Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

NOVIDADES

Jace Beleren, o mago mental, tem diversas funções para várias pessoas. A maior de suas responsabilidades atualmente é ser o Pacto das Guildas Vivo, o árbitro mágico para os conflitos entre guildas no plano urbano de Ravnica. Mas ele fez muitas outras promessas e assumiu para si muitos outros problemas – e cada um desses enigmas inacabados puxam um pedacinho da sua mente.

Alguns, talvez, mais do que outros…

Jace deu um sorriso formal enquanto a delegação do Enxame Golgari cambaleava para fora da sala. Ele murmurou um feitiço rápido para limpar o cheiro de fungo em putrefação dos caros embaixadores e dos seus aios zumbis.

Assim que a porta se fechou atrás deles, o sorriso de Jace se retraiu e ele se sentou atrás da enorme mesa de madeira que finalmente conseguiu mandar instalar. A mesa rangeu e ele franziu o cenho. Ainda precisava de uma poltrona enorme para se jogar. De couro. Algo caro.

“Diz pra mim que foram os últimos do dia,” ele disse.

“Eu nunca cometeria perjúrio, mesmo sob suas ordens,” disse sua meirinha, Lavínia – com bastante sarcasmo, ele notou.

Jace, Telepata Ilimitado | Arte de Jaime Jones

Ele grunhiu. Não que o trabalho fosse difícil. Muito pelo contrário. Era muito trabalho, mas quase nunca era um desafio.

“Mas,” ela continuou, “acontece que neste caso, eu posso dizer que foi realmente o último compromisso marcado para hoje. Claro que os compromissos de amanhã já estão indo para a fila.”

A luz do sol não banhava mais as janelas altas da Câmara do Pacto das Guildas. Quando ele tinha comido pela última vez?

“Eles vão ter de esperar,” ele respondeu. “Talvez eu consiga resolver os problemas deles, mas não posso fazer tudo em só dia.”

Ele se virou para ela. Ela estava engomadinha como nunca. Ele fez uma careta.

“Você nem se cansou, né? As pessoas devem falar sobre a meirinha ilusória de Jace Beleren. Qual ser humano suportaria doze horas de pé vestindo armadura cerimonial e não demonstrar sinal algum de cansaço?”

Ela se virou e olhou para ele de cima a baixo.

“Você teria mais resistência se fizesse exercícios de vez em quando, sabia?” ela disse. Estava sorrindo – mas isso não significava que ela não estivesse falando sério.

“Ah, tá.”

Ele se virou para ir embora.

“Pacto das Guildas,” disse Lavínia. Ele se virou. “Descanse um pouco.”

Lavínia do Décimo | Arte de Willian Murai

“Café,” disse Jace. “O Pacto das Guildas Vivo decide que o café é um substituto aceitável para o descanso, como especificado na subseção… Tanto faz.”

Lavínia respeitava demais a disciplina da sua patente para revirar os olhos, mas ela meneou a cabeça enquanto ele saía da câmara.

Após passar por vários corredores, Jace se agachou por um corredor secreto até seu apartamento pessoal. Ninguém sabia do corredor secreto, exceto ele e Lavínia – e nem Lavínia sabia abri-lo. Há histórias em muitos planos nos quais tiranos matavam ou cortavam a língua de arquitetos para guardar os segredos das suas tumbas e castelos. Jace extraíra de maneira limpa apenas o conhecimento sobre o corredor secreto das mentes dos seus construtores. Ele dizia para si mesmo que era muito mais bondoso do que os tiranos, mas nem sempre se sentia assim.

Seu apartamento era uma bagunça, com diagramas, projetos em andamento e refeições pela metade. Uma ilusão retratando um edro de Zendikar flutuava e suas runas permaneciam sem ter sido decifradas, como uma provocação. Globos e mapas de diversos planos tinham percevejos marcando locais de importância. O chifre de um ogro Onakke pesava sobre o rascunho de alguma legislação enfadonha do Senado Azorius.

Santuário de Jace | Arte de Adam Paquette

Jace não tinha servos – era arriscado demais, e ele se sentia desconfortável -, mas ocasionalmente invocava alguma ilusão para limpar o lugar, especialmente quando esperava uma visita. E às vezes recebia visitas, apesar do segredo sobre o local do seu apartamento. A porta era, na verdade, um teleportal feito pelos Izzet, e ele mudava a localização do outro extremo regularmente. Ele podia entrar e sair quando quisesse, até mesmo receber visitas – e o mistério do Pacto das Guildas Vivo ficava ainda mais nebuloso.

