Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
O GRITO SILENCIOSO
Após finalmente abandonar o medo e dúvida que a seguravam, Nissa está inteiramente ligada ao poder do mundo, à alma de Zendikar. A conexão entre elas permite que Nissa se mova em uníssono com a elemental arbórea Ashaya, coordenando ataques com tropas de elementais menores. Além disso, pode usar aspectos da floresta – árvores, vinhas, terra e folhagens – como extensões do seu ser na luta contra os Eldrazi. Ela correga consigo um pacote de sementes das espécies de árvores que foram extintas pelos Eldrazi, e não vai parar até que possa plantá-las novamente em Zendikar.
Sua luta tem um único foco: encontrar e destruir o titã Eldrazi responsável por gerar o enxame, e assim salvar Zendikar – seu lar, seu mundo, sua amiga.
Como Nissa conseguira viver neste mundo – tão tenaz e encantador, tão lindo – por tantos anos e ainda perdera tanto?
Todo dia trazia algo novo, algo que Zendikar ensinava a Nissa para surpreendê-la e deleitá-la. A terra tinha centenas de segredos magníficos, e os compartilhava com ela.
Nissa nunca teria adivinhado que os mantídeos gigantes secretavam um aroma que simulava o odor de minhocas frescas para atrair pássaros pequenos – e não para que os mantídeos comessem, mas para ouvir as melodias dos pássaros. As canções estavam entre as poucas coisas que ninavam os mantídeos e os faziam dormir facilmente.
Ela também não sabia que as vinhas que se acortinavam entre as árvores-coração da Floresta de Matavasta eram mais braços do que vinhas – braços que ficavam de mãos dadas. Cada vinha crescia dos troncos de duas árvores; ela não pertencia a uma árvore mais do que a outra – era compartilhada igualmente entre elas, e era uma conexão especial entre as árvores. As vinhas ligavam uma árvore-coração com sua companheira escolhida e permitia que as duas compartilhassem memórias, sentimentos e sonhos.
Estas árvores estavam de mãos dadas para sempre; eram parceiras para toda a vida.
E as gnarlids – aquelas bobas, sorrateiras e bestiais – tinham um ritual que conseguiram manter escondido de quase todos os outros povos zendikari. Nas noites mais escuras, quando não havia lua, mas o céu estava limpo, as gnarlids escalavam as árvores mais altas, colocavam as cabeças acima das copas das árvores, e riam das estrelas. Pequeninas risadinhas aspiradas, que se alguém escutasse, pareceria apenas as folhas dos galhos mais altos farfalhando ao vento. Era uma piada interna somente para elas.
Eram tão impressionantes quanto a tribo de humanos que vivia nas copas mais baixas das árvores da Matavasta – não em um acampamento central, mas espalhados por toda a extensão da floresta. Cinco ou seis humanos compartilhavam cada casa na árvore da aldeia, e havia mais de uma dúzia de aldeias. A tribo conseguia se manter bem informada sobre os movimentos dos outros e das suas necessidades graças aos ancestrais que estudaram a linguagem das preguiças-fofoqueiras. As pessoas mandavam mensagens entre si falando com a preguiça-fofoqueira mais próxima. Levava minutos até que a preguiça levasse a fofoca aos vizinhos, que a passavam pela rede de cidadãos arbóreos. Logo, todos os humanos na tribo saberiam das notícias de uma aldeia graças aos pequenos fomentadores de fofocas.
A mensagem de hoje era um aviso de perigo.
Ashaya a passou para Nissa enquanto ela acordava com as primeiras luzes da manhã.
Aldeia de Bosquelonge sitiada. Dois Eldrazi. Ajudem.
Elas iriam.
Sim. É claro que iriam.
Quando algo de outro mundo colocava em risco a menor das criaturas zendikari, fosse fera da floresta, peixe do mar ou flor da planície, o mundo se ergueria contra a ameaça. Nissa e Ashaya eram o mundo; enquanto estivessem juntas, nada que pertencesse a Zendikar teria de lutar sozinho.
Elas seguiram a preguiça-fofoqueira de volta até a fonte, correndo juntas em passos coordenados; a floresta se afastava para que passassem. Não demorou muito até que elas sentissem os Eldrazi – sentissem a destruição e a dor que as monstruosidades estavam causando. Mas a fofoqueira estava errada; eram três Eldrazi, e não dois. Nissa e Ashaya conseguiam sentir três deles, distintamente.
“Temos de ir mais rápido,” decidiu Nissa.
Ashaya andou mais devagar, o suficiente para oferecer a mão a Nissa, deitando-a no chão da floresta bem à frente da elfa. Nissa agarrou o polegar da elemental e subiu em sua palma. Um arrepio de poder e pertencimento a Zendikar a percorreu enquanto Ashaya a erguia para os galhos e fissuras que lhe serviam de sela.
Nissa subiu no lugar certo, entre os dois chifres de madeira espessa da elemental. De lá, ela podia ver acima da copa de muitas árvores enquanto Ashaya corria pela floresta. Os longos passos de Ashaya eram duas vezes mais rápidos do que a velocidade de corrida de Nissa. Elas subiram uma colina baixa antes da próxima onda de preguiças-fofoqueiras sumirem – e de lá elas podiam ver os Eldrazi.
Eram três, como Nissa sentira, e cada um deixava uma trilha de corrupção atrás deles. As trilhas corriam como arabescos pela Matavasta.
Duas das monstruosidades se moviam muito próximo uma da outra, e seus caminhos de destruição se moviam em paralelo. Elas eram altas e compartilhavam a mesma estrutura corporal: placas faciais ósseas, tentáculos longos que serviam como pernas, e tentáculos saindo detrás de duas cabeças. Estavam indo na direção da casa da árvore e da dúzia de humanos que se uniram para defender a aldeia.
O outro Eldrazi era muito menor. Ele se movia sozinho, se arrastando sobre tentáculos róseos que pareciam minhocas, fora do curso dos outros dois. Esse Eldrazi ia direto na direção de uma mata fechada de antiquíssimas árvores-coração.
