Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

O CREPÚSCULO RENASCE

As florestas de Innistrad não eram um lugar acolhedor: densas, sombreadas, os galhos retorcidos das árvores e folhas sussurrantes obscurecendo até mesmo a luz cintilante da lua cheia de inverno. Como muitas outras coisas nas charnecas, não foram feitas para a vida humana. O reduto de cadáveres e espectros.

Ainda assim, Algli se lembrava de uma época em que as raízes não pareciam se soltar do chão da floresta para passear enquanto ela passava, quando a sensação de ser observada por olhos famintos surgia apenas quando ela viajava mais para dentro. Agora, apenas um olhar para o limite florestal da insignificante segurança da cidade trazia aquela pontada de medo para sua espinha.

Invasora do Cemitério | Arte de Chris Rallis

Essa mudança ocorreu durante a vida de Algli. Ela e o marido eram curtidores, moravam fora da cidade devido ao fedor de sua profissão. Seu curtume era pequeno, mas seu trabalho era bom, e eles se orgulhavam disso; seu marido manuseava as peles enquanto Algli transformava o couro em armaduras, bolsas e odres.

Quando os primeiros rumores de problemas começaram, eles continuaram trabalhando, mantendo suas cabeças baixas. Por um tempo, os negócios foram bons: todos queriam proteção. Ataques de lobisomem aumentaram. Carniçais famintos por carne se tornaram uma visão comum nos arredores da cidade. Mas ainda assim, ela pensou que se eles simplesmente fechassem as janelas, mantendo horários restritos, eles estariam seguros. Uma esperança tola, frustrada por uma incursão de carniçais. Não eram meros zumbis estúpidos, eles trabalhavam em conjunto, batendo nas portas, agitados em um frenesi voraz pelo cheiro da carne e do óleo.

Algli sobreviveu, mas nunca foi por sorte. Seu marido e seu filho mais novo se lançaram entre ela e os carniçais, e ela incendiou o curtume. Seu filho mais velho morreu de queimaduras.

Alguns a consideravam sortuda; ela tinha sobrevivido.

Ela enterrou seus corpos na fossa do curtume, orando em vão aos anjos para que o carvão e a terra ocultassem o cheiro de decomposição dos mortos-vivos.

Não foi assim que aconteceu. Um invocador de carniçais voltou suas cruéis atenções para a cidade. O cemitério da igreja, o curtume, o pântano, os enlutados em procissão: todos eram brinquedos para ele, e os restos de sua família dançavam com suas palavras.

Foi assim que ela conheceu Olutio. A filha dele foi assassinada e reanimada pelo mesmo invocador de carniçais. Eles haviam trabalhado juntos, usando os rituais proibidos de Olutio, para matar o invocador do carniçal e reenterrar os mortos. De pé sobre suas novas sepulturas, Olutio falou com ela pela primeira vez sobre o Senhor Enterrado.

“Sob a vigília do Senhor Enterrado,” disse Olutio, “os mortos permanecem mortos. A sepultura é Dele; a terra é Dele, e os enterrados vão descansar. Geists, carniçais, necromantes – nosso Senhor não negocia com aqueles que perturbam Seu domínio.”

Para sua família descansar, para garantir que ela teria descanso quando o mundo finalmente a levasse… foi por isso que ela ficou, quando tantos outros abandonaram a causa deles. Lentamente, o número de pessoas que os belos votos de Olutio conseguiam trazer até a floresta para ressuscitar um deus morto havia diminuído, derrotado pela violência ou cinismo, mas Algli persistiu.

Algli puxou o capuz mais para baixo sobre a cabeça para esconder seus olhos de qualquer pessoa, ou qualquer coisa, que pudesse vê-la e seus companheiros. Os três haviam feito esta jornada muitas vezes ao longo dos anos, tantas que, apesar de suas juntas doloridas e da cabra magra e teimosa que ela teve que persuadir durante os novos emaranhados de raízes através da trilha congelada, a clareira em que ela estava parecia familiar. Ainda doía o coração pensar em sua família, especialmente nesta clareira, carregando sua tocha nesta marcha sombria para trazer um deus esquecido para abrigá-los no esquecimento silencioso.

