Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

O MASSACRE DA CIDADE ALEGRE

Jay Moldenhauer-Salazar

Jay Salazar foi um escritor de Mtg nos anos 2001-2007, focado especialmente em construção de decks. Além deste, escreveu alguns artigos em Campeões, Traidores e Salvadores de Kamigawa.

Emil examinou as ruínas fumegantes e sentiu o começo de uma dor de cabeça.

Ele cresceu nesta parte da cidade, quando o nome Cidade Alegre fazia algum sentido. Infelizmente, o nome tornou-se cada vez mais irônico nos últimos anos. A imundície cobria os paralelepípedos e mais do que nunca as janelas brilhavam sombriamente por trás de tábuas. Vândalos e vermes expulsaram toda a alegria dessas ruas. Emil ainda se lembrava que ele e as outras crianças de Cidade Alegre brincavam de bete nos becos, ainda podia ouvir o padeiro Jonik rindo enquanto fazia bolinhos.

Alguém tossiu ao lado e Emil piscou. Ele havia esquecido Vatek por um momento. Era fácil de acontecer. O homem pequeno e ossudo olhou para ele e apertou os olhos através de um monóculo. Parecia um menino vestido de soldado para o Festival das Máscaras. O monóculo era uma tendência entre os rapazes que Emil achava ridículo. Apenas o símbolo de um punho cerrado dentro de um sol, gravado em seu peitoral mal ajustado, o marcava como Wojek.

“Minhas desculpas, patrulheiro Vatek,” Emil disse, recuperando-se. “O que você estava dizendo?”

Vatek endireitou-se vaidosamente. “Senhor. Eu estava dizendo que os moradores que questionei me informaram que isso já foi uma taverna.”

“O Barril do Titã, sim.”

Vatek começou. “Você conhecia isso, senhor?”

“Eu conheci uma vez.” Emil dispensou a pergunta. “O que aconteceu? Alguma testemunha?”

Vatek fez uma careta. “Quem supostamente viu, não está falando nada. Temos apenas um sobrevivente, senhor. Ele está esperando para contar sua história. Ele quer falar com o capitão, senhor. Ele foi muito específico.”

“Difícil imaginar alguém sobrevivendo a isso,” Emil acenou para as cinzas e a fundação escurecida. Uma parede externa se erguia como um obelisco contra o céu da manhã. A estrutura restante não passava do joelho de Emil, uma área de rocha negra respirando fumaça preguiçosamente. A taverna de dois andares claramente havia queimado por horas antes que alguém pensasse em chamar uma patrulha Wojek. Ou talvez levou horas para encontrar um patrulheiro, já que as patrulhas tendiam a evitar a Cidade Alegre atualmente. Seja qual fosse o caso, até olhar para os restos do outrora orgulhoso Barril do Titã fazia a cabeça de Emil doer. Ele passou a mão pelos cabelos grisalhos. “Bom, se ele está ansioso para me contar sua história, não vamos deixar o homem esperando.”

Emil afastou vários insetos e olhou para cima. Subida. Sua dor de cabeça havia triplicado.

“Suponho que você era o segurança daqui?”

Uma figura olhou para ele e soltou uma risada gutural. Emil presumiu que fosse um troll, mas era difícil dizer, pois ele usava um capacete que cobria toda a cabeça, exceto duas fendas verticais para os olhos e três fendas verticais para a boca. Enormes chifres curvados para baixo nas laterais do capacete. Espetos, caveiras, placas e couro envolviam o resto de seu corpo, fazendo-o parecer um campo de batalha ganhando vida. Um porrete, quase da altura de Emil, pendia do cinto daquele ser enorme.

“Eu acho que você pode dizer que sim,” o troll murmurou. “O lugar ficava seguro quando eu os mandava para fora.”

Os olhos de Emil lacrimejaram com o cheiro da coisa, uma mistura de carne estragada e suor, pior do que qualquer troll que ele conheceu. Ele forçou um sorriso. “Você tem um nome, amigo?”

