Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
LAÇOS E SANGUE
Anafenza, khan das Casas Abzan, conquista o trono – e sua vingança.
Anafenza sempre escalou descalça. Seus dedos se agarraram à casca da árvore na base de um galho espesso, e ela se agachou ali por um momento para se equilibrar. As folhas da Primeira Árvore exalavam um aroma de menta que enchia seu nariz. Ela fechou os olhos e se ergueu. Quando emergiu da cobertura das folhas da copa da árvore, o calor do sol estava esperando por ela. O dia estava quente, mas Anafenza gostava de examinar a cidade a partir de seu ponto mais alto. A Primeira Árvore crescia da praça que ficava no telhado da torre da Fortaleza de Mer-Ek. Da posição em que estava, Anafenza podia espiar além das muralhas maciças da torre e ver o mercado lá embaixo, onde os comerciantes corriam para negociar rumores e produtos.
Seu olhar vagou para além das muralhas que protegiam a capital. A imensidão árida se estendia em todas as direções. Na vastidão de dunas e poeira, uma ponte descia da rocha onde a capital fora construída. Era ali que a Estrada de Sal desaparecia nas areias agitadas dos Ermos Mutáveis, onde apenas as fortificadas caravanas rolantes das casas mercantes viajavam. Esse era um mundo que Anafenza conhecia bem, pois tinha sido seu lar pela maior parte de sua vida.
Ela virou seu rosto para o vento, o sopro familiar do deserto chegando com tantas memórias envoltas em emoções. Anafenza seguiu seus próprios pensamentos que iam voltando no tempo, e cada caminho levava ao mesmo local escuro já bem conhecido. Sua família se fora. Todos exceto um.
Anafenza queria que ele se lembrasse dela como ela tinha sido há quase dez anos. Naquela manhã, cortara o cabelo curto e, quando o ar do deserto a atingiu, ela ficou bem ciente de seu pescoço desprotegido. Os únicos remanescentes de seu comprimento anterior eram os cachos que caíam de cada têmpora, esvoaçando selvagemente quando eram pegos pelo vento.
Mas Anafenza não era mais a mesma, e ele veria no que ela se tornara.
“Minha khan?” veio uma voz lá debaixo.
Khan. O pensamento poderia tê-la esmagado se seus lábios não tivessem cedido ao seu impulso de sorrir.
“Estou no topo, Kwaro,” Anafenza disse. Kwaro era o capitão da guarda de Anafenza, e tinha aceitado seu novo posto com ânimo. Antes de Anafenza se tornar khan, o veterano aviano comandara sua guarda de honra em batalha quando ela era general do exército Abzan. A despeito dos protestos de Anafenza, ele tinha insistido em manter as formalidades com a nova khan, e cada vez que ele se dirigia a ela, suas frases começavam ou terminavam com “minha khan”. Era amável, até certo ponto. “Quais são as notícias?”
“Os líderes das casas do clã estão reunidos, minha khan,” disse Kwaro.
“Todos eles?”
“Cada um deles, minha khan.”
Aquele que mais importa, ela pensou.
A khan desceu pelos galhos da Primeira Árvore. Ela a escalara pela primeira vez apenas duas semanas antes, quando havia entrado na praça nomeada em homenagem à árvore, em seu primeiro dia como khan. Embora os galhos e pontos de apoio já fossem familiares a ela, a Primeira Árvore tinha, de algum modo, parecido diferente das outras árvores de família. Os khans eram enterrados sob ela – pessoas que não eram ligadas pelo sangue, mas por seu dever para com o clã. Como em todas as árvores de família, porém, seus nomes estavam entalhados no tronco. Como em todas as árvores de família, os espíritos dos ancestrais ali habitavam. Como em todas as árvores de família, Anafenza refletiu, a Primeira Árvore crescia como um lembrete de que um indivíduo tem um dever sagrado para com sua família e seu clã.
Anafenza se abaixou de um galho até que seus pés tocassem o assento laranja-dourado do trono de âmbar. O assento do khan, uma peça sólida de âmbar esculpido e ornamentado, ficava sobre um estrado de pedra que circundava o enorme tronco da Primeira Árvore. Anafenza desceu sobre ele, fazendo balançar a espada que pendia de um dos braços do trono. Ao lado dela, botas de couro marrom para cavalgar estavam caídas uma sobre a outra, e ela as pegou.