Doía saber que era o melhor que ela podia dar a eles. Eles mereciam muito mais.

Esta noite – este ritual – era sua última chance de invocar o Senhor Enterrado. Algli sabia; a quieta Sruta, com seus artesanatos e ferramentas, sabia; e o bruto Olutio havia dito isso, xingando e cuspindo para os lados ao mesmo tempo em que proclamava que esta noite – essa noite seria a fatídica noite em que eles finalmente convocariam o Senhor Enterrado para salvá-los. Esta noite era a última vez que as estrelas estavam alinhadas, que a lua estava na posição certa, que seus augúrios e cálculos refletiam os que estavam nos tomos de Olutio, e lhe diziam que o poder se reuniu a seu favor esta noite – e não se reuniria novamente por um milênio.

Os três se juntaram na clareira e prepararam o terreno, e quando a lua cheia encheu o céu, eles realizaram o ritual em um silêncio solene. Uma cabra, cascos e chifres, à imagem de um demônio. Seu sangue na terra de uma sepultura nova; cinzas e véus e os ritos sussurrados de Olutio na escuridão silenciosa.

Quando a última oração suplicante deixou os lábios de Algli, o próprio vento caiu silencioso e um arrepio sombrio percorreu seu corpo.

Despertador Extático | Arte de Tuan Duong Chu

Os três invocadores esperaram, seus rostos colados ao chão, seus braços estendidos, para que o Senhor Enterrado emergisse da caixa torácica fumegante da cabra ou do chão manchado de sangue. Mas nenhum movimento veio, nenhum cheiro de pântano sufocante, nenhum véu flutuando. As chamas não se apagaram. O sangue da cabra congelou lentamente em uma cor de ferrugem comum, manchando as runas desenhadas em uma bagunça ilegível.

Eles esperaram até o vento aumentar novamente, até a lua mover-se para lançar as sombras erradas sobre seus símbolos desenhados em cal. Foi Sruta quem se levantou primeiro.

“Você sempre foi um tolo, Olutio,” ela disse. “E você, Algli, por segui-lo. O próprio vento faz as folhas zombarem de nosso fracasso.” Com isso, ela girou nos calcanhares, com a mão no cinto, e caminhou noite adentro.

Algli sentou-se e ela olhou para Olutio na esperança de algum sinal de que ele tivesse visto e ela não. Algo predito em seus pedaços de livros.

Sua expressão soturna disse a ela tudo que ela precisava saber.

Eles falharam. Pela última vez, seus apelos, seus ritos, seus sacrifícios. Os livros apodrecidos de Olutio, a adaga afiada de Sruta e o sangue da cabra de Algli não os protegeram. E agora, parada nas cinzas de suas esperanças, de tudo o que haviam pesquisado, enquanto Olutio fazia uma careta e se virava para seguir Sruta noite adentro, Algli percebeu que todos os seus esforços foram em vão.

Não havia esperança para Innistrad.

Algli se ajoelhou nas cinzas queimadas e nas runas de sangue do cadáver da cabra faminta que ela juntou meses para pagar, para trazer aqui e ser morta para ressuscitar seu senhor sombrio. Entranhas, cinzas e a morte dos sonhos neste bosque sombrio; e quando o último de seus companheiros partiu, ela soluçou e deixou que a noite a envolvesse. Deixe-a morrer aqui, com seu fracasso. Que ela se reúna à família, livre da solidão e da vergonha.