Ashaya parou repentinamente. Aonde elas iriam?
Nissa se enrijeceu com um aperto no estômago.
Devia haver apenas um alvo: a aldeia. Mas havia dois. Duas famílias estavam sob ameaça; duas comunidades precisavam desesperadamente da ajuda delas.
Aonde elas iriam? Ashaya não sabia.
Chegar nos dois lugares a tempo não era uma garantia. Estavam muito longe um do outro, e os Eldrazi estavam perto demais dos seus respectivos alvos.
Por uma respiração inteira, nem Nissa e nem Ashaya se moveram.
“Temos de ajudar o máximo que pudermos,” Nissa disse, por fim. Ela apontou para a aldeia e para os Eldrazi gêmeos. “Precisamos ir até lá.”
Ashaya concordou. Dois, primeiro. Dois, porque dois causariam mais destruição do que um.
“E depois aquele.” Nissa apontou para o terceiro Eldrazi.
Elas chegariam nas árvores-coração a tempo. Não é?
Nissa abafou sua dúvida. Uma decisão fora tomada.
Ashaya correu colina abaixo, na direção da aldeia. Em apenas alguns minutos, elas alcançaram as casas das árvores.
Os Eldrazi gêmeos eram mais altos, e os humanos os enfrentavam das árvores, empunhando suas armas – espadas e lanças, arcos e adagas -, as quais nunca seriam o suficiente para inimigos tão grandes. Mas Nissa conseguiria enfrentar os Eldrazi, pois ela tinha Zendikar ao seu lado.
O Eldrazi mais próximo estendeu um braço bifurcado e o lançou na direção dos galhos onde os humanos estavam.
Foi recebido com gritos e estocadas, mas não foi o suficiente para tirá-lo de curso; ele derrubou um dos humanos.
Ashaya reagiu, alcançando a figura que caía e o colocando em segurança no chão.
O homem olhou para a elemental gigantesca, estupefato.
“Fique atrás de nós!” Nissa disse para ele. Ela saltou da sua montaria sobre a cabeça de Ashaya. “Lá.” Ela apontava para uma grande rocha que lhe daria cobertura temporariamente. “Vai!”
O homem hesitou por mais um momento e depois partiu, correndo abaixado.
Nissa olhou para Ashaya. “Temos de tirar os outros daqui.”
Ashaya mergulhou sua mão enorme nos galhos das árvores, tomando dois homens e uma mulher. Em seguida, ela se virou para o agrupamento confuso e aterrorizado de humanos que estavam próximos do homem atrás da rocha.
Nissa conhecia uma atalho. Ela estendeu a mão e a mente, fazendo o gesto que Ashaya lhe ensinara – o gesto que a abriria para o poder do mundo.
No seu próximo piscar de olhos, o mundo estava iluminado. Linhas de força verdes e brilhantes cruzavam toda a aldeia, atravessando as casas nas árvores, as pessoas e as próprias árvores. Era uma rede de poder e Nissa estava em seu centro.
“Segurem firme!” Ela chamou o restante dos humanos nas árvores.
Todos já tinham se virado para observar a elemental gigante que os tirava das árvores. Suas faces aterrorizadas diziam que não sabiam para quem deviam apontar suas armas. Para eles, devia parecer que estavam cercados por perigos.
“Está tudo bem”, avisou Nissa. “Viemos ajudar. Eu vou tirar vocês daí!”
Ela estendeu seu braço, alinhado com a linha de força que passava pelo tronco da árvore mais grossa. Quando ambas as monstruosidades Eldrazi atacaram com suas oito mãos, Nissa puxou a árvore e pediu que se inclinasse até ela. A árvore obedeceu.
Ela se inclinou como se estivesse se curvando. As pessoas se agarraram nos galhos, pendurados de lado na copa da árvore – e os dedos famintos dos Eldrazi não bateram em nada além de ar.
“Venham! Por ali.” Nissa acenava para as pessoas, apontando para a rocha. “É seguro lá.”
Com apenas um pouco de hesitação, eles se soltaram da árvore e desceram ao chão, correndo imediatamente. Os Eldrazi rangiam agora, e seus membros se agitavam a esmo na direção da árvore inclinada.
“Corram abaixados,” instruiu Nissa. “Vamos acabar com eles.”
“Eu agradeço.” Uma das mulheres tomou a mão de Nissa, enquanto os demais passavam. “Pelos anjos desta terra, eu agradeço.”
“Vai!” Nissa gesticulou para a mulher correr, e quando ela se uniu aos outros atrás da rocha, Nissa alcançou as linhas de força que corriam pelo solo em torno da rocha.
Ela puxou a própria terra, rolando-a para cima e criando uma barreira baixa ancorada na rocha para proteger as pessoas.
Eles ficariam a salvo e não seriam feridos. Mas as árvores-coração… A mente de Nissa devaneou.
Elas estavam perdendo tempo.
Ashaya a puxou de volta.
Aqui. Havia dor aqui. Havia necessidades aqui.
“Você tem razão.”
Com as pessoas a salvo atrás delas, Nissa e Ashaya viraram-se para os gêmeos. Era hora de terminar com seu reino de destruição aqui na Floresta de Matavasta.
O gêmeo da frente se lançou contra elas, estendendo-se acima da árvore inclinada.
“Não há nada aqui para você,” disse Nissa. “Então, vá embora.” Ela soltou a árvore arqueada – adicionando mais força – e ela voltou com tal força elástica que, ao atingir o Eldrazi, a árvore estilhaçou a placa facial óssea do monstro.
Choveu osso, em pedaços grossos e esbranquiçados.
O Eldrazi cambaleou para trás.
“Acabe com ele,” disse Nissa para Ashaya.
A elemental subiu pelas árvores e enterrou seus dedos de madeira pelas entranhas expostas da face do Eldrazi.
O Eldrazi se debateu e se retorceu por apenas mais um momento. Ashaya foi mais fundo, até o pescoço, e arrancou um pedaço enorme das suas entranhas. Seus membros ficaram imóveis e a coisa monstruosa finalmente vacilou para trás, caindo sobre o chão da floresta.