Ele piscou com os olhos cansados. O que ele estava fazendo, mesmo?

Ah, certo. Café.

Bateram à porta.

Bom, não de verdade. Alguém bateu em uma porta em algum canto do Sétimo Distrito e o som chegou aos ouvidos de Jace pelo portal que levava aquela porta à porta dele. E isso era muito, mas muito, estranho.

Ele puxou seu capuz e cobriu o rosto, coletou mana e aproximou-se cuidadosamente da soleira da porta com um feitiço na mão para desfazer o portal se fosse necessário. Enquanto isso, fez um feitiço para ver o que estava do outro lado.

Toda essa preparação e paranoia eram, possivelmente, desnecessárias. Provavelmente, era só algum cidadão confuso batendo na porta errada, lá no Sétimo. No pior dos casos, podia ser…

Liliana, Necromante Insolente | Arte de Karla Ortiz

… Liliana?

Seu queixo caiu.

Jace não vira Liliana Vess desde o dia em que ele não apareceu no ponto de encontro combinado, após descobrir que ela o manipulara. Isso foi depois de passar por perigos mortais, mortes de amigos e, literalmente, por sessões de tortura – tudo ao menos parcialmente por culpa dela. Ela era uma maga da morte amoral e egoísta, que procurara por ele seguindo ordens de Nicol Bolas, o planinauta dragão. Ela também fora a primeira amante que teve de verdade, e ele tentava não sofrer por causa dela desde então. Ele sabia que não era bom para ele.

A necromante estava em frente a uma porta sem marcação especial a quilômetros dali, sem companhia, até onde ele conseguia perceber. Ela tinha uma postura orgulhosa, mas dava olhadelas para os lados de vez em quando, como se estivesse nervosa. Ou desconfiada.

Ou traindo ele de novo.

Uma ilusão? Pelo portal não era possível dizer com certeza. Se fosse, era muito convincente – tinha até o pé esquerdo balançando de um jeito irritadiço.

Ele não devia atender a porta. Se fosse ela mesmo, ou não, era quase certo que era uma armadilha – e mesmo que ela não tivesse nenhum plano para traí-lo de novo, as coisas tinham uma tendência a apodrecer rapidamente com Liliana. Ele sabia que não era bom para ele.

Ele suspirou, se fez invisível e invocou uma duplicata ilusória. A duplicata abriu a porta com um empurrão telecinético.

“Liliana?” ele perguntou com a boca da sua cópia, pintando um olhar surpreso na face dela. “O que…”

Ela atravessou o Jace ilusório com um andar casual.

“Posso entrar?” ela perguntou por cima do ombro.

Jace franziu o cenho, empurrou a porta e desfez sua invisibilidade, sua cópia ilusória que ainda tinha um olhar confuso, e o teleportal também, para garantir. Ele se apressou em segui-la.

“E se eu dissesse não?”

“Você não disse,” ela respondeu.

Ele deu a volta por ela e ficou no caminho. Ela olhou para atrás dele, analisando o apartamento.

“Bonitinho, o lugar. Que pena que você o decorou assim.”

Ela estava exatamente igual. Mas é o esperado dela, não é mesmo? Um total de quatro contratos demoníacos cuidavam disso, talhados em runas desumanas em sua pele perfeita. Ele sempre odiou esses entalhes, e sempre tentava… evitava tocá-los.

Por fim, ela o olhou nos olhos.

“Oi, Jace.”

Jace não estava acostumado a notar os olhos dos outros. Ele não precisava deles para ler suas intenções, e apesar de ter aprendido a olhar nos olhos dos outros quando falava com eles, nunca aprendeu realmente a prestar atenção. Mas dos olhos de Liliana ele se lembrava, olhos de um violeta cinzento, antigos e repletos de uma promessa: perigo. Tentou devolver o olhar desta vez, mas descobriu que não conseguia suportar as memórias que eles traziam à tona. Por fim, seus olhos decidiram parar no nariz, o único lugar que não o deixava desconfortável de nenhum modo.

“Nada do que você disser vai me fazer confiar em você,” ele disse. “Não depois da forma como me traiu.”