Não importa o quanto ela quisesse em meio às lágrimas, a morte não veio. As brasas do fogo sacrificial esmaeceram e deixaram-na na escuridão. Lentamente, Algli percebeu que ela não estava sozinha. Atrás dela, ela ouviu sussurros, respiração. Um geist ou carniçal? Não, esses não respiravam, e um bandido ou traficante de cadáveres a teria atacado enquanto ela estava indefesa, distraída em seu luto. A memória de esperança cresceu nela, mais forte do que nos movimentos rotineiros que ela havia feito recentemente com Olutio e Sruta. Será que era Ele? O teste final? Algli colocou a mão no cabo da adaga sacrificial em seu cinto e se virou para encarar o observador.

Uma mulher de cabelos escuros estava sentada em um tronco apodrecido, fora do alcance do luar pálido. Estava vestida com o traje acolchoado de um guerreiro, com a mão ao lado do corpo, cobrindo uma mancha escura. Sua outra mão repousava sobre uma lança com pontas em estilo antigo. Mais antigas ainda do que as lanças que Algli vira exibidas na igreja antes de ela parar de frequentar e voltar sua fé para os lados mais sombrios do mundo. A lança não significava nada por si só. Muitas das igrejas de Avacyn foram saqueadas. Uma pretensa ladra, então, talvez ferida por Olutio ou Sruta? Algli mudou de posição, cautelosa. Ela era velha, mas ser velha em um mundo tão cruel como este significava que ela era inteligente ou mortal. Algli podia não parecer, mas ainda havia bravura nela.

Liesa, Arcanjo Esquecido | Arte de Dmitry Burmak

A estranha mulher inclinou a cabeça, sua expressão era pacífica.

“Não quero fazer mal a você,” a mulher disse. Apesar do ferimento, sua voz era clara. Ela acenou com a cabeça para o fogo sacrificial morrendo. “Seus rituais. Você sabe o que convocou?”

“Um senhor imortal para trazer o silêncio. Para nos proteger dos vampiros, dos lobisomens, para colocar os mortos ressuscitados em um descanso eterno,” Algli disse, incapaz de esconder o estremecimento em sua voz. Algo sobre a graça silenciosa daquela mulher perturbada. Mesmo sem armadura e em repouso, ela exalava a desenvoltura de uma guerreira experiente.

“Imortal, sim,” a mulher disse e se moveu para frente. “Mas o Senhor Enterrado nunca foi alguém que protegeu. Ele está aqui e está com fome.” À luz bruxuleante da tocha, Algli viu que as sombras atrás da mulher eram padronizadas, brancas e cinza – e enquanto ela observava, as sombras se desenrolavam na forma elegante das asas de rapina.

Um anjo sentou-se diante dela.

Algli cambaleou, quase caindo de joelhos novamente. As antigas representações de Avacyn – auréola de luz, salvadora, guardiã – passaram por sua mente.

“Minha senhora,” Algli disse. As desculpas borbulharam – pelo sacrifício, pela dor, por perder a esperança – mas ela não deu voz a nenhuma delas. “Você está aqui para me julgar?”

“Não para julgar, mas para negociar.” O anjo inclinou sua cabeça. “Eu falei com demônios uma vez. Eu fui vento e silêncio. Você vai me perdoar por ver sua tristeza e não dizer nada.”

“Por quê aqui?”

“Eu sei tão bem quanto você.” O anjo gesticulou para os restos mortais da cabra. “Fui compelida a atender seu chamado.”

A esperança ressurgiu em Algli, aguda, dolorosa, tola. “Você é o Senhor Enterrado?” ela deixou escapar.

O sorriso do anjo era suave, não zombeteiro. “Não, mas eu também já tentei negociar com ele. Para acalmar os mortos-vivos, para banir os geists, para trazer a paz; tudo o que ele disse e escreveu. Não se engane: o silêncio que ele traz é apenas para amplificar a voz dele, a mortalha que ele coloca apenas abafa e prende os outros. A única alegria em seu mundo sufocado é a alegria que ele sente.”

Algli engoliu em seco, a mão apertando o cabo da adaga. “Minha família está morta. Ele vai garantir que seus corpos descansem.”