Gritos de comemoração saíram detrás da rocha.
“Um a menos. Faltam dois,” disse Nissa.
Ashaya girou na direção do segundo gêmeo no mesmo momento em que o Eldrazi alcançou os chifres da elemental. Ele os agarrou com dedos grossos e a puxou para baixo, torcendo-a. Depois, ele enroscou dois tentáculos espessos cor de rubi em volta da sua cabeça, prendendo-a.
Nissa sentiu o pânico e a dor da elemental.
Ashaya estava em perigo; Nissa agiu por instinto.
Ela seguiu as linhas de força que corriam pelas raízes mais espessas e profundas do solo, e se agarrou nelas.
Cada raiz tornou-se uma extensão de um dos seus dedos. Ela ergueu as raízes do chão, fazendo chover pedaços de terra, rocha e detritos. Ela esticou os dedos e as raízes se esticaram; ela cerrou os punhos e as raízes a imitaram. Agora Nissa tinha seus próprios tentáculos – que ela usou para chicotear o Eldrazi. Dez raízes cortaram o gêmeo que restava.
“Solte-a.” Com um movimento de pulso, Nissa retraiu as raízes e as estendeu novamente. Desta vez, ela as enterrou nos músculos do Eldrazi, com os espinhos das raízes agindo como unhas; ela o segurou firmemente. E então, içou um tentáculo de cada vez para longe de Ashaya.
Liberta, a elemental saltou para longe do Eldrazi e se ergueu na altura total, vibrando como um terremoto. Ashaya não perdeu tempo; ela se virou contra o Eldrazi com repetidos socos na área exposta do seu abdome.
Nissa estendeu seus dedos-raiz mais uma vez, atacando junto com Ashaya. Ela os enroscou em torno de cada um dos tentáculos do Eldrazi separadamente e depois puxou, partindo a base da monstruosidade e tirando-lhe o equilíbrio.
Sem conseguir se defender do ataque de Ashaya e manter o equilíbrio ao mesmo tempo, o Eldrazi titubeou. Nissa puxou mais, não satisfeita em apenas derrubá-lo; elas não tinham tempo para nada além de uma destruição eficiente. Ela arrancou cada tentáculo do Eldrazi. Ele sibilou e gritou, morrendo enquanto se lançava contra o chão – na direção das pessoas abrigadas atrás da muralha de rocha e solo.
Nissa girou no próprio eixo, largando as raízes dos seus dedos e estendendo-se no próprio solo. Ela chamou as linhas de força dentro da terra, movendo a terra e as rochas e a vegetação para cima em uma grande onda, carregando as pessoas para longe de onde o Eldrazi atingia o chão.
Eles gritaram quando foram erguidos no ar, mas estavam a salvo; Nissa os salvara.
“Foram dois, falta um.” Nissa falou para Ashaya.
As pessoas da Matavasta correram na direção de Nissa, efusivos em sua gratidão. Eles a agarraram pelos ombros, a abraçaram e choraram sobre sua capa.
Apesar de estar cercada pelo afeto deles, a única coisa que Nissa conseguia sentir era a dor das árvores-coração. O terceiro Eldrazi alcançara a mata fechada.
“Devemos ir,” disse Nissa.
“Não, fique!” pediu a mulher que segurava o cotovelo de Nissa. “Você tem de ficar. Celebre esta vitória conosco.”
“Não é uma vitória,” falou Nissa cabisbaixa, soltando-se das pessoas. “Tem mais um Eldrazi.”
“Onde?” Um jovem olhou em volta, empunhando sua lança.
Nissa apontou na direção da mata fechada. “Tenho de ir.”
“Ah, aquele lá.” Um homem alto balançou a mão em tom de dispensa. “Eu vi lá de cima. Está indo para um lugar que não vai chegar até aqui. Estamos a salvo.”
“Fique,” a mulher pediu novamente. “Deixe que agradeçamos. Vamos fazer algo para você comer. Deve estar faminta.”
“Vocês estão a salvo, mas as árvores-coração não estão,” disse Nissa. Ela olhou para Ashaya e fez um cumprimento de cabeça. As duas partiram se dizer mais nada. Não havia tempo; elas já demoraram demais.
Zendikar compartilhava a mesma ansiedade de Nissa. Enquanto corriam pela floresta, as árvores e raízes davam licença, e rochas saíam do seu caminho. Galhos se ofereciam para que ela se segurasse e seguisse em frente. Com a ajuda da floresta, Nissa se movia na mesma velocidade que Ashaya.
Quanto mais perto ficavam, mais forte era a sensação de destruição e perda.
Era tarde demais.
Nissa parou quando viu.
A mata não era mais fechada; era um ermo corrompido. Tudo o que ainda havia daquele bosque de antiquíssimas árvores-coração era um único par. Elas permaneciam ali, entrelaçadas por sua ligação, no centro de uma clareira cálcica esbranquiçada. Todas as outras foram transformadas em poeira.
E agora o terceiro Eldrazi se empoleirava em uma das duas árvores-coração restantes, e seus tentáculos se enroscavam no tronco da árvore – ele estava prestes a sugar a vida dela.
“Não!” clamou Nissa.
Tanto ela como Ashaya se lançaram, mas o Eldrazi foi rápido demais. Ele apertou e se alimentou.
A corrupção se espalhou rapidamente pela árvore, por todo o seu tronco, galhos, e na direção da vinha que as unia.
Com um rosnado feroz, Ashaya bateu no monstro que caiu do seu poleiro. Ele caiu rolando no chão.
Menos de uma respiração depois disso, Nissa chamou a terra dos dois lados da área corrompida, e sua vontade se fez: como suas ondas gigantes, o solo se ergueu e quebrou contra o Eldrazi.
O monstro foi morto e enterrado com um só golpe.
Ashaya olhou para Nissa. Três. Elas Eliminaram os três.
“Mas tarde demais.” Nissa virou-se para ver o par de árvores-coração.