Enquanto esperava Kwaro voltar, ela se reclinou contra o encosto do trono. Era um pedaço sólido de âmbar esculpido, e suas profundezas translúcidas pareciam capturar e manter a luz do sol. Distraidamente, seus dedos brincaram pelos braços do trono enquanto ela examinava a praça por um momento. Estava vazia, exceto por ela mesma e uma dúzia de seus guardas de honra. Embora fosse descoberto, todo o lugar estava protegido pela sombra da Primeira Árvore, e Anafenza foi atingida pela ilusão de que a praça parecia uma câmara fechada e um pátio aberto ao mesmo tempo. O local seria escuro se não fosse pelas várias chamas baixas que queimavam nos braseiros por todos os lados.
Ela se surpreendeu com quão calma estava. Anafenza estava calma e controlada, preparada para o que precisava ser feito e, pela primeira vez, ela se sentia uma khan.
As portas de madeira maciça da Praça da Primeira Árvore finalmente se abriram pela força de quatro de seus guardas. Anafenza estava de pé em frente ao Trono Âmbar para saudar o primeiro representante enquanto as casas do clã entravam.
As casas dos Abzan não juravam fidelidade a seu khan. Ao invés disso, elas cultivavam laços através de relações de sangue ou de juramentos que as vinculavam umas às outras. Lealdades podiam mudar, a mãe de Anafenza uma vez lhe explicara, mas os laços são sagrados.
As casas tinham elegido Anafenza para se tornar khan, e seus líderes entraram na praça, um após o outro, para declarar seus laços, fossem de juramento ou de sangue.
“Anafenza, Khan dos Abzan,” começou um dos representantes, uma capitã da infantaria de elite do clã, a Escama de Dragão, “a Casa Emesh a abraça como uma irmã diante da Primeira Árvore e dos olhos dos ancestrais.”
“Marrit da Casa Emesh, eu sou sua irmã, assim como agora você é minha irmã,” Anafenza respondeu a formalidade, e as duas se abraçaram.
A procissão continuou. Muitos representantes eram veteranos dos exércitos que ela liderara para defender as terras Abzan. Alguns eram das casas mercantes ancestrais que agora prosperavam como resultado do comércio seguro através da Estrada de Sal. A maioria era de apoiadores que a colocaram no Trono Âmbar. Alguns eram os detratores que vieram para não se tornarem párias políticos. Um era da família.
O último representante se aproximou da khan. Ele estava vestido com a couraça polida de um guerreiro Abzan, a superfície desenhada para se assemelhar ao padrão das escamas de dragão. Um manto de linho branco imaculado caía de seus ombros. Conforme ele caminhava em sua direção, o tecido ondulava atrás dele.
Anafenza esperou no degrau mais alto do estrado para recebê-lo. Quando ele se postou diante dela, ela o olhou de cima. O cabelo dele estava grisalho nas têmporas, e seu rosto tinha sido recentemente barbeado. Quando seus olhos se encontraram, ele estava sorrindo. Aquele sorriso familiar. Era ele, e esse era o momento que ela queria. Aquele pelo qual ela ansiara. Aquele que ela fantasiara com uma certeza prévia. Enquanto sustentava o olhar dele em silêncio, ela esperou por seu momento.
O sorriso dele desapareceu, e seus olhos se arregalaram.
Reconhecimento. E então medo.
O sorriso dela surgiu.
“Você parece bem. Próspero,” Anafenza disse. “O comércio vai bem?”
O homem apenas a encarou, sua boca ligeiramente aberta.
A khan assentiu, e um orc robusto se colocou atrás do representante. Ele era da mesma altura do homem, mas duas vezes mais largo. Ao comando da khan, ele abaixou uma mão pesada sobre o ombro do homem, forçando-o a se ajoelhar. A praça estava em silêncio, exceto pelo farfalhar do vento pelas folhas da Primeira Árvore.