“Você também merece descanso em sua vida,” o anjo disse, encontrando o olhar desafiador de Algli com simpatia, com confiança, “e ser ouvida, sem derramamento de sangue.”

Algli sentiu seus velhos joelhos vacilarem novamente. Ouvir que ela merecia descanso – que tal coisa poderia existir na vida – um sonho quase esquecido.

“E o que eu devo fazer?” Algli perguntou. “Eu não fiz o suficiente?”

“Precisamos nos mover rapidamente. Seu suposto senhor foi convocado e ronda esta floresta. Não como um salvador, mas como um demônio, e ele está faminto. Seus amigos, temo, já estão mortos.” O anjo se apoiou em sua lança e se levantou, mas enquanto ela se levantava, a mancha escura sobre seu gibão se espalhou e, como um mortal, o ser divino vacilou.

Algli pensou no barbudo Olutio e na sarcástica Sruta, na floresta, perseguidos; e em seu marido no leito de morte, e ela estendeu a mão para pedir ao anjo estranho que parasse. “Você não pode salvar ninguém enquanto está sangrando. Eu posso ser uma idiota brincando com coisas que é melhor deixar no esquecimento, mas uma das coisas que aprendi é como estancar uma ferida. Sente-se antes de sair correndo para a morte certa.”

Lentamente, o anjo sentou-se novamente, suas asas dobradas atrás dela. “Sua sabedoria condiz com sua idade,” ela disse, ironicamente. “Uma segunda morte, tendo acabado de retornar, seria um desperdício, eu concordo. Mas eu estive longe por muito tempo, ao que parece. Esta floresta é estranha para mim, a terra talvez seja mais cruel. Por favor, diga-me enquanto você trabalha, Algli: o que aconteceu a Innistrad na minha ausência?”

“Sua ausência?” Algli perguntou. Ela puxou a capa sobre os ombros e começou a rasgar as bandagens do capuz. “Você enlouqueceu com os outros anjos, imagino?” Ela fez uma careta. “Sem descanso, mesmo para o divino.”

“Eu fui morta,” o anjo disse. Houve uma pausa em sua voz que fez Algli se perguntar o que ela estava escondendo. Talvez ela tivesse retornado da corrupção distorcida que se abateu sobre os outros?

“Eu vaguei, fui lançada aos ventos. Você e seus companheiros estavam certos em uma coisa – o Senhor Enterrado não morre. Parece que, como consequência de minhas relações com ele, eu também não morrerei. Sobre minhas irmãs… você diz que elas estão loucas?”

“Não estão mais loucas, mas mortas. Muitos foram perdidos, mas o Bando das Garças permanece. Não o suficiente para proteger todos nós.” Algli enfaixou as costelas do anjo com firmeza enquanto ela tentava condensar sua tristeza em frases fáceis. A narração das Tribulações foi curta, a queda de Gavony, a revigorada ascensão dos nobres vampiros, os ataques dos licantropos, geists e bruxas – a ruína se transformou em uma história muito mais curta do que a agonia de viver através dela. Ela falou sobre a queda de suas irmãs anjos, todas menos o arcanjo Sigarda e seu bando; dos mortos-vivos invasores, o comércio de cadáveres, as violências dos lobisomens outrora pacificados. Das mortes de sua família, primeiro para o ataque, depois levantada de suas covas rasas para servir aos caprichos de um invocador de carniçais. “E por que não invocar um Senhor Enterrado?” Algli perguntou, sua voz se elevou em desafio. “Olutio e eu deciframos os escritos. Perguntamos: quem mais sobrou para nos salvar?”

O anjo apenas deu a Algli o mais leve de um sorriso, compreensão, e apenas compartilhar o fardo fez com que as lágrimas voltassem aos olhos de Algli. “Você não precisa acreditar em mim para andar ao meu lado, Algli,” o anjo disse. “Mesmo que seja apenas para me guiar até seu senhor, esta noite você deve erguer sua tocha e sua adaga para se salvar.”

