. O exaustor assobiou e apitou como uma chaleira. Ela manteve os olhos fixos na Sra. Pashiri, aquele gesto, aquele respeito por quem ela era. Ela era uma Nalaar. Ela era Chandra Nalaar. 

“A continuidade da existência dessa cidadã coloca a todos em risco,” disse o locutor. “Então, para o bem de todos nós, ela atende às exigências da justiça. Carrasco, por favor, avance.”

Quando o executor deu três passos ritualizados em direção a Chandra, a lâmina deslizou para fora de seu braço, dobrando seu comprimento mortal. Todo o corpo de Chandra ficou tenso. O assobio do exaustor se transformou em um crepitar, enquanto algo ferveu dentro dela.

Arte de Lius Lasahido

O executor inclinou o rosto mascarado para perto do Chandra. “Eu sei que você está tentando, piromante,” ele disse em um sussurro grave. 

Chandra desviou os olhos da Sra. Pashiri e olhou diretamente para a máscara, os dentes cerrados. Ela conheceu a voz instantaneamente. “Baral.” 

Ela podia ver os olhos de Baral através da filigrana da máscara, e seu olhar estava totalmente frio. Ela podia sentir o peso de sua presença nela, a pressão de sua antimágica. 

“Você e eu não somos os únicos magos que este mundo já viu,” ele sussurrou. “Mas eu serei o último que você conhecerá.” Ele inclinou-se lentamente para trás, deixando a lâmina balançar para fora, para toda multidão ver. 

Chandra se concentrou na Sra. Pashiri no meio da multidão. A velha senhora não abaixou a mão. Os pulsos de Chandra estavam tensos nas algemas, mas ela não conseguia se mexer. Aquele era o seu último momento.

Baral levantou a lâmina alto. Chandra ouviu o locutor dar a ordem: “Execute-a.”

Cada um dos seus músculos se tensionou. Ela alcançou o seu interior, procurando por algo, qualquer coisa – e encontrou a mariposa flamejante, suas asas brilhantes tremulando. Era uma pequena, mas rebelde fonte de luz, implacável, desdenhada. Era ela, ela percebeu – uma manifestação de seu dom, mas também uma manifestação de si mesma. Ela era sua chama e sua chama era ela. Ela sentiu uma pequena parte do que significava ser uma piromante, o que significava estar viva, o que significava ser Chandra.

Em um lento instante, a lâmina desceu pelo ar em direção ao seu pescoço. Chandra sentiu a sensação de formigamento passar por ela como uma onda de brasas. Sua visão cintilou nas bordas, desfocando Baral, o locutor e tudo ao seu redor. A arena e a multidão se distorceram em uma névoa derretida. Ela sentiu o vapor cuspido de seu exaustor se transformar em líquido incandescente, sem perceber que o exaustor já havia se derretido em escória, e estava escorrendo por sua perna e queimando através do estrado de pedra.

Arte de Eric Deschamps

Suas mãos pegaram fogo, derretendo as algemas. Seus braços pegaram fogo. Seus ombros e torso pegaram fogo. Ela virou seu rosto, mas a chama se espalhou por seu rosto. Seu cabelo se tornou uma chama incandescente. Seus olhos tostaram, tornando-se orbes avermelhados em suas órbitas. 

Ela soltou um grito de fúria e o grito se transformou em uma explosão. Uma cascata de fogo explodiu, envolvendo o chão, envolvendo seus captores, envolvendo o mundo inteiro. Tudo o que ela podia perceber foi banhado em fogo. 

Ela segurou os braços flamejantes sobre a cabeça flamejante e apertou os olhos flamejantes com força. Seus ouvidos tilintaram, ensurdecidos e rugindo ao mesmo tempo. Um momento ou uma eternidade se passara. Em algum momento ela pensou ter ouvido os gritos de Baral, e no seguinte teve a sensação de ser soprada como uma vela, ou de correr através de um tornado e sair do outro lado. 

Quando ela abriu os olhos, a fumaça de sua explosão ainda cobria o mundo ao seu redor. Suas roupas fumegavam e seu exaustor se fora. Quando ouviu vozes de pessoas se aproximando, ela preparou mais fogo, preparando-se para jogá-lo novamente em seus captores. O fogo veio prontamente, como um aliado de confiança. 

A fumaça se dissipou o suficiente para ela ver as pessoas que se aproximavam. Elas não se pareciam com as forças do Consulado, ou com qualquer outra que ela já conhecera: altos e nobres, vestidos como monges, com traços de cinza em seus rostos como máscaras ornamentadas. Atrás deles, erguia-se uma colina de rocha esculpida, com escadas que levavam a um arco monumental que se abria para dentro da montanha. A arquitetura de pedra escarpada desabrochava da montanha, iluminada por trilhas de fogo sem braseiro, e o ar cheirava a gases quentes e terra fumegante.

A arena não estava ali. A cidade inteira, seu mundo inteiro a abandonara – ou ela o abandonara. 

Chandra se sufocou em terror. Os monges estenderam as mãos para ela em um gesto calmante, e um deles disse algo em um tom reconfortante.

Então ela convocou sua vontade e explodiu todos eles com fogo. A lógica do fogo. 

De alguma forma, porém, o furioso funil de chamas não os machucava. Um dos monges levantou a mão e sua chama diminuiu, atenuando-se e tornando-se um anel quente e brilhante que os envolveu. O monge assentiu para ela. 

“Saudações, piromante,” disse o monge. “Você é bem vinda aqui.”

Arte de Eric Deschamps

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