Anafenza subiu no estrado até seu trono, e lentamente tirou sua espada, a Espada do Khan, da bainha.
“Por favor!” o homem gritou com a voz aguda. Anafenza estendeu seu braço até que a ponta da Espada do Khan pressionasse a carne do pescoço do homem.
A poeira da areia entrava em tudo na Estrada de Sal. Anafenza acordou mais uma vez com o solavanco da colossal fortaleza sobre rodas que entrava em movimento pelo poder do behemoth que a puxava, e assistiu aos montículos de areia brincando na luz do sol que enchia seu quarto. Aos treze anos, ela tinha passado a maior parte da vida deslocando-se de cidade em cidade através das terras Abzan como membro de uma das casas mercantes mais prósperas do clã. Era uma vida feita de rotina ao lado da família. Ela treinou com espadas e arcos, aprendeu a ler as cartas e mapas que significavam a sobrevivência nos Ermos Mutáveis, e, quando estava em uma cidade, praticava a arte da negociação e do comércio, embora lhe faltasse a delicadeza diplomática pela qual o resto de sua casa era conhecida. Era uma vida cheia de poeira.
Todo mundo em uma fortaleza ambulante ficava perto de explodir certas vezes. A estreita proximidade com a família, os ventos dos Ermos, os pesados passos da besta que puxava a fortaleza, e o ruído incessante da areia sob suas rodas: tudo isso trabalhava constantemente para dar nos nervos de quem quer que fosse. Anafenza aprendera cedo que isso era natural e que todos precisavam de sua própria válvula de escape. Sua mãe cavalgava sozinha à frente da fortaleza em seu íbex quando as condições permitiam. Seu pai coletava ossos de dragão e esculpia desenhos intrincados em suas superfícies.
Para Anafenza, cortar os cabelos era uma válvula de escape suficiente. A poeira se grudava nele, e ela odiava acordar em uma manhã quente com o cabelo colando no pescoço. Em uma manhã como aquela, ela pegava as tesouras e começava o trabalho já familiar. Quando o ritual estava completo, seu cabelo já não ficava na frente do rosto e não grudava atrás do pescoço. Ela deixava o cabelo em suas têmporas longo, e essas mechas iam além de seu queixo. Anafenza ficava remexendo nelas quando estava inquieta, e ela sabia que elas incomodavam sua mãe.
“Aí está ela,” seu primo disse, cumprimentando-a com um sorriso enquanto Anafenza entrava no escritório apertado da fortaleza. Sempre havia gente ali, debruçando-se sobre mapas e registros mercantes, tentando determinar a rota comercial mais eficiente e lucrativa. Seu primo, Oret, era o cartógrafo da casa, e estava sempre ali desde que retornara de suas viagens. Ele era quase dez anos mais velho do que ela, e tinha um estoque infinito de histórias das terras além das fronteiras Abzan. Ele também era uma pessoa fácil de conversar. “O cabelo se foi, huh?”
“Já era hora,” disse Anafenza. Oret sorriu por detrás de uma grossa barba negra.
Como sempre, um mapa estava aberto em uma mesa em frente ao seu primo. Cada vez que ela vinha visitá-lo, ele insistia para que Anafenza localizasse no mapa a posição em que se encontravam. Ela era boa nisso, na maioria das vezes.
“Nós estamos a dois dias de Arashin pela Estrada de Sal, hmm, em que cidade nós acabamos de passar?” Anafenza contorceu o rosto e fechou os olhos em concentração. Todas as cidades se misturavam em um borrão durante suas longas expedições comerciais.
“Kavah,” veio uma voz baixa e grave que não pertencia a seu primo. “A dois dias de Arashin pela Estrada de Sal passando por Kavah.”
Anafenza não precisou abrir os olhos para saber quem tinha falado, mas ela abriu mesmo assim, ainda que só para poder revirá-los. Gvar Barzeel. O nome a arrepiou. Sempre a arrepiava. Gvar era um krumar, o que significava que ele não tinha nascido entre os Abzan. Ao invés disso, ele era o que restara de uma batalha dos Abzan contra o clã Mardu, que os Mardu perderam. O costume ditava que os Abzan deveriam cuidar das crianças dos inimigos mortos em batalha. Assim, Gvar veio para casa com um dos tios de Anafenza depois da batalha em que seu filho, o primo favorito dela, tinha sido morto.