Ela revirou os olhos. O perfume dela atingiu seus sentidos: lilás e canela – mascarando uma nota sutilíssima de algo estranho e podre.

“Foi você quem me deixou lá, esperando,” ela respondeu.

“Sim, depois de você ter me traído!”

“São águas passadas,” ela disse, pegando o chifre do ogro Onakke e brincando com ele. “Eu não trabalho mais para o Nicol Bolas e nunca quis lhe fazer mal algum.”

“E eu poderia verificar isso?” ele perguntou, tirando o chifre da mão dela e colocando-o de volta no lugar. “Ou você ainda tem suas medidas protetivas?”

Ele pensara ter lido a mente dela quando se conheceram pela primeira vez, mas ela lograra as habilidades telepáticas dele de algum modo. Ele tinha suas suspeitas, e o fato de ela trabalhar em segredo para um dragão arquimago com milênios de idade o tempo todo era sua principal suspeita.

Ela não disse nada e levou sua mão, devagar, até o rosto dele. Parte dele queria se retrair do toque dela. Parte dele queria fazer o exato oposto. Ele decidiu ficar imóvel. Mas ela não o tocou – ela apenas pegou o canto do seu capuz entre dois dedos e o puxou para trás. Ela o avaliou por um momento.

Jace, Arquiteto do Pensamento | Arte de Jaime Jones

“Você está mais velho,” ela disse.

“Eu não sei o que dizer sobre isso.”

“Na sua idade, querido, é um elogio sem sarcasmo.” Ela inclinou a cabeça. “Você começou a pentear o cabelo?”

Encabulado, ele alisou o cabelo por um momento e, em seguida, tirou a mão de perto. Ele tinha, sim, começado a pentear o cabelo. Não que o cabelo dele fosse da conta dela. Ele fechou a cara.

“Imagino,” disse, “que você não teve o trabalho considerável de tentar me encontrar só para criticar minha aparência. Então, vamos falar de negócios. Como você me encontrou e quem mais sabe?”

Ela deu um suspiro teatral.

“Eu contratei um ótimo espião a um preço altíssimo,” ela respondeu. “E ninguém mais sabe, porque o cadáver ficou lá, cambaleando pelo Sétimo, tentando me encontrar.”

“Droga!” ele exclamou. “Você matou um cidadão ravnicano.”

“Não se desgaste. Eu conferi se ele merecia. Fiz isso por você,” ela afirmou. “Ele tem um arquivo em Nova Prahv do tamanho de uma perna: assassinato, incêndio criminoso, roubo e extorsão – e várias coisas horríveis que nem os Azorius sabem. O que eu fiz foi um favor as amigos do Senado.”

“Um mandado tem de levar a um julgamento,” ele respondeu, ríspido. “Não a uma execução sumária! Eu tenho de pensar nesse tipo de coisa agora. Eu sou a lei – eu sou literalmente a lei. Eu – que droga, você tá sorrindo por quê?!”

“Lazlo Lipko.”

Ele tomou um fôlego rápido por entre os dentes.

“Aaah, sim, esse é um canalha de marca maior.”

“Era,” ela disse, com um sorriso no canto da boca.

Ele suspirou.

“Certo. Não é como se eu nunca tivesse trabalhado fora da lei, mesmo como Pacto das Guildas.”

Eles ainda estavam de pé, ligeiramente perto demais um do outro, na sala bagunçada da entrada da casa dele.

“Então?” ela indagou. “Acabou o interrogatório?”

“Não, ainda não. O que você fez com Garruk Falabravo?”

No Rastro de Garruk | Arte de Chase Stone

“Ah,” ela disse. “Aquilo.”

“Aquilo.”

“Posso me sentar, pelo menos?”

Ele deu de ombros e mostrou uma das cadeiras de encosto alto que cercavam sua mesa, mas ela deu a volta na mesa e se atirou no sofá. Ele não gostava de ficar olhando para ela de cima, mas não queria sentar-se ao lado dela; então, arrastou uma cadeira da mesa e sentou-se. Ela olhava para ele fixamente, esperando por algo.

“O Garruk,” incitou ele.

“O Garruk.” Ela franziu o cenho. “Não há muito a dizer.”

“Pois diga.”

“Ele me atacou,” ela disse. “Eu venci. Pelo jeito, ele criou um rancor.”

“Não.”