“Não é ‘amigo’, com certeza.” Dois braços gigantescos cruzados sobre um peito gigantesco. “Me chame de Orik.”

“Tudo bem,” Emil ainda estava sorrindo, “Você quer me contar como esta taverna acabou pegando fogo, Orik? Melhor ainda se você puder explicar quem é o responsável.”

“Claro. Eu vou te contar o que aconteceu.“

“Você quer se sentar?” ofereceu Emil.

“Eu vou ficar em pé.”

“Certo.” Emil cruzou as mãos atrás das costas e abriu os pés. Era uma posição que ele poderia manter por horas, mesmo em uma armadura de cota de malha. “Quando você quiser. Comece do começo.”

Orik coçou seu ombro distraidamente.

“O início. Certo. Era uma noite normal de carteado no Barril. Alguns não puderam ir, mas a maioria dos frequentadores estava lá. Buncha goblins, principalmente. É difícil saber seus nomes certos, mas todo mundo conhece Yeep porque ele é louco. Ou era, eu acho. O irmão de Yeep, Ruk, estava lá, e Bart. Alguns outros, primos de Yeep. Fora isso, eu diria que havia talvez dois ou três outros caras. Um diabrete que eu nunca vi antes. Porquinho, que estava aparecendo para jogar cartas desde que escapou da sepultura, e aquele mago da guilda, Uzric. O barman, Belko, estava lá, é claro.”

“Espere,” Emil interrompeu. “Mago da Guilda? Jogando cartas com goblins, diabretes e um… zumbi, não é?”

“Rakdos,” o patrulheiro Vatek xingou atrás dele.

O troll deu uma gargalhada. “Sim, Rakdos. Assustado, homenzinho? Ou talvez você pense que está na única guilda que vale a pena…”

“Já chega,” Emil disse. Sua dor de cabeça ameaçava bloquear a luz do sol. Ele não queria nada mais do que se enrolar em sua cama. Entretanto, ele disse: “Por favor, continue, Orik.”

“Então, sim, os caras estavam jogando cartas, e esse grupo de estranhos entrou, todos elfos, e parecendo que estavam viajando. O líder pediu bebidas para todos, e eles se sentaram em um canto, todos encolhidos e cochichando. Como estava perto da porta, ouvi-os dizer algo sobre algum tipo de missão, mas eu estava mais interessado no jogo de cartas. Os caras não estavam. Estranhos geralmente não entravam no Barril. Acho que os caras estavam tentando se exibir ou algo assim. Eles se envolveram, sabe? Foi ficando mais alto. Ruk deu um pulo e começou a tocar sua flauta. Algum primo dele tirou um pandeiro do nada e começou a bater junto com a flauta. Yeep pediu uma rodada do melhor bumbat de Belko. Todo mundo estava se divertindo.”

Orik riu novamente. Emil ouviu a lâmina de Vatek deslizar lentamente de sua bainha. Sua própria mão se moveu deliberadamente para o cinto perto de sua espada. O troll estava claramente perdido em sua história, no entanto, alheio a todos eles e lembrando-se dos eventos da noite.