“Kavah é onde eu comprei essas,” disse Gvar. Ele segurava uma tigela de uvas e as oferecia na direção de Anafenza, que fingia não ter notado. Gvar e Anafenza tinham idades próximas, e por isso os outros esperavam que eles fossem amigos.
“Muito bem, Gvar,” veio a aprovação de Oret enquanto ele posicionava no lugar correto do mapa uma miniatura da fortaleza esculpida em madeira.
Para o alívio de Anafenza, ela não precisou ouvir Gvar abrir a boca de novo, porque o trio no escritório voltou sua atenção para a chegada de sua mãe, seu pai e um de seus muitos tios. Eles estavam no meio de uma profunda discussão.
“Nós não estamos no ramo do comércio? Deveríamos ir aonde os negócios forem bons,” disse a mãe de Anafenza, sua voz grossa de exasperação.
Seu tio levantou as mãos em um gesto brincalhão, como se estivesse protegendo o rosto de um ataque. “Nós já admitimos a derrota,” ele disse.
“Vamos então consultar nosso cartógrafo,” seu pai acrescentou.
“Sobre o quê?” disse Oret, claramente se divertindo com o comportamento dos parentes mais velhos.
“Uma cavaleira chegou. Ela nos disse que um carregamento de corantes chegou em Kavah. Eu acho que vale o esforço voltarmos por ele, especialmente porque a capital é nossa próxima parada.”
“Entendo.” Oret passou os olhos pelo mapa, seu sorriso desaparecendo. “Você sabe que Arashin está a apenas…”
“Dois dias de distância!” Anafenza cortou.
“A dois dias de distância,” repetiu Oret. “Parece que há tempestades de areia se formando atrás de nós. Eu devo insistir para que continuemos indo para a capital.” Essa não era a resposta que a mãe de Anafenza queria ouvir, e o quarto irrompeu em discussão. Anafenza e Gvar foram levados para fora.
Anafenza correu pelo interior da fortaleza, subindo até que seus passos a levaram ao telhado da praça, onde a árvore da sua família crescia. Gvar seguiu atrás dela.
“Você acha que vamos voltar para Kavah, prima?” Gvar perguntou.
Anafenza girou para encará-lo. “Nós não somos primos, Gvar! Nós não somos nem da mesma família! Meu primo morreu lutando contra o seu clã! Você só está aqui porque não sobrou ninguém da sua família para tomar conta de você, e os Abzan não são selvagens.”
“Então nós temos algo em comum.”
“Do que você está falando?” Anafenza jogou os braços para cima de frustração.
“Nenhum de nós dois escolheu a família que tem.”
Anafenza o olhou nos olhos, não disse nada, e lhe deu as costas. Ela tirou as botas com os pés e escalou o tronco da árvore de família. A árvore da família dela. Gvar a observou subir, mas Anafenza não se importou. Em breve ela estaria no topo, e então ele ficaria fora de vista.
O ronco das rodas da fortaleza ressoava pelos galhos, mas Anafenza tinha feito aquela mesma escalada incontáveis vezes, e chegou facilmente aos galhos mais altos.
Folhas se moveram em uma posição abaixo dela.
“Gvar?” disse Anafenza.
“Não é o Gvar,” veio um sussurro. Um rosto emergiu. Ele pertencia a Hakrez, a guardiã da árvore de família. Em uma tradição típica dos Abzan, Hakrez, a guerreira mais habilidosa da família, se tornara a guardiã da árvore. Ela era responsável por proteger a árvore de danos e preservar os ancestrais. Ela era destemida, feroz, falava apenas em sussurros e – para Anafenza – era igualmente assustadora e incrível.
Enquanto Hakrez escalava, seus olhos nunca miravam os galhos. Ela conhecia a árvore melhor do que qualquer um. Seus olhos permaneceram em Anafenza. Quando as duas estavam no mesmo nível, Hakrez começou a falar, e Anafenza teve que se inclinar em sua direção para escutá-la acima do vento.