“Me conta do Véu Metálico,” disse Jace.

“Ah,” ela respondeu, olhando para o lado. “Aquilo.”

Ele esperou.

“É mais fácil se você me disser o que já sabe sobre ele,” ela disse.

“Vou aprender mais se eu não disser nada.”

Na verdade, ele já sabia bastante sobre o Véu Metálico, suas propriedades e as altercações entre Liliana e Garruk. Mas estava curioso; quanto ela estaria disposta a compartilhar com ele? E para ser sincero, ele gostava de vê-la se enroscando.

“Tá,” Liliana respondeu. “É um artefato muito antigo e muito poderoso.”

“E maligno, também,” Jace adicionou.

“Sim, obrigada,” ela respondeu, revirando os olhos. “Um dos meus credores demoníacos me mandou coletá-lo como parte da minha servidão contratual. Eu decidi usá-lo pra comprar minha liberdade. Do jeito mais difícil.”

Kothophed, Acumulador de Almas | Arte de Jakub Kasper

“Você realmente acha que pode contra quatro demo…”

“Dois,” interrompeu ela.

“O quê?”

“Dois já foram,” Liliana respondeu, segurando dois dedos na frente dele e dando um sorriso largo. “Faltam dois.”

“Ah,” ele disse. “Isso… muda as coisas.”

“Não é?”

Há muito tempo, ele tivera a intenção de ajudá-la a encontrar um jeito de sair dos contratos – descobrir quem Liliana realmente era além do desespero e das mentiras. Agora, ela já estava na metade do caminho sem ter precisado da ajuda dele… e afundada em algum atoleiro que talvez seja ainda pior.

“O que você fez com o Garruk?”

“O Véu é amaldiçoado,” ela disse. “Ele foi criado para transformar quem usá-lo em um receptáculo para a ressurreição de uma raça morta há muito tempo. Mas é poder demais para uma alma só suportar. Ele mata usuários que não são fortes o suficiente, eu acho.”

“Você acha?”

“Vou dizer o quê? Eu me ocupei tanto caçando demônios, que não tive muito tempo para ir até uma biblioteca.”

“Tá,” ele respondeu. “Você não parece morta.”

“Não mesmo,” ela disse. Os olhos dela brilhavam. “Eu sou forte demais.”

“Você sabe o que acontece com quem não morre, né?”

A expressão do rosto dela desmoronou – talvez a única emoção honesta que ela demonstrara desde que chegou.

“Sim,” ela disse. “Demônios.”

O poder do Véu sobrepuja, transformando mesmo seus usuários mais fortes em monstros.

“E é nisso que Garruk está se tornando. Ou talvez já tenha se transformado. Mas você, não.”

“Eu não,” ela disse. “Eu não sei se foram os contratos ou a necromancia. Ou talvez eu tenha passado a parte da maldição para ele, logo depois que eu peguei o Véu. Por algum motivo, é ele quem está virando um monstro. E não eu. Não mais do que eu já era, afinal.”

“Certo,” respondeu Jace. “Você ainda está viva, ainda é humana, e você já matou dois demônios. Então, qual é o problema?”

Ela ergueu uma sobrancelha.

“Quem disse que tem um problema?”

“Lili, o que você está fazendo aqui?”

Ela fez um bico.

“Não posso só passar aqui e ver um velho amigo?”

“Para,” ele disse, ríspido. “Nós já fomos muita coisa, mas nunca fomos amigos.”

Silêncio. Os olhos dela endureceram.

“E…”

“Não,” ela disse.

Ele fechou a boca.

“Você tem razão,” disse ela, “e se importa alguma coisa, peço desculpas. Eu sinto muito que você tenha passado por aquilo tudo. Até sinto pelo que está acontecendo com o Garruk, se isso faz você se sentir melhor.”

Ela caiu pesadamente sobre uma almofada e suspirou.

“Eu não sei, Jace. Acho que eu queria saber se a gente podia… começar de novo.”

Ela ergueu a cabeça. Os olhos dela seguravam os dele.

“Começar de novo é o primeiro truque que eu aprendi na vida,” ele disse, forçando um sorriso. Jace ergueu uma das mãos e ela começou a brilhar, o que era comum quando ele fazia magia mental. Quando ele apagava memórias. “É só dizer…”

Jace, o Pacto das Guildas Vivo | Arte de Chase Stone

“Não,” ela disse. “Assim, não.”