A vinha que se pendurava entre as duas fora partida. A parte corrompida se desintegrara. Agora o elo que restava da ligação entre as árvores estava pendurado, flácido, na única árvore que sobrara na mata, voando com a brisa – que talvez seja algo novo para uma árvore que vivia protegida por uma mata fechada.
Tanta coisa mudou para esta árvore em tão pouco tempo… Como Nissa conseguiria explicar tudo?
A companheira daquela árvore se fora… para sempre. Mas a árvore que permanecera não tinha como saber; ela manteria sua conexão, continuar a tentar alcançá-la com sua mão, seu coração, sua alma – e só encontraria o vazio, sempre o vazio.
Como Nissa explicaria isso? Como ela contaria que a companheira não a deixara por escolha própria? Que uma árvore-coração nunca abandonaria outra, jamais?
Nissa se aproximou da última árvore caminhando pelos escombros onde jazia o Eldrazi. Ela pousou a palma da mão em seu tronco. “Sinto muito,” disse. “Desculpe por chegarmos tarde demais.” Sua garganta apertou e o calor queimava os cantos dos seus olhos.
Ashaya se uniu a Nissa, pousando sua palma enorme no tronco da árvore. Nissa conseguia sentir a mensagem que Ashaya enviava à árvore, em nome de Zendikar. Zendikar prometeu que a companheira daquela árvore-coração nunca seria esquecida. Zendikar lutaria em nome dela. Zendikar não descansaria até que os Eldrazi partissem, até que este tipo de dor fosse impedido para sempre.
Zendikar ainda sonhava com esse dia.
Ashaya ainda tinha esperanças.
Nissa se inspirou na esperança da sua amiga.
Elas manteriam a pressão. Elas continuariam para sempre – até que encontrassem o titã, até destruí-lo, até que vencessem.
Nissa e Ashaya passaram dias perscrutando a Matavasta. Enquanto continuassem a ver Eldrazi regularmente, enquanto a floresta ficasse mais povoada com proles, Nissa acreditava que estavam no caminho certo – na direção do titã.
Sua perseguição as levara até a ponta sul da floresta, além da mata fechada, na direção do mar.
Talvez o aroma de água salgada significava que o titã que perseguiam não estava em Tazeem. Que seja. Elas viajariam de barco até Guul Draz então, ou Akoum, ou Murasa – Nissa até voltaria para a terra destruída de Bala Ged se fosse necessário.
Mas por ora, apenas agora, ela pararia por um momento para tomar um gole d’água. Elas haviam chegado em um riacho fino e sinuoso que levava a uma cachoeira; Nissa supunha, pelo ruído da queda d’água, que ela estava logo além do bosque onde se encontravam.
Nissa desceu do seu poleiro sobre a cabeça de Ashaya, contente por ter um momento na sombra. Ela se ajoelhou à beira do riacho e juntou suas mãos para beber.
Entre goles de água fresca, Nissa inclinava a cabeça para trás, observando a beleza deste bosque intocado. De onde ela estava não havia corrupção Eldrazi à vista. Era um refúgio perfeito de Zendikar.
Ashaya uniu-se a ela, sentindo-se em paz.
Este refúgio de Zendikar estava com sorte. Não conhecera a dor ainda. E Nissa prometeu que faria tudo o que pudesse para garantir que isso nunca lhe aconteceria.
Satisfeita, Nissa olhou para sua amiga. “Vamos andar até o mar?”
Ashaya se curvou, abaixando sua mão, e Nissa agarrou o polegar de galhos espessos…
… e, então, seu fôlego travou na garganta – ela não conseguia respirar.
Uma dor lancinante a atravessou pelo peito, congelando-a no lugar.
Um Eldrazi… Deve ter sido um Eldrazi… Ela fora estocada no peito.
De onde viera aquilo?
Ela olhou para baixo, esperando ver um tentáculo ou protrusão óssea saindo do seu peito – mas não havia nada.
Nissa olhou por todo o bosque – nada. Nenhum Eldrazi. Sem corrupção.
Abaixo dela, a mão de Ashaya começou a tremer. A elemental sentia dor também. Uma dor excruciante.
Uma segunda onda de dor mais brutal atravessou Nissa; dessa vez pareceu que suas entranhas tinham sido arrancadas da barriga.
Ashaya se debateu, e Nissa caiu da sua mão às cambalhotas, ainda tentando puxar o ar.
Nissa estendeu sua mão para tocar sua amiga, mas o mundo parecia se expandir infinitamente. O espaço entre Nissa e Ashaya se ampliava em um abismo sem fim.
Não eram as entranhas de Nissa que tinham sido arrancadas, eram as de Zendikar – Ashaya – e a conexão entre elas estava sendo arrancada.
Ashaya se virou e cambaleou na direção de Nissa com movimentos incertos e empolados. Nissa não conseguia mais sentir a elemental. Será que Ashaya não conseguia mais senti-la também?
“Ashaya!” O grito de Nissa saiu aos pedaços.
A elemental inclinou a cabeça na direção da voz de Nissa. Ela a ouvira – ou talvez fosse apenas porque a elemental estava caindo. Ashaya desmoronou com o corpo arbóreo na direção de Nissa.
Nissa se preparou para o impacto – não havia mais nada a fazer.
Mas, então, no último momento, Ashaya esticou um braço, lançando-se para o lado e evitando cair sobre a pequena e quebrável elfa.
Nissa assistiu os galhos de Ashaya se partirem em mil pedaços pelo chão. “Não!”
Uma terceira onda de dor rasgou Nissa em pedaços.
E tudo ficou escuro.
Por um tempo interminável, não havia nada.
Sem som.
Sem luz.
Sem vida.
Quando o fôlego de Nissa voltou, foi em inspirações profundas; ela não conseguia puxar ar suficiente.
O silêncio em torno dela era pesado e opressor. E sua visão estava entorpecida.
Ashaya. Ela só conseguia pensar em Ashaya.
Nissa estendeu sua vontade sobre a terra para invocar a elemental.
Mas não havia nada para invocar.
Ashaya.
Ela estendeu-se mais fundo, lançando seus sentidos para dentro da terra.
Mas era dali que vinha o silêncio.