Ela recolocou seu gibão sobre a bandagem rasgada da bainha de Algli e se levantou, estendendo a mão para a cultista idosa. “Eu sou Liesa, o arcanjo que liderava o Bando do Crepúsculo. Venha, Algli. Pelo futuro de Innistrad, vamos enterrar este senhor novamente.”

A tocha de Algli fez pouco contra a noite densa da floresta, mas, mesmo assim, Liesa estava grata por sua luz escassa. O mundo mudou de muitas maneiras, mas algumas coisas permaneceram as mesmas. Os humanos ainda exibiam uma vontade obstinada. Uma tenacidade que Liesa pensava não ser tão diferente de si mesma. Uma bênção mista.

Quanto tempo passou desde sua morte nas mãos da loucura daquele vampiro, Avacyn? Mil anos ou mais? Tempo suficiente para uma igreja se erguer em nome de Avacyn. Suas irmãs a condenaram, exilaram e executaram pelas mãos de Avacyn, porém ela havia vagado no éter por séculos, e Liesa não conseguia sentir nada além de uma tristeza muda, um grande peso com as notícias de suas mortes.

Elas nunca conseguiram chegar a um entendimento, nem mesmo buscaram saber por que Liesa procuraria a companhia e o diálogo com demônios, por que ela queria saber como os demônios percorriam o mundo, o que eles poderiam ensinar uns aos outros e agora… agora elas haviam sido privadas dessa chance por causa do lampejo das mesmas forças que Liesa procurava compreender. O equilíbrio por meio da violência controlada foi o credo pelo qual suas irmãs radiantes viveram e morreram. Todas menos Sigarda – mas esse acerto de contas, ou, Liesa torcia, essa conversa – teria que esperar.

O Senhor Enterrado a trouxe até aqui, e através do seu vínculo, ela sentiu sua fome desperta. Pois não era natural procurar um banquete depois de acordar de um sono prolongado?

Elas primeiro encontraram os restos mortais de Olutio, o homem que Algli descreveu como o líder de sua seita, o homem com conexões com restos de grimórios e o pesquisador. Seu cadáver foi mastigado e jogado até a metade no chão, suas roupas ainda molhadas com seu próprio sangue.

Garras Infernais | Arte de Naomi Baker

“É da sua ordem?” Liesa perguntou.

Algli virou o cadáver com a bota e fez uma careta. “Sim”, ela disse, e nada mais. Era tristeza ou resignação iluminada no rosto cansado da velha por sua tocha?

“Estamos perto.” Liesa olhou para o dossel, tentando ouvir algum distúrbio no solo, o domínio do Senhor Enterrado. Ela sentiu um arrepio no próprio firmamento –

E então veio a gritaria.

“Sruta!” Algli gritou. Ela hesitou. Foi Liesa quem avançou, seguindo através do mato, urtigas e pinheiros cobertos de gelo estalando como ossos sob seu passo rápido. Ela invadiu uma pequena clareira não muito diferente do bosque do ritual, árvores retorcidas e meio afundadas em um pântano frio.

O Senhor Enterrado esperava por elas em uma clareira ao luar. Liesa se lembrava dele. Ela se lembrava de falar com ele por horas – inteligente, calculista. Razoável. Um nobre entre os demônios, ele afirmava, mas, ainda assim, um demônio.

Emoldurados pela lua prateada, os enormes chifres do demônio e os farrapos de suas asas estavam cercados pelo brilho suave da lua suspensa no céu negro. Poeira se soltou de sua forma tremulante como um santo embalsamado se desfazendo de sua mortalha, e quando ele se virou para olhá-los, seus olhos eram duas estrelas frias no vazio de seu rosto macilento.

Ele estava curvado sobre Sruta. A cultista golpeou repetidamente a mão do demônio que a agarrava, cada golpe trazendo um arco de poeira da pele do demônio.

Atrás de Liesa, Algli congelou sob o olhar malévolo do demônio. Mas a atenção do Senhor Enterrado não era para a velha mulher de cabelos grisalhos, ou mesmo para a fúria da mais jovem que gritava em suas mãos. Não, ele se voltou para a própria Liesa.