Ela franziu o cenho e estendeu as mãos, dando de ombros, parecendo desamparada. Ele tinha dificuldades em acreditar que estava afobada de verdade, mas ela estava atuando de maneira convincente.

“Só… essa conversa, pelo menos?” ela perguntou. “Podemos começar de novo?”

“Bom, é meio tarde para começar com você não invadindo a minha casa.”

“Justo,” ela respondeu. “Então por onde a gente começa?”

“Que tal começar pedindo desculpas por invadir a minha casa?”

A atitude dela mudou completamente: contida e polida, com as mãos dobradas delicadamente sobre o colo, e a expressão facial cautelosa e resguardada. Mas seus olhos brincavam.

“Desculpe, mesmo, entrar aqui sem pedir licença, desse jeito,” ela falou com precisão exagerada. “Eu estava passando pelo plano e não resisti, tinha de dar uma passadinha por aqui. Sinto muitíssimo pelo nosso último encontro e como ele não foi agradável, e espero que a gente possa começar do zero.”

Era um jogo. Tudo era um jogo com ela, e ele já estava cansado de jogar. Ele sabia que não era bom para ele. Mas se não descobrisse o que ela estava aprontando, Liliana iria acabar envolvendo-o em outro problema de algum outro modo. E ela não era a única que sabia jogar.

“Ora, que surpresa agradável!” Jace falou. “Que maravilha vê-la de novo – não é nem um pouco suspeito -, você é muito bem-vinda. Em que tipo de recomeço está pensando?”

Ela deu um sorriso diabólico.

“Me leva para jantar?”

Ele riu pelo nariz.

Ela sorria serena.

“Você tá falando sério,” ele constatou.

Ela abriu o sorriso.

“Eu sempre falo sério.”

Mais jogos. Mais enganações.

Ele sabia que não era bom para ele.

O par passeava de braços dados pelo estiloso Segundo Distrito de Ravnica. Era uma noite quente e as ruas estavam cheias.

“Então, como é?” perguntou Liliana. “Ser o Pacto das Guildas Vivo?”

“Exaustivo,” respondeu Jace. “Todo mundo quer um pedaço de mim. Me puxam para dez direções diferentes o tempo todo.”

Arte de Dave Kendall

“Parece horrível,” disse Liliana. “Quatro já era ruim. Que inferno, ser puxada em qualquer direção já é mais do que o suficiente.”

“As guildas não tem poder sobre mim,” disse Jace. “São mais clientes do que… feitoras. Tenho mais liberdade agora do que quando era parte do Consórcio Infinito sob as ordens do Tezzeret, com certeza.”

“Mas você não é rei,” ela respondeu. “Você não faz a lei. Você está preso nela.”

Ele deu de ombros.

“Eu não quero ser rei,” ele disse. “Mas, sim, pode ser um… confinamento.”

“Senhor!” chamou uma moça baixinha, segurando um cesto cheio de rosas. “Senhor! Compra uma flor para sua namorada?”

“Ela não é minh…”

“Sem problema, senhor!” respondeu a jovem com uma piscadela. “Mas uma flor é sempre um belo presente para uma dama.”

“Ela não é uma…”

Liliana deu-lhe uma leve cotovelada nas costelas.

“É claro”, disse Jace. Ele entregou um zino à moça, disse para ela ficar com o troco e apresentou a rosa a Liliana com um cumprimento floreado.

“Senhor!” a moça chamou novamente, já preparando o casal atrás deles para a venda. “Senhor! Compra uma flor para o namorado?”

Liliana tomou a flor delicadamente e olhou fixamente para ela. Em um momento, ela definhou e secou, ficando mirrada e enegrecida. Ela a prendeu nos cabelos negros como corvos e sorriu para ele.

“Você se cansa de ser difícil assim?” ele perguntou.

Ela abriu um sorriso estonteante.

“Nunca.”

Eles chegaram.

O Milena era um dos melhores restaurantes do Segundo Distrito, onde só atendiam com reserva. Jace trocou algumas palavras miúdas com o maître – um homenzinho que mais parecia um nezumi, chamado Valko – e o Pacto das Guildas Vivo e sua convidada foram levados a uma mesa à luz de velas para dois, no pátio.

“É bom saber que você não fica tímido em abusar do seu poder,” disse Liliana.