“Onde nós estamos?” a guardiã da árvore de família perguntou.
Na estrada de Kavah, a dois dias de Arashin, ela teria dito se outra pessoa tivesse perguntado.
“Não é uma armadilha. Onde nós estamos?” disse Hakrez.
“Em uma árvore.”
“Na nossa árvore de família.”
“Me desculpe. Na nossa árvore de família,” Anafenza se corrigiu.
“E o que ela é?”
Anafenza repentinamente teve um sentimento de que fizera algo errado. “A árvore dos nossos familiares.”
“A árvore da nossa família, Anafenza. Família de sangue e família de juramento. Essa árvore pertence a todos eles.”
Anafenza sabia que os guardiões das árvores de família tinham uma conexão especial com os espíritos dos ancestrais, e que sempre pareciam falar com uma maior dose de sabedoria, como se as palavras de alguma forma atravessassem o tempo.
Hakrez deixou Anafenza pensando em suas palavras. Ela ficou lá por horas, observando os soldados Abzan marchando ao lado da fortaleza.
Ela percebeu que a fortaleza não tinha mudado de rumo. Eles ainda estavam a caminho de Arashin, e sorriu diante da perspectiva de esticar as pernas nos mercados de lá.
Ela olhou através das dunas que cercavam a caravana da fortaleza. O deserto se estendia em todas as direções, e chocou Anafenza pensar que mesmo tão perto de uma cidade, não havia evidências de civilização. Como que para ressaltar o pensamento, eles se aproximaram de uma linha de gigantescos ossos de costelas sobressaindo da areia ao lado direito da fortaleza. Não era uma visão incomum nos Ermos Mutáveis, onde as areias engoliam vilarejos inteiros, ou regrediam para relevar relíquias areadas de dragões que foram derrubados pelos ancestrais Abzan muitos séculos antes.
Anafenza estava observando as costelas enquanto a fortaleza passava por elas quando duas delas se moveram. A areia se moveu como que caindo. A duna parecia estar colapsando sobre si mesma inicialmente, até que ela viu que algo estava se levantando da areia. Uma pelagem emaranhada e escura emergiu, e o queixo de Anafenza caiu, seus olhos fixos na forma que se levantava. Ela estava congelada de pavor.
Não eram costelas de dragão.
Eram presas.
Uma cabeça enorme se seguiu, seu crânio apenas semicoberto por tiras de carne apodrecida. E então uma tromba. Anafenza não foi a única a perceber, e gritos de aviso podiam ser ouvidos por toda a fortaleza. Abaixo, a infantaria de escolta se posicionou em uma formação defensiva.
Quando o cadáver reanimado do mastodonte terminou de se erguer, três outros estavam se levantando das areias. O fedor de morte deve ter assustado o behemoth que puxava a fortaleza, porque ele gritou e disparou.
O caos irrompeu.
A areia entre os mastodontes parecia explodir em chamas em dezenas de lugares ao mesmo tempo. Esferas de luz com trilhas de energia laranja tocavam a superfície da areia na direção da fortaleza. As esferas desapareceram para revelar incontáveis guerreiros que se lançaram sobre o behemoth assustado.
“Emboscada!” veio uma voz da praça abaixo da árvore de família. “Um grupo de guerra Sultai!” Anafenza viu dezenas de arqueiros tomarem posições nos parapeitos. Flechas voaram de seus arcos, e os guerreiros Sultai se espalharam para evitar a saraivada.
Os mastodontes arrastaram-se pesadamente em direção à fortaleza, e os soldados lá embaixo foram forçados a se dispersarem. Na árvore de família, Anafenza sentiu o súbito soprar do vento. Uma nuvem de poeira rodopiou até se consolidar na forma de três humanos vestidos com as armaduras pesadas dos Abzan. Ancestrais. Eles cumprimentaram Anafenza com um aceno de cabeça, e então dispararam em direção a um dos enormes horrores mortos-vivos cambaleantes, rasgando-o com suas armas espirituais.