Os ouvidos de Nissa zuniram e o mundo girou.
Ashaya.
Ela se arrastou sobre a pilha de galhos e montes de solo. Seus dedos trêmulos tocavam levemente os pedaços partidos. Qual farpa de madeira fora o dedo de Ashaya? Qual folha crescera no topo da sua cabeça? Onde estavam as raízes que seguravam sua alma?
Ashaya.
O silêncio era esmagador.
Nissa levantou-se com dificuldade, mas a sensação de vertigem a derrubou novamente. Ela atingiu o chão com um estrondo. Uma rocha pontiaguda lhe fez um corte na bochecha, e um monte de terra lhe pressionou o lado do corpo. A terra não a aninhava ou a protegia – ela machucava.
Não.
Isso não fazia sentido algum.
Ashaya.
Nissa puxou-se para ficar de pé, segurando-se em galhos espinhosos e vinhas fracas.
Sozinha, ela conseguiu chegar à beira da floresta onde o riacho se transformava em cachoeira.
Ela olhou pelo terreno, procurando por sua amiga.
A vista não era o que Nissa esperava. Elas chegaram nos limites de Tazeem – o mar não estava muito distante. Mas havia outro mar mais abaixo, feito de pilhas de Eldrazi, tão espessas que Nissa não conseguia ver o solo.
Será que foram estes Eldrazi? Será que fizeram algo com Zendikar? Será que eles levaram Ashaya?
Ashaya.
Nissa olhou de volta para os galhos caídos.
Não havia nada lá. Ashaya não estava logo atrás dela.
Ela continuou o caminho aos tropeços pela escarpa até o mar de Eldrazi abaixo. Nissa conseguia discernir a silhueta do farol do Portão Marinho ao longe. Mas ela não via Ashaya.
Se estes Eldrazi tomaram Zendikar, tomara Ashaya; Nissa os forçaria a devolvê-las.
Ela caiu uma terceira vez. A terra não reagia à sua presença. Os espinheiros não se moviam para evitar que ela se arranhasse. Os cipós a faziam tropeçar ao invés de lhe dar apoio.
A sensação era a de não ter seus próprios braços e pernas. A sensação era a de não ter parte da sua alma.
Nissa cambaleou até a massa de Eldrazi. Eles rangiam dentes e arranhavam em sua direção.
“Ashaya!” ela chamava, lançando-se entre as monstruosidades. “Ashaya!”
Ela tentou estender sua vontade para a terra mais uma vez, mas não havia onde se apoiar; havia tanta corrupção, tantas trilhas cruzadas de cal – será que ainda restava algo de Zendikar, afinal?
“Cuidado!”
O brado veio detrás, mas antes que Nissa conseguisse se virar, algo grande, afiado e rígido a atingiu nas costas, e ela caiu no solo corrompido.
Uma nuvem de poeira cálcica a engoliu, e quando ela tentou se erguer, dois braços a mantiveram perto do chão, empurrando-a pelos ombros. “Fique abaixada.”
Nissa torceu-se o máximo que pôde para ver o que a prendera no chão. Era uma tritã com armadura espessa e pontiaguda feita de conchas e corais.
“O que você está fazendo?” a tritã perguntava em tom acusatório. “Você quase entrou naquela coisa.” Ela apontou para a direita com o queixo, onde um Eldrazi enorme estava esmerilhando algo. “Você se feriu?”
Sim, Nissa estava ferida. A dor ainda estava lá, nas suas entranhas, no seu peito – por tudo; por todos os lugares onde Zendikar não estava – e Zendikar não estava mais em lugar algum.
“Eu não vejo ferimento algum.” A tritã avaliava o estado de Nissa. “Sem corrupção.” Ela largou os ombros de Nissa; o Eldrazi já passara por elas.
“Escute, eu sei que estamos em um lugar péssimo agora, mas preciso que você fique aqui comigo,” pediu a tritã. “É o único jeito de sairmos disso aqui vivas. Você me ouviu?”
“Sumiu.” Nissa piscou uma vez. “Você sentiu também?”
“Eu não sei do que você está falando,” disse a tritã, ficando de pé. Pela primeira vez, Nissa notou que a tritã estava bastante ferida. Uma das suas pernas tinha um torniquete apertado que já encharcara de sangue. “Mas eu sei que é hora de irmos.” Ela puxou o braço de Nissa. “Vamos!”
O puxão. O sangue. A tensão na voz da tritã. Os Eldrazi se aproximando. As realidades do mundo em torno de Nissa subitamente começaram a pressionar sua mente.
Ela teve um calafrio. Era como se tivesse caminhado a esmo e às cegas para dentro desse pesadelo.
Ashaya não estava aqui; isso estava claro. E, agora, Nissa estava em perigo extremo. A tritã também. Eram muitos os Eldrazi.
“Vamos.” A tritã puxou novamente. “Chegaram!”
Um dos Eldrazi – um robusto, com membros demais – se arrastava na direção delas.
Nissa tinha de fazer alguma coisa. Ela se forçou a ficar de pé. “A saída é por ali.” Ela apontou de volta para onde veio, na direção da escarpa.
A tritã assentiu e a seguiu, meio pulando e meio se arrastando. Ela nunca conseguiria sair, não estava indo rápido o suficiente. Nissa tinha de fazer mais.
“Peguei você.” Nissa ergueu a tritã por baixo do ombro. Bem a tempo. O Eldrazi mais próximo lançara um tentáculo nelas.
Nissa correu.
Como ela não vira nada disso quando entrara aqui? Todos os corpos e a destruição. A corrupção.
Aqui era o Portão Marinho – ela se lembrou de ter visto o farol. O Portão Marinho era uma das sementes das civilizações de Zendikar. Era uma central de comércio, um baluarte de conhecimento. Havia poder e magia aqui. Milhares de pessoas viviam e trabalhavam aqui, e outros milhares se refugiaram na segurança das suas muralhas. Como seria possível que o Portão Marinho agora fosse… isso? Como seria possível que o Portão Marinho tivesse caído?
Será que era por isso que Ashaya se fora?