“Liesa, a asa do crepúsculo,” o Senhor Enterrado disse, sua voz era uma lama macia, o convite da areia movediça, de uma sepultura vazia. “Que prazer ver uma velha amiga aqui, de todos os lugares possíveis.”

“Largue-a,” Liesa ordenou, diminuindo a distância entre eles. Ela apontou sua lança para ele. “Você já matou um homem. Lembro-me de você falando de negociação, de paz, de conhecimento. Esta é sua chance de colocar suas palavras em prática.”

O rosto do Senhor Enterrado se abriu em um sorriso de dentes afiados. “Ah, mas acho que o conhecimento é de pouca utilidade para os famintos!” Na última palavra, seus dentes cravaram em Sruta, sufocando seus gritos com uma lágrima horrível. A lança de Liesa atingiu o ombro dele, mas era tarde demais.

O Senhor Enterrado jogou a lança de lado, engolindo os últimos vestígios do sangue de sua invocadora. Seu pescoço estalou quando ele se endireitou e se lançou sobre Liesa. Ele fedia a morte.

A ferida na costela de Liesa doeu, quase fazendo com que ela tropeçasse ao se desviar para o lado. Ela teve sorte – ambos demoraram em suas invocações. A cauda do Senhor Enterrado varreu seu caminho, e ele se contorceu.

“Ah, isso clareou um pouco minha cabeça.” Sua voz era um grunhido de quem se divertia, mesmo enquanto suas garras se cravavam na argila coberta de gelo, as garras cintilando na cabeça de Liesa. Ela disparou das sombras para a luz da lua para flanqueá-lo, para se inclinar para perfurá-lo no pescoço ou na barriga.

“Você pretendia entender com o estômago vazio?” O Senhor Enterrado zombou. “Agora venha; não deixe a frágil vida desses poucos otimistas que nos uniram novamente influenciar sua decisão. O sangue deles nos serviu.”

Liesa invocou sua luz, deixou o poder crepitar na lâmina pontiaguda de sua lança. Este golpe acertou em cheio, raspando as costas do demônio e cortando uma de suas asas murchas e ondulantes. Desta vez, sua careta maliciosa foi de dor. O próprio chão cedeu sob ela. Liesa saltou e o chão desmoronou; cinzas, podridão onde antes havia crescimento. Ela abriu suas asas.

“Eu estou tolerando,” o Senhor Enterrado disse. “Mas estou com fome. Dê-me a terceira, e ela será a minha última. Nós formaremos aquela aliança que você anseia. Nós cuidaremos dos pobres humanos. Escuridão e luz: um próspero reino do crepúsculo!”

Senhor dos Renegados | Arte de Kekai Kotaki

Liesa sacudiu os braços, doloridos pelo desuso, a ponta da lança apontada para o rosto do Senhor Enterrado. Suas asas doíam. Sua costela doía. Por um momento, ela só queria concordar. O que era uma vida diante de muitas? Diante de um cataclismo? Uma velha que já havia perdido tudo o que tinha, em busca da mesma impossibilidade que Liesa?

Era tudo.

“Suas ações mostraram suas prioridades,” Liesa disse. “Mas eu vou lhe conceder outra chance, Senhor do Interred, em outros mil anos.”

O vôo parecia desajeitado, mas o ar fresco era rejuvenescedor. Ela invocou o antigo poder de dentro dela, o que ela se lembrou, tudo o que viajou com ela quando ela não era nada, e derramou-o em sua lâmina. Como um falcão, ela desceu e, embora o Senhor Enterrado tenha acertado suas asas, ele ainda era lento.

Liesa enfiou a lança profundamente na espinha do demônio. Seu grito rasgou a terra abaixo dele, e ele se desintegrou, dobrando-se sobre si mesmo – e com um tremido do último véu de suas asas, ele se foi. Não estava morto, mas desapareceu – por enquanto.