O mastodonte caiu, mas os outros já tinham alcançado a fortaleza. O primeiro bateu contra uma muralha com força suficiente para rachar seu próprio crânio. Anafenza quase foi jogada da árvore de família, mas conseguiu se agarrar aos galhos e se equilibrar bem antes da colisão com o mastodonte seguinte. O mundo tremeu. Outro impacto. Anafenza não conseguia se focar, tudo ficou de ponta-cabeça, e a Estrada de Sal correu em sua direção.
Um momento depois, Anafenza estava esparramada na areia. Ela ficou lá, desnorteada. Uma batida de coração antes, ela se elevava sobre as areias, agora seu rosto estava enterrado nelas. Os sons de violência badalavam em sua cabeça. Anafenza desejou que os músculos de seu pescoço virassem sua cabeça, mas uma dor lancinante transpassou sua bochecha conforme raspava na areia áspera. Ela esticou a mão para amenizar a dor, e sua mão surgiu grudenta e vermelha.
Anafenza se virou para ficar de costas e olhou para baixo para ver a parte de cima de seus pés descalços, que estavam rasgados do mesmo jeito que ela imaginava que seu rosto devia estar. Além, a fortaleza jazia tombada de lado, e perto dela estavam os restos despedaçados da árvore de família. O choque da queda a arrancara do solo e ela se partira com o impacto. Galhos quebrados e soldados quebrados se espalhavam por todos os lados. Sob um pesado tronco, Anafenza reconheceu o corpo sem vida de Hakrez, a guardiã da árvore de família, cujo peitoral da armadura estava amassado. A mente de Anafenza correu para entender o que acontecera, e ela se lembrou dos mastodontes.
O soar de um chifre trouxe Anafenza de volta à realidade. Seus músculos se encheram de energia, e ela se ergueu para ver os Sultai se retirando para além das dunas. Porém os gritos de comemoração não seguiram o soar do chifre, e o ar continuou pesado com os sons do massacre.
Anafenza rodeou a fortaleza caída para encontrar a fonte do tumulto, torcendo para ver os soldados de sua casa acabando com o último dos mastodontes. Mas havia gritos. Gritos humanos, e ela se aproximou com cuidado.
Quando chegou em um canto, seu mundo caiu em pedaços. A cena que se desenrolou diante de seus olhos era uma violação da natureza. Havia algo tão errado naquilo que doeu tanto na sua carne quanto nas suas entranhas. Ela viu Abzan massacrando Abzan.
Pessoas estavam tentando sair da fortaleza através de suas janelas estreitas, mas, antes que conseguissem, soldados Abzan estavam cortando seu próprio povo com espadas, machados e alabardas.
“Mãe! Pai!” ela gritou. “Oret! Por favor!” Com os olhos arregalados e brilhando com as lágrimas, Anafenza se ajoelhou para pegar a espada de um soldado caído. Quando se ergueu novamente, uma imagem, formando uma silhueta contra o sol, pairou sobre ela.
“Seus pais estão mortos. Assim como meu pai adotivo.” Através de sua vista nublada, Anafenza reconheceu Gvar, que sangrava de um corte no canto de seu olho.
Anafenza ignorou o orc e seguiu em frente passando por ele.
“Anafenza! Nós fomos traídos.” Gvar se colocou na frente dela novamente. “Nós temos que sair da…”
A palavra entalou na boca do orc quando ele repentinamente cambaleou para a frente, quase derrubando Anafenza no chão. Ele caiu sobre um joelho, e ela viu a haste emplumada de uma flecha despontando do ombro dele.
Mais flechas caíram ao redor deles.
“Que os ancestrais te amaldiçoem, Gvar!” Anafenza grunhiu enquanto o ajudava a ficar de pé. “Vamos lá!”
Eles seguiram rumo à proteção dos Ermos Mutáveis e continuaram adiante.
Pela maior parte do dia, eles caminharam em silêncio. Cada passo pela areia era um esforço, mas eles continuaram em frente, para longe da carnificina atrás de si. A areia quente queimou as solas dos pés descalços de Anafenza e a espada que descansava em seu ombro parecia ficar mais pesada a cada passo.
“Quer uma?”