Ele puxou a cadeira para que ela se sentasse.

“Eu passo dez horas por dia ouvindo sobre disputas de zoneamento e reclamações de danos,” disse Jace, sentando-se. “Uma mesa sem reserva em um restaurante legal é o mínimo que a cidade pode fazer em troca.”

“E você tem esse dinheiro todo?” perguntou Liliana, devorando o cardápio com os olhos.

“Eles costumam colocar como compensação,” ele disse, e tentou parecer o mais encabulado possível, principalmente porque isso o deixava sem graça. Mas, no fim, ser o Pacto das Guildas não era fácil, nem seguro – então, ele não sentia vergonha em tirar vantagem dos poucos bônus da posição. Não muita, pelo menos.

“É claro,” ela disse. “É o mínimo que eles podem fazer.”

Eles fizeram o pedido e Liliana não foi frugal – eles nem esperava que ela fosse. Uma garrafa de vinho Kasarda tinto, da safra decamilenial, harmonizava com tudo; Jace fez um rápido feitiço de silêncio para que tivessem alguma privacidade.

“Estamos bem longe das espeluncas onde a gente costumava se esconder,” disse Liliana. “Como era o nome daquele lugarzinho horrível, mesmo? O Fim Amargo?”

Ele ergueu a taça.

“Um brinde ao passado… ficando lá longe, no passado.”

Ela tomou um gole e abaixou a taça rapidamente.

“Eu ouvi falar sobre o que você fez,” ela disse. “Tentando controlar o Garruk.”

“Ah,” ele respondeu. “Aquilo.”

“Foi um risco,” disse Liliana. “Eu não achei que você faria isso tudo por mim.”

“Eu não fiz por você,” disse Jace. “O Garruk está se tornando uma ameaça a qualquer planinauta.”

“Olha só você,” Liliana falou, meneando a cabeça. “Jace Beleren, defensor do Multiverso. Você não consegue admitir que se preocupa comigo sem fingir que está preocupado com todo mundo.”

“Eu deveria me preocupar com você?”

Uma nuvem de raiva passou sobre a face dela. Ela enfiou a mão nas dobras do quadril da saia e Jace passou meio segundo em pânico preparando uma anulação antes de ver o que ela estava fazendo.

O Véu Metalico | Arte de Volkan Braga

A coisa que Liliana tirou do bolso só podia ser o Véu Metálico. Uma cacofonia de sussurros ininteligíveis preencheu sua cabeça por um momento até que ele afastou os sons; o que quer que fossem, era problema dela e não dele. Seus elos eram de um dourado antigo, delicadamente ligados; era um metal tão fino que parecia ter uma textura sedosa. Parecia pesado e tinha um brilho antinatural na luz indireta do restaurante. Era lindo, atraente e perigoso.

Quase que por reflexo, ele estendeu a mão para tocá-lo. Ela puxou o Véu de repente, tirando-o do alcance dele – um movimento ríspido e indelicado.

“Medo de eu tirá-lo de você?” ele indagou, divertindo-se.

Ela olhou para ele fixamente, e por um momento fugaz ele viu dor e medo e súplica naqueles olhos antiquíssimos.

“Medo do que ele pode fazer contigo,” ela respondeu em voz baixa. “E de qualquer modo, você não pode ficar com ele nem que eu queira. Você já entendeu o que ele é?”

Nem que ela queira? Ele estaria preso a ela de algum modo? Ou tinha apenas se ligado a ela tanto assim? Ele acreditava nela, de qualquer modo.

“Estou começando a entender,” ele disse.

O jeito que a luz das velas tremulava refletida naquela coisa era meio sinistro.

“Se você não vai me deixar ver de perto, guarda isso,” Jace pediu. “Me dá arrepios.”

Ela o guardou.

“Em mim também,” ela sussurrou.

As velas tremularam mais uma vez.

“Parece que talvez as coisas não estejam sob o seu total controle.”

Ele finalmente entendera por que ela veio. Brincar com as emoções e a curiosidade dele ao mesmo tempo. Ela precisando de ajuda e um enigma para resolver – duas coisas que ela sabia como ele teria dificuldades em resistir. E talvez… ela estivesse certa.

Mas ele queria fazê-la pedir.

Seus olhos eram poços de escuridão.