“Yeep Doido. Foi ele que levou tudo para outro nível. Ele ficou em cima da mesa, segurando a caneca e disse que estava cansado de perder nas cartas. Ele vai se esforçar para a vitória, é o que ele diz. Então ele disse que se perdesse o próximo jogo arrancaria o próprio olho com uma colher. E é claro que o pontinho maluco perdeu. Tudo ficou entre ele e Uzric, e Uzric colocou sua última carta todo dramático. Quando vimos qual era a carta, começamos a comemorar. Yeep tentou se esconder debaixo da mesa, mas os caras o colocaram em sua cadeira e o amarraram com uma corrente farpada que um deles estava usando. Foi Uzric quem arrancou o olho, mas foi o diabrete que fez Yeep comê-lo. Estávamos todos rindo junto com a situação, a flauta e o pandeiro ainda tocando. Logo todo mundo estava apostando partes de seus corpos e jogando-os em uma sacola para mais tarde. Honestamente, foi um dos melhores carteados que tivemos no Barril. De qualquer forma, o incêndio foi culpa daqueles malditos estranhos. Estávamos todos nos divertindo e festejando muito e, de repente, os elfos fedorentos sacam suas armas e fingem que estão tentando ir embora. Tipo, sem pagar nem agradecer pelo show. No começo, pensamos que eles estavam brincando e apenas tentando se divertir, sabe? Achamos que cortar a cabeça do Porquinho tinha sido uma piada, por exemplo, até mesmo porque ele poderia simplesmente colocá-la de volta e continuar bebendo. Então alguém golpeou o tocador do pandeiro e começou a gritar algo sobre ‘purifique isso’ ou ’em nome disso’ e tivemos que fazer alguma coisa.”

“Você os matou?” Emil perguntou cuidadosamente. Ele queria manter Orik falando enquanto seus homens flanqueavam o troll. Vatek entendeu a dica depois de um empurrão de seu queixo, movendo-se silenciosamente, e o resto seguiu o exemplo.

Orik estava considerando sua pergunta. “Os caras mataram um deles, principalmente porque ele estava se contorcendo demais enquanto amarravam os outros. Os outros elfos ficaram vivos por horas. O diabrete tinha esses dardos minúsculos, sabe, e apostávamos um barril de bumbat antes de terminarmos de jogá-los. Então um dos goblins disse como o cabelo de elfo ficava bom com molho de maçã, então raspamos suas cabeças e fizemos a sobremesa. E o pior é que ele estava certo. Não sei o que esses elfos usam para lavar o cabelo, mas é mais saboroso do que a maioria dos outros cabelos que você encontrará.

“Então, Piggy tinha uma brincadeira que chamava de ‘dentista’ que fazia os elfos gritarem’, e o som combinava tão bem com a flauta que tentamos fazer uma pequena banda com isso. Impressionante como gritos soam como música quando você bebe um pouco, não é?”

“Então lá estávamos nós, comendo molho de cabelo, jogando dardos, assistindo Porquinho coletar dentes e trabalhando em nossa música quando Yeep simplesmente se levantou e começou a arrancar as cabeças deles. A coisa mais bizarra que já vi, um goblin forte o suficiente para fazer aquilo. Todos nós zoamos ele muito com isso, mas como eu disse, Yeep é louco. Estragou o clima de festa, sabe? Agora só tínhamos a flauta de dedo para a música, o bumbat quase acabou e metade das cartas se rasgou na luta contra os estranhos. Uzric era o único feliz, porque ele conseguiu material para trabalhar em seu manto de carne. O resto de nós, bem, estávamos morrendo de tédio.”

“Yeep deve ter se sentido culpado por tudo isso quando ele se deu conta, porque de repente ele começou a fazer malabarismos com as cabeças. Nenhum de nós sabia que o pequeno idiota sabia fazer malabarismo, mas lá estava ele, mantendo cinco no ar ao mesmo tempo. Logo alguém pegou o pandeiro, a flauta começou a tocar novamente e Porquinho foi buscar outro barril no estoque particular de Belko. Festejamos assim boa parte da noite, até fazendo algumas brincadeiras com os pedaços dos corpos que havíamos colocado no saco antes.

Um jovem patrulheiro perto de Emil tossiu, quase vomitando, mas Orik pareceu não notar. Na verdade, ele fez uma pausa em sua narrativa para olhar para Emil, como se sua história tivesse terminado. Os patrulheiros, enquanto isso, quase completaram um círculo ao redor do troll. Aquele porrete parecia perigoso, mas Emil calculou que eles poderiam derrubar o brutamontes sem nenhuma baixa. Embora ele não tivesse admitido ter assassinado o grupo de elfos, estava claro para todos que Orik havia pelo menos sido omisso em relação às mortes atrozes. Até mesmo a associação de Orik com o Culto de Rakdos era motivo para interrogatório. Os punhos de Emil se fecharam e relaxaram enquanto ele se preparava para a batalha.