Liesa pousou ao lado da cova rasa que ele havia deixado.

Algli olhou para o anjo, encostado em uma árvore na beirada da clareira, a tocha que ela segurava tremendo.

Liesa inclinou a cabeça. Algo estava errado – o chão se moveu.

O chão respirou, uma exalação faminta.

Liesa gritou um aviso, mas já era tarde demais. O chão explodiu ao redor de Algli, garras sujas a agarrando. O Senhor Enterrado se livrou das raízes da árvore que havia se deslocado em sua fuga. A areia escorria da ferida em seu pescoço, reluzente, obsidiana. Seu rosto cruel agora era um ricto, um rosnado.

Algli gritou, roucamente, pedaços de palavras de uma língua tão antiga que Liesa não se lembrava mais. Feitiços que ela havia descoberto em sua busca por um salvador, sem dúvida; e, como se atendendo ao seu chamado, as sombras se reuniram em torno das vestes rasgadas de Algli.

Em seu pânico, Algli invocou os rituais que ela conhecia, as súplicas que ela proferia em seus momentos mais sombrios. Apelos ao Senhor Enterrado, odes à sua destreza, sua força. Enquanto a cultista entoava, a escuridão mergulhou no demônio. Suas feridas começaram a fechar, sua asa cortada a brotar tentáculos transparentes de regeneração.

“Algli, fique quieta!”

“Velha idiota,” o Senhor Enterrado disse, com uma risada desdenhosa. Ele sacudiu Algli, e em seu aperto, a cultista ficou mudo e mole. “Ah, vamos lá, coisinha frágil; de repente, tímida demais para me elogiar?”

Liesa podia sentir o desespero dela, um gosto amargo no ar. Derrota. Desperança. A mulher agarrou a tocha com as duas mãos, os dentes cerrados de dor. Toda a sua dor, todo o seu esforço. Tudo isso em vão.

A velha ergueu os olhos, mas não para ver sua morte. Ela encontrou os olhos de Liesa e, no olhar de Algli, o anjo não viu esperança, mas provocação.

“Liesa! Mesmo que você peça pela minha vida,” gritou Algli, “eu aceito!”

Com as duas mãos, Algli enfiou a tocha no céu da boca aberta do Senhor Enterrado.

Liesa cruzou a sepultura em um salto, pegando aquele fogo, aquela bravura, aquela esperança para si mesma. A esperança era um combustível como nenhum outro e brilhava através dela, uma luz tão brilhante e quente como o amanhecer: uma chama que secou as árvores com a geada do inverno e, com ela, Liesa atiçou o fogo e o empurrou. Atravessou sua lança, sua lâmina, seu próprio braço – na garganta do Senhor Enterrado.

O demônio não teve chance de gritar. Houve um estalo, um gorgolejo, e seu corpo dobrou-se novamente sobre si mesmo, violento, estalando, espalhando poeira da sepultura. Fim. O Senhor Enterrado caiu com um baque pesado, puxando Algli para o chão com ele. Liesa puxou a lança com um giro, rasgando o pescoço pesado para arrancar totalmente a cabeça do Senhor Enterrado de seu corpo.

Seu corpo não caiu. Liesa sentiu uma fisgada na nuca. Eles ainda estavam presos. Ela dobrou suas asas brilhantes para trás e deu um passo à frente.

Algli rolou para se livrar das garras do demônio. Ela cambaleou. Liesa ofereceu a mão à velha e ela a aceitou, levantando-se estremecendo e mancando.

“Agradeço sua ajuda,” Liesa disse. Ela gesticulou para a carcaça do demônio derrotado. “Pensamento rápido.”

“Não tão rápido quanto antes,” Algli murmurou. “Ele falava demais. Olutio ia convocar um tagarela. Ah, Olutio…” A mulher cobriu o rosto com as mãos, sufocando um soluço. “Tudo isso, todas essas coisas e você morreu por isso… idiotas. Nós somos idiotas. Se ao menos fôssemos charlatões também!”