“Jace, eu…”

Houve uma comoção na entrada do restaurante, onde o pátio se abria até a rua. Jace virou-se rapidamente, pronto para conjurar pelo menos meia dúzia de magias protetoras.

Um homem alto de ombros largos estava de pé no meio da rua, discutindo com Valko. Ele usava uma armadura muito surrada, mas em bom estado, e estava coberto de sangue, sujeira e um muco não identificável. Ele apontou para Jace. Ele estava dentro do fácil alcance da leitura de mentes que Jace poderia fazer, mas uma combinação de leitura labial e pensamentos superficiais o fez notar que o homem dizia: Eu preciso falar com o Pacto das Guildas.

Ele mostrou um distintivo dos Boros, passou pelo maître desconcertado e caminhou até a mesa deles. Ele era uma pouco mais alto do que Jace, com pele morena e olhos impressionantemente claros.

“Jace Beleren,” ele disse. “Eu preciso da sua ajuda.”

O homem tinha a aparência que foi descrita a Jace antes: alguém que transplanava de Ravnica e voltava com uma regularidade incomum.

Gideon, Campeão da Justiça | Arte de David Rapoza

Valko veio a passos rápidos atrás dele.

“Pacto das Guildas,” disse Valko. “Me perdoe. Ele disse que é assunto da guilda…”

“Não disse, não,” replicou o homem. “Eu só mostrei meu distintivo.”

“Não estou de serviço,” disse Jace. Planinauta ou não, os problemas deste homem não eram para Jace resolver. “Passe na Câmara do Pacto das Guildas de manhã e entre na lista. Em alguns dias…”

“É sobre um lugar chamado Zendikar,” disse o homem.

Liliana precia ter engolido uma unha.

“Senhor,” disse Valko. “Não importa o seu assunto, sua vestimenta é completamente inaceitável. Devo insistir q…”

“Ele pode ficar,” disse Jace. “Se você está preocupado com as aparências, passo um feitiço de invisibilidade sobre a mesa.”

“Isso,” disse Valko, “vai dificultar excepcionalmente a entrega do seu jantar.”

“Não vai cobrir o cheiro, também,” disse Liliana.

“Eu vou compensar você,” disse Jace, dispensando Valko.

“E eu?” indagou Liliana.

“Meu nome é Gideon,” disse o homem. Ele deu uma olhadela para Liliana.

“Ela sabe,” disse Jace. “Sente-se.”

“Prefiro ficar de pé,” afirmou Gideon.

Jace se levantou. Foi um erro. Ele ainda tinha de inclinar o pescoço para olhar nos olhos de Gideon, e agora a diferença de altura entre eles estava evidentemente óbvia. Ele odiava se sentir pequeno. Odiava mesmo.

“Agora que você já arruinou a minha noite,” disse Jace, “que tal ir direto ao ponto?”

Gideon apertou os olhos.

“Você já esteve em Zendikar?”

“Sim,” respondeu Jace. “Não foi uma viagem muito boa.”

“O Portão Marinho foi derrubado.”

“O quê?” exclamou Jace. “Quando? Como?”

“Há algumas horas,” disse Gideon. “Talvez menos. Eu saí de lá antes de acabar, mas o lugar estava condenado. E como foi… o que você sabe sobre os Eldrazi?”

“Eles tinham acabado de aparecer quando estive lá pela última vez. Eu vi um deles logo antes de partir,” respondeu Jace. “Vi um deles” era um jeito de dizer isso. “Sem querer, libertei todos de milênios aprisionados para aterrorizar Zendikar” seria outro jeito. Jace se perguntou se Gideon sabia disso. “Eu conheço alguns estudiosos do Portão Marinho. Há notícia deles?”

“Os arquivos foram perdidos,” afirmou Gideon. “É por isso que vim buscá-lo. Eles estavam perto de uma descoberta sobre os edros, algo que poderia servir na luta contra os Eldrazi. E você é conhecido por resolver enigmas.”

Talento do Telepata | Arte de Peter Mohrbacher

Um breve mergulho na mente do homem confirmou que ele dizia a verdade.

“A rede de edros?” indagou Jace. “Que tipo de descoberta?”

“Eu não sei,” respondeu Gideon. “Elas chamam de ‘enigma das linhas de força’ e acreditam que exista alguma ligação com os Eldrazi. Você pode vir comigo e resolvê-lo?”