Ele inclinou a cabeça e perguntou: “Quem começou o fogo, então?”

“Ah,” Orik riu, “Certo. Isso aconteceu bem tarde. Um dos primos de Yeep colocou fogo nas cabeças, o que foi muito difícil já que elas não tinham mais cabelo. Yeep começou a derrubá-las depois disso, é claro, porque quem aguenta cabeças em chamas?”

“Logo depois aquele bumbat que derramamos pegou fogo – bebida que não teríamos derramado se os elfos não tivessem começado aquela briga. De qualquer forma, todo o lugar explodiu em algum momento. Todos nós poderíamos ter saído, só que Porquinho gosta muito de dançar com fogo. Ele começou a empurrar todas as mesas e cadeiras para ter espaço, e acabou bloqueando bem as portas. Goblins começaram a queimar e gritar. Porquinho dançando até virar cinzas. Então, foi mais ou menos assim que o incêndio aconteceu.”

Ele encolheu os ombros enormes. “Culpa dos estranhos, como eu disse.”

Emil deveria ter feito o movimento para atacarem o troll. Apesar de seu melhor instinto, Emil perguntou: “Como você saiu? Se você atravessasse a parede, presumo que os outros o seguiriam, dado o tamanho do buraco que você faria.”

De dentro de seu capacete, Orik bufou.

“Não. Eu nunca consegui. Eu estava engasgando com a fumaça e tendo dificuldade em enxergar quando Uzric apareceu, tipo, do nada. Ele disse que você, Wojek, apareceria hoje para descobrir o que aconteceu e queria ter certeza de que alguém estaria aqui para lhe contar. Não sei por que ele me escolheu, mas talvez seja porque eu estava assistindo a maior parte no canto, então tive a melhor visão.

Emil olhou para as ruínas. “Mas se você não conseguiu escapar, então como…? Ah.” De repente, ele reconheceu aquele fedor horrível do troll. Era o cheiro dos mortos. Se ele pudesse ver a carne do troll, ele poderia ter notado a coloração estranha, o olhar vago ou possivelmente as queimaduras horríveis que ainda deveriam estar lá.

Orik riu sombriamente quando viu Emil chegar a sua conclusão. “Sim, Uzric brinca um pouco com a magia da morte. Ele gravou uma marca mágica em mim para que eu estivesse aqui falando com você. Louco, né?”

Com o canto do olho, Emil viu Vatek boquiaberto para ele em descrença. Pobre criança, pensou Emil. Ele provavelmente não conheceu muitos cultistas de Rakdos. Se passasse muito mais tempo em lugares como Cidade Alegre, aprenderia. Naquele momento, um pensamento estranho atingiu Emil. Ele o expressou quase ao mesmo tempo que se formou.

“Orik?” Emil olhou para cima, esticando o pescoço. Sua dor de cabeça latejava junto com seu pulso acelerado.

“Hum?” disse o troll.

“Por que Uzric se importava que você entregasse a mensagem? Por que você quis contar apenas a um capitão?”

“A festa é um fracasso se alguém vive para contar sobre ela, e acho que Uzric não estava pronto para o fim da festa.”

Emil piscou. Orik riu.

“Ah, pelo amor de…” Emil gemeu. “Corram! Todos! Peguem-”

Emil nunca terminou o aviso. O corpo de Orik estalou de uma vez, como uma tocha sendo acesa, então explodiu em um fogo selvagem e crepitante. Nos três dias seguintes, a explosão e o incêndio resultante consumiriam quase um terço da Cidade Alegre.

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