“Você fez o que achou melhor,” Liesa disse, gentilmente. “Você não ergueu a adaga para seus amigos. Você veio comigo para salvá-los. Suas mortes estão nas garras do Senhor Enterrado. Não se culpe por ser incapaz de prever o resultado. Foram os escritos que você encontrou que falaram sobre o rancor, sobre a fome dele?”

“Não,” murmurou Algli, por entre os dedos. “Um senhor oculto que lidava com a luz. Um ser inteligente que apenas pediu silêncio, que desprezava os ressuscitados que pisavam em seus domínios.”

“Sim. Eu também tive pena dele, uma vez.” Liesa disse. “Se você não tivesse chamado, eu não teria vindo. Suas vozes foram as primeiras que ouvi em séculos, Algli. Seu trabalho não foi em vão.”

Algli balançou a cabeça, mas seus soluços se acalmaram. Liesa estudou o demônio caído.

“Seu corpo deveria ter se dissolvido,” Liesa murmurou. “Talvez ele seja material assim como eu, conectado ao mundo. Hesito em deixar seus restos mortais aqui. Quem sabe que poder ainda contém…”

Algli ergueu a cabeça e, por trás do rastro de lágrimas em seu rosto envelhecido, Liesa viu de novo aquela centelha, aquele lampejo de esperança. “Leve-o com você,” Algli disse. “Forje-o em sua armadura. Um corpo é couro e osso, não é? Eu era curtidora, anos atrás. Não deixamos nada desperdiçar esses dias. Tenho os livros de Olutio, as ferramentas de Sruta. Deixe-me servi-la, minha senhora Liesa. Você salvou minha vida.”

Liesa deixou as palavras, a ideia, ficarem com ela por um momento. Ela pensou em suas irmãs arcanjos, como os seguidores se aglomeraram a elas enquanto Liesa ficou sozinha com seu pequeno bando e mais ninguém. Como suas irmãs foram fortalecidas por seus laços com os humanos, e como, apenas alguns minutos atrás, a própria esperança de Algli surgiu através dela. Aquela lealdade não era o que ela buscava, mas aqui exposta diante dela estava um juramento feito por acordo. Uma conexão forjada na escuridão e na luta.

Talvez essa esperança, esse juramento, pudesse ser levado a outros. Uma nova ordem para um novo mundo.

“Não é a sua fidelidade que procuro, mas uma aliança. Uma hoste renovada e renascida.” Liesa pousou a ponta da lança na lama. “Uma aliança, não para trazer um silêncio sufocante, mas um equilíbrio pacífico, a este mundo ferido. Um coro de vozes, conhecidas e ouvidas. Você vai me ajudar nesta causa, Algli?”

Com um suspiro, Algli caiu de joelhos novamente. Não com dor, nem tristeza, mas com esperança, diante de seu anjo cintilante. “Você terá minha ajuda,” disse ela. “Enquanto eu respirar e esperar, minha senhora Liesa. Você me terá como sua aliada. Enquanto eu viver.”

Liesa havia retornado na hora mais negra, em um momento de luta, convocada pelos desesperados e perdidos. Mais e pior estava diante delas, desta pequena aliança. Ao luar frio, Liesa sentiu que a velha esperança reacendeu-se nestas palavras, no conhecimento partilhado. Um juramento de pesar. Um juramento de esperança.

Em um mundo de finais, aqui, enfim, veio um novo começo.

Comentários

Review Text

Testimonial #1 Designation

Review Text

Testimonial #2 Designation

Review Text

Testimonial #3 Designation

Magic the Gathering é uma marca registrada pela Wizards of the Coast, Inc, uma subsidiária da Hasbro, Inc. Todos os direitos são reservados. Todas as artes e textos são de seus respectivos criadores e/ou da Wizards of the Coast. Esse site não é produzido, afiliado ou aprovado pela Wizards of the Coast, Inc.