Um tentáculo caiu, cortando o desespero de Nissa.
Um Eldrazi longo e púrpura se enfiou em seu caminho.
Ela parou de repente, adaptou o peso da tritã em seu ombro e virou-se, procurando por uma abertura, uma saída. Tudo o que ela via eram tentáculos e membros, por todos os lados.
A tritã se torceu, tensa. “São muitos Eldrazi!”
Nissa agarrou a cintura dela com um braço firme, segurando-a. “Eu sei.”
Ela inspirou e desembainhou sua espada.
Era uma sensação estranha.
Era algo que ela não fazia há muito tempo. A lâmina não parecia ter equilíbrio, a empunhadura lhe parecia dura e antinatural. Era completamente diferente das linhas de força que ela se acostumara a manipular, nada parecido com um exército de elementais, ou com a própria terra, mas era o que ela tinha. Não restava outra escolha.
Com toda a sua força na espada, Nissa cortou a parte carnuda do Eldrazi comprido. O impacto reverberava nas palmas das suas mãos, e ondas de dor subiam até o coração. Ela se esquecera da fisicalidade de uma luta dessas. Mas ela não parou. Ela puxou o sabre do corte superficial que fizera e o cortou novamente.
Desta vez, o Eldrazi revidou rente ao chão com uma das suas longas pernas, e Nissa perdeu o equilíbrio completamente. Com o peso esquecido da sua espada e a tritã praticamente nas costas, ela não conseguia manter a firmeza no chão.
Elas caíram destrambelhadas e a espada de Nissa girou para longe, deslizando pelo calcário de corrupção.
O braço do Eldrazi veio para cima delas mais uma vez – mas logo antes de atingi-las, a tritã arrancara a conha apiciforme que protegia seu ombro e a segurou como se fosse um escudo. A mão do Eldrazi bateu com força, mas não atravessou.
Ele retraiu; ele tentaria novamente em breve.
“Você acha que consegue segurá-lo enquanto eu pego minha espada?” Nissa perguntou à tritã.
Ela assentiu com a cabeça.
“Já volto.” Nissa seguiu aos tropeços pelo chão até sua espada, mantendo-se abaixada e esperando não ser detectada pelos sentidos do Eldrazi.
Ela tentou três vezes alcançar a terra para conseguir a espada, inclinando o chão para que deslizasse em sua direção, pedindo ajuda de Zendikar. Mas não houve resposta.
O silêncio infinito continuava.
Nissa sentia-se tão sozinha. No meio desse enxame de Eldrazi, ela se sentia como se não restasse mais nada.
Um dos tentáculos traseiros do Eldrazi bateu no chão quando Nissa mergulhou atrás da sua arma. Sua mão se fechou na empunhadura, mas o tentáculo parou sobre seu braço. Era como se o monstro soubesse, como se tivesse mirado para impedi-la de tirar o braço. Mas não tinha como ela saber. Eles não sabiam – não desse jeito.
Ela puxou seu braço com todas as forças, mas o tentáculo era pesado demais. Ela estava presa.
O pânico a preenchia. O que aconteceria agora? Ele se alimentaria dela? Seu braço podia estar sucumbindo à corrupção Eldrazi naquele momento – como ela saberia que seria o fim?
De algum lugar acima dela, três cordas com ganchos afiados na ponta foram lançadas. Cada gancho prendeu-se rapidamente a uma parte do tentáculo sobre Nissa.
No momento seguinte, o tentáculo foi puxado de cima do seu braço – e arrancado do corpo do Eldrazi.
Enquanto o Eldrazi guinchava, Nissa rolou para longe. A primeira coisa em que pensou foi no braço. Sem ousar respirar, ela olhou para ele. Não havia sinal algum de corrupção. Ela sobreviveria. Mas seu ombro estava ferido o suficiente para ela ter de empunhar a espada com a mão esquerda.
“Aqui em cima!” Outra corda com gancho desceu e Nissa a seguiu para ver um mar de faces que olhava para ela de cima de uma rocha flutuante. A face pálida de um kor estava na frente. Nissa nunca sentira tanta gratidão em ver um kor em sua vida.
“Pegue a corda. Prenda a tritã nela,” instruiu o kor.
Nissa virou-se no próprio eixo, tendo esquecido da tritã no tumulto. Ela suspirou aliviada ao ver a tritã ainda no chão, arrastando-se.
“Isso vai servir,” disse a tritã resfolegante. “Me prenda nela.”
Nissa se ajoelhou e prendeu a tritã com o gancho. Depois, ela prendeu a corda ao seu próprio cinturão para puxar a tritã junto com ela em sua subida.
Ela deu um leve puxão na corda para indicar que estavam prontas, e virou-se para a tritã. “Meu braço deslocou. Pegue a espada.”
“Com prazer.” A tritã parecia entusiasmada em ter a arma nas mãos. Ela agarrou a espada de Nissa com uma das mãos e segurou o gancho com a outra.
Nissa começou a subir, puxando a tritã com ela, compensando com seu braço esquerdo. Enquanto isso, o kor e seus companheiros puxavam a corda, mão ante mão. Isso dobrava, ou até triplicava, a velocidade de subida. Ela esperava que fosse suficiente.
Tentáculos e outros membros se agitavam em torno dela, e ela conseguia ouvir os sons da tritã cortando o Eldrazi mais abaixo. Nissa ignorava tudo, concentrando-se apenas na corda, apenas em sua subida.
Em certo ponto, com braços cansados e mãos suadas, o vento bagunçou os cabelos de Nissa com ar puro e fresco. Elas haviam subido além do enxame. O dia não estava tão escuro quanto parecia lá de baixo. Nissa respirou pela primeira vez, em um bom tempo, um ar que não estava fedendo a Eldrazi, podridão ou sangue. Ela respirou fundo e se permitiu um momento de pausa.
“Quase lá,” avisou o kor enquanto puxava mais um pedaço da corda. “Pegamos vocês.”
Nissa sorriu para ele. Depois, ela olhou para a tritã. “Nós vamos conseguir.”