“Linhas de força!” exclamou Jace. Seu primeiro instinto foi procurar suas anotações, mas elas estavam no apartamento, é claro. “Eu nunca tinha pensado nos edros com as linhas de força. Isso tem implicações… sérias.”

Ele esfregou a testa. Os Eldrazi eram, de certo modo, responsabilidade dele. Ele passara algum tempo desde aquele dia pesquisando sobre eles e sobre os edros. Mas ele tinha tantas outras responsabilidades!

“Se você conhece Zendikar e já viu os Eldrazi, sabe como esse assunto é sério,” disse Gideon. “Eu sei que fará a coisa certa.”

Liliana virou sua taça, empurrou a cadeira e passou por Jace.

“Lili, espere…”

Ela continuou andando.

“Me dê um minuto,” disse ele para Gideon.

Ele correu até ela e caminharam juntos. Ele sabia que não seria bom se tentasse agarrá-la pelo braço – era um modo excelente de acabar na curanderia.

“Liliana!”

Ela parou e o encarou com olhos brilhando de fúria.

“Eu procuro você depois desse tempo todo,” ela disse. “Eu me abro para você. E agora, depois de tudo que a gente passou juntos, você já está se arrumando pra transplanar com um filé malpassado da Morada do Sol só porque ele pediu?!”

“O que está acontecendo em Zendikar…” ele disse. “É culpa minha. Em parte. Não foi de propósito, e eu suspeito que tenha sido manipulado – mas ainda assim, essas coisas-Eldrazi estão à solta porque eu entrei de cabeça em algo sem entender por completo.”

“Então, agora você vai mergulhar de cabeça lá de novo,” ela afirmou. “Está esperando o quê?”

“Você podia vir com a gente,” ele disse.

“Como é que é?!”

“Vem com a gente,” pediu Jace. “Use suas habilidades para lutar contra monstros de verdade. Talvez você possa até se aliar com esse cara, o Gideon.”

“Não,” respondeu Liliana. Tem gente que não sai pegando problema emprestado quando já tem mais do que o suficiente.”

“Eu não vou embora até de manhã,” disse Jace. “Pense no assunto. Vá à Câmara, se mudar de ideia.”

“Não.”

“Você pode esperar por mim aqui em Ravnica, então,” disse Jace. “A pesquisa que ele precisa que eu faça não deve demorar muito. Eu volto. E daí a gente continua a conversa. E se você quiser me contar por que está aqui, podemos falar sobre o que vem depois.”

“Você está louco,” ela disse. “Eu tenho demônios para matar.”

“Tá,” disse Jace. “Boa sorte com isso aí. Ah, e… Liliana?”

Ela esperou.

“Ele pediu ajuda.”

Ela puxou a rosa morta do cabelo e jogou aos pés dele, deu meia-volta e saiu.

Jace se inclinou para pegar a flor mirrada e ouviu os passos pesados da armadura de Gideon atrás dele.

“Acabou?” perguntou Gideon.

Jace se virou pronto para descontar nele, mas Gideon tinha uma expressão tão sincera e tão fadigada que Jace não conseguiu ficar com raiva. Liliana sempre foi má notícia, de todo modo. Ele sabia que não era bom para ele.

Arte de Michael Komarck

“Tá,” disse Jace. “Vamos. Eu conheço uma curandeira ótima pra cuidar de você.”

“Não há tempo,” disse Gideon. “Precisamos ir.”

“Eu não vou sair do plano até de manhã,” disse Jace. “Eu preciso organizar coisas e preciso pegar minhas anotações. E olha para você! Não vai conseguir ajudar Zendikar se cair morto por exaustão. Você precisa descansar.”

Gideon olhou de cima para ele por um momento muito longo.

“Tá,” disse Gideon, afinal. “Leve-me até a curandeira.”

“Conte-me sobre os Eldrazi,” pediu Jace.

Ele deu um passo, mas Gideon o parou, pousando uma das mãos no ombro de Jace. Jace tirou a mão de Gideon de cima dele.

Gideon deu uma olhadela para a flor morta que Jace ainda segurava, brincando com ela por entre os dedos. “Eu tenho a sua atenção completa?”

“É claro,” disse Jace. “Conte-me tudo o que você sabe.”

Ele largou a rosa morta nos paralelepípedos e acompanhou Gideon.

Ele sabia que não eram bom para ele.

Traduzido por Meg Fornazari

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