A tritã devolveu o sorriso e segurou a espada de Nissa com menos firmeza; não havia Eldrazi para combater ali em cima. “Nós vamos conseguir.”
A selva de Eldrazi que elas abandonavam mais abaixo tinha uma copa de carapaças ósseas, vinhas de tentáculos e galhos bifurcados. Nissa não conseguia ver nenhum pedaço do chão, nem mesmo o lugar onde elas estavam. Elas deviam suas vidas aos zendikari na rocha acima delas.
“Não!” a tritã gritou.
A corda afrouxou e Nissa seguiu o olhar horrorizado da tritã – para cima. Um Eldrazi do tamanho de um leviatã grande se lançara de cima de uma segunda rocha flutuante. Ela se chocou contra a rocha onde estavam o kor e seus companheiros. Três dos zendikari foram esmagados pela monstruosidade gigantesca – e um caiu pela beirada da rocha, tombando ao chão além de Nissa e da tritã. Não havia nada que elas pudessem fazer para impedir que ele caísse.
Os demais zendikari desembainharam suas armas e cortaram os membros azuis e espessos. Nissa agarrava-se à corda enquanto ela se balançava violentamente sob a rocha.
“É grande demais!” gritou a tritã mais abaixo.
Ela tinha razão. “Me dê a espada.” Nissa estendeu a mão para ela.
“O que você vai fazer?”
“A espada!”
A tritã entregou a espada a Nissa, que a embainhou, se desprendeu do gancho e subiu, ignorando a dor em seu ombro.
“Tome cuidado!” clamou a tritã.
Passou-se a época de tomar cuidado.
Nissa manteve seus olhos direcionados para cima enquanto subia. As únicas pistas sobre o que estava acontecendo na rocha acima dela eram sons: rangidos, cortes, esmeris. Era o kor e seu grupo que cortavam o Eldrazi, ou seria o contrário?
Quando ela chegou ao topo, viu uma bagunça de membros e tentáculos. Ela se puxou acima da beira afiada e serrilhada da rocha flutuante, desembainhou sua espada e começou retalhando a carne azul à sua frente.
Fluidos de Eldrazi espirravam em sua face, nublando seu campo de visão. Seu próximo golpe falhou, cortando nada além do ar. Nissa virou-se e golpeou novamente onde ela pensara ter discernido um tentáculo através da gosma espessa que corria sobre seus olhos. Este falhou também. Ela limpou a face com sua manga a tempo de ver quatro chicotes brilhantes voarem pelo ar e atingirem o lado do corpo do Eldrazi. Os chicotes se enroscaram em torno de quatro dos membros espessos do Eldrazi. Com um guincho pouco natural, a monstruosidade se debateu convulsionando – sendo puxada para trás em seguida, e arrancada da rocha.
Dois dos três zendikari presos embaixo dele cambalearam de pé, recuperando o fôlego. O terceiro deles, um elfo, continuou caído e sua pele já era uma tela de cal branca.
“Me ajudem a puxar!”
Nissa girou com espada em riste ao ouvir a voz.
Havia um homem agachado na beira da rocha – um homem enorme, humano, com pele da cor da casca da jurworrel e armadura brilhante, com padrões e formas que Nissa nunca vira antes. Ela sabia instantaneamente que ele não era de Zendikar. Um planinauta.
Com uma corda em cada mão, o planinauta puxava tanto a tritã como os quatro outros Zendikari de volta para a rocha. Apesar de ele ter pedido ajuda, não parecia que precisasse de ajuda – de Nissa ou dos outros que ficaram olhando boquiabertos. Ainda assim, Nissa correu em sua direção. Ela agarrou a corda dos companheiros do kor e puxou.
Por que ele estaria aqui? Ela tinha imaginado que todos os outros planinautas haviam partido há muito, especialmente os que não eram nativos de Zendikar.
“Jori En!” chamou o planinauta, ao ver a tritã que subia pela beirada da rocha. “Jori En, é você! Você está viva!”
“Gideon.” A tritã parecia tão chocada quanto o planinauta. “Pensei que você tinha morrido. Quando você caiu com o Eldrazi…”
“Não foi tão ruim quando parecia.” O planinauta, Gideon, sorriu. Nissa notou que seu sorriso era torto. “Pensei que você tivesse morrido.”
“Consegui me virar,” disse Jori.
“Que bom”, respondeu Gideon. “Eu o trouxe aqui. O homem que pode ajudar, o nome dele é Jace. Ele tem jeito com enigmas – e ele já sabe uma coisa ou outra sobre edros, veja só.”
“Onde ele está?” Jori olhou em volta.
“Lá no acampamento.” O planinauta apontou com o queixo. Depois, ele olhou para o restante da rocha, procurando pelos zendikari; seu olhar passou por Nissa na mesma velocidade que passou pelos demais. “Não se preocupem, eu vim tirar vocês daqui. Esse é o grupo todo?”
O kor assentiu solenemente. “Éramos o último grupo. Pensamos que vocês tinham desistido de nós.”
“Nunca.” Gideon sorriu novamente. “Tem um acampamento mais ao sul – ou pelo menos, logo vai ser. Por ora, ele está seguro, e não é longe daqui. Mobilizem-se e me sigam.”
Era impressionante como ele passara rapidamente dos gracejos para o comando. Mas ninguém parecia questionar sua autoridade – ou seu tipo incomum de armadura. Se este homem sabia de um lugar seguro, o povo zendikari o seguiria.
Ele carregou Jori sobre um dos seus ombros largos; o restante do grupo estava bem o suficiente para seguir caminho. Com um movimento de pulso da sua lâmina quádrupla, ele agarrou uma vinha espessa da rocha flutuante mais próxima – a mesma de onde o Eldrazi se lançara antes. Ele a puxou firmemente e a amarrou em um pedaço de rocha perto dos seus pés. “Vamos atravessar, dois de cada vez. Vamos ficar juntos. Quando chegarem na próxima rocha, esperem por mim.”
Os zendikari se prepararam, assentindo com a cabeça, e a primeira dupla começou a subir.
Gideon era um bom líder. Ele era firme e certeiro, e era forte. Ele comandava com confiança, direcionando-os de rocha em rocha.
Nissa conseguia ver o lugar onde a praga dos Eldrazi ainda não tinha se espalhado; não estava tão longe. Parecia que eles chegariam lá sem ter de descer de volta à batalha, e este planinauta sabia o caminho. Nissa sentia-se grata por isso. Ela manteve os olhos na trilha à frente e o seguiu até chegarem nos limites da região. Lá, ele direcionou o grupo de volta para o chão, e sua missão passou de atravessar rochas flutuantes por vinhas para marchar com dificuldades pelos mortos – a carnificina de monstros e pessoas misturadas com a destruição.
Enquanto passavam por essas trincheiras, só tiveram de enfrentar três Eldrazi. Nissa observou o planinauta Gideon em batalha. Sua arma brilhava quando ele chicoteava monstruosidades, e luzes irrompiam em sua pele quando um tentáculo ou membro chegava perto demais. Este homem era poderoso.
Nissa esperou até que o campo estivesse limpo, até ver que a tensão caíra dos seus ombros. Então, ela caminhou até a dianteira do grupo, acompanhando o passo de Gideon. Ela tinha perguntas a fazer. Se havia mais alguém que poderia ter sentido o que acontecera a Zendikar, seria outro planinauta em sintonia com o poder deste mundo. E ela precisava saber.
Gideon carregava sua arma brilhante em uma das mãos e Jori na outra. A tritã desmaiara pouco antes, mas o kor do grupo era curandeiro e trabalhara nela, garantindo aos demais que ela ficaria bem se a levassem logo ao acampamento.
Sentindo sua presença ao lado dele, Gideon olhou para Nissa.
“Oi,” cumprimentou Nissa.
“Olá.”
“Meu nome é Nissa.”
“Gideon. Prazer em conhecer.” Ele sorriu com seu sorriso torto.
Era um mistério para Nissa como ele conseguia sorrir com tanta frequência em frente a este nível de devastação.
“Você lutou bem lá,” ele disse. “Derrubou um dos grandes.” Ele se referia a um dos Eldrazi que Nissa o ajudara a derrubar no caminho até ali.
“Não é como estou acostumada a lutar,” reconheceu Nissa. “Pelo menos, não ultimamente. Suponho que antes de tudo acontecer, era assim que eu lidava com as coisas – com flechas e sabre -, mas agora estou acostumada com muito mais. Os três juntos não deviam ser um problema para mim. Não seriam um problema. Mesmo que eu estivesse sozinha. Tenho poderes maiores do que o que você viu.”
Gideon riu. “Fico contente de ouvir esse entusiasmo! Não se preocupe, teremos muitos momentos para você provar seu valor nas batalhas por vir.”
“Não é isso q… não. Não estou preocupada com isso, em provar meu valor.” Nissa sentia a afronta. “Eu… sou uma planinauta. Como você?”
“Ah?”, Gideon inclinou a cabeça, olhando para ela com zelo.
“É por isso que estou falando com você, afinal. Eu queria saber se você, como mago poderoso, sentiu algo estranho. Mais cedo. Quando o sol estava a pino. Aconteceu de repente. Foi só… arrancado.”
Gideon franziu o cenho. “O que foi arrancado? O que aconteceu?”
“Quando você busca seu poder – eu vi as espirais brilhantes – ainda está lá? Você não sente nada diferente? Nada mudou?”
“Sim. Não.” Gideon meneou a cabeça. “Ainda está aqui. Nada mudou. Por quê? O seu…?”
Nissa o olhou nos olhos. “O meu desapareceu. Foi arrancado de mim. Eu nunca senti tanta dor. Eu nunca me senti tão sozinha. Zendikar… se foi.” Quando ela disse as palavras, a perda voltou por completo. Ashaya. Seu peito apertou o espaço vazio dentro dela.
“Sinto muito,” disse Gideon. “Mas eu…”
A conversa foi cortada por um brado vindo de cima, mais à frente. “Eles voltaram!” Uma escada de corda desceu de um edro flutuante gigantesco a pouca distância deles. “Ele os trouxe de volta!”
Três figuras desceram rapidamente e correram atrás deles, liderados por uma kor.
Nissa deu um passo para trás.
“Dest, é você?” a kor se jogou nos braços do kor curandeiro. “Pensei que…” sua voz embargou em meio ao abraço dele.
“Foi ele,” disse o kor chamado Dest, indicando Gideon. “Ele nos salvou.”
“Obrigada! Obrigada mesmo!” a kor tomou a mão de Gideon.
Os olhos de Gideon se encheram de lágrimas, e ele envelopou a pequenina mão da kor com suas grandes mãos. “Fico feliz em ajudar.”
Havia gente comemorando no acampamento acima deles, e mais Zendikari desceram a escada na direção deles, em acolhida.
Nissa se removeu do bolsão de pessoas emocionadas e assistiu de longe o povo rindo e chorando, e depois subindo a escada de volta ao que era prometido como um acampamento.
Ela não queria ser absorvida no afeto deles agora. Não era lá onde ela pertencia. Ela pertencia junto a Zendikar. E era tudo o que ela queria – se ligar com o mundo, com sua amiga, novamente.
Ela se ajoelhou à sombra do edro gigante e pousou sua palma no chão fresco.
“Sou eu”, sussurrou. Ela se preparou – cada pedaço do seu ser -, cada parte do seu corpo e da sua alma. E apesar de talvez sentir mais medo do que nunca – medo do que ela encontraria… ou do que não encontraria – mandou todo o seu ser para dentro da terra, se estendendo com a profundidade que conseguia, buscando e examinando… Com esperança. “Onde você está?”
Silêncio.
Zendikar.
Ela buscou mais.
Só havia silêncio.
Ashaya.
Sua amiga não estava lá.
Zendikar estava vazia.
Nissa estava vazia também.
Ela estava sozinha.
Quando o sol se pôs no mundo oco, Nissa ficou de pé e caminhou até a escada, e sua mão segurava firmemente a rígida empunhadura da sua espada.
Traduzido por Meg Fornazari
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