“O quê?” disse Anafenza, sua voz falhando conforme as palavras saíam de sua boca seca.
O grande punho de Gvar se abriu para revelar um pequeno amontoado de uvas vermelhas. “Coma algumas,” ele disse.
Anafenza parou e encarou em completa descrença, primeiro a fruta e depois Gvar. O orc balançou os ombros, encolhendo-se um pouco com a dor. “Eu sei, eu sei. Pegue elas de uma vez.”
“Obrigada,” ela disse entre as uvas.
Gvar sorriu e jogou a última uva na boca, e a dupla continuou sua marcha. Quando chegavam ao topo de cada duna, tinham a esperança de encontrar algum sinal de civilização. Na estrada, eles estavam a dois dias da capital, mas através dos Ermos Mutáveis não havia certeza.
“Você ainda admira os Abzan?” A voz de Anafenza tinha uma ponta de amargura. “Será que os Mardu é que são mesmo os selvagens?” Ela olhou para Gvar, que não respondeu. Ele manteve os olhos à frente, protegendo-os da poeira.
“Gvar?” Anafenza insistiu.
“Você sabe,” Gvar finalmente disse, “eu sou Abzan porque, quando era criança, um guerreiro Abzan – seu tio – matou meus pais de sangue em uma batalha, e me deixou sem ninguém. Seu tio me levou para casa e me criou. Se tivesse sido o contrário – se eu tivesse nascido Abzan e guerreiros Mardu matassem meus pais Abzan, eu teria sido morto com eles.” Ele se virou para Anafenza. “Nossa casa foi traída, mas nosso clã demandará justiça.”
Eles caminharam até que o sol estivesse baixo no céu sem nuvens. O vento começou a soprar mais forte, e a areia passou a açoitar impiedosamente qualquer parte do corpo descoberta.
Outra duna.
No topo dela, Anafenza olhou para a névoa que escurecia rapidamente. Com os olhos apertados, ela conseguiu discernir uma vaga, mas inconfundível linha reta horizontal que corria paralela ao solo. “Uma muralha!” ela disse subitamente. “Gvar, olhe!”
“Seus ancestrais devem te amar.” Gvar já estava descendo a duna a passos largos em direção à muralha, e Anafenza estava logo atrás.
A muralha cercava uma aldeia abandonada, e, quando eles passaram pelo portão desmoronado, o horizonte apresentava um brilho laranja. A aldeia não era nada além de meia-dúzia de habitações de arenito em ruínas dispostas em um círculo.
“Nós vamos ficar em uma dessas esta noite,” disse Anafenza.
“Uma que não vá colapsar nas nossas cabeças, de preferência,” disse Gvar. “Veja o que consegue encontrar. Eu vou procurar o poço.”
Anafenza caminhou entre duas das cabanas, inspecionando-as superficialmente. Quando saiu do outro lado, ela se encontrou na minúscula praça principal da aldeia. No centro, ao redor de onde as diminutas estruturas foram construídas, erguia-se uma árvore nodosa, deixada pálida e desprovida de sua casca pelo açoite das areias. Com cada rajada de vento, seus galhos sem folhas rangiam.
A visão da árvore abandonada contra o céu do crepúsculo foi demais. Anafenza correu para ela, deixando sua espada cair antes de desmoronar na areia que se juntara em uma pilha, encobrindo suas raízes. Tudo o que ela conseguia ver era sua árvore de família, despedaçada e morta. Sua família se fora. Ela apertou a testa contra o tronco e sufocou um grito na dobra de seu braço. Lágrimas vieram, e elas arderam em suas bochechas machucadas enquanto escorriam por seu rosto.
Ela ficou lá até o sol se pôr. Até ouvir o grito de Gvar.
“Nós fomos seguidos!” Ele gritou. “Corre!”
“Gvar!” Anafenza estava de pé, a espada em punho.
“Eu estarei logo atrás de você!” Ele estava lutando. Anafenza podia perceber isso pela sua voz. E então ela ouviu passos correndo. Na escuridão, ela viu o grande corpo de Gvar entrar em seu campo de visão ao circundar um canto. Ele respirava pesadamente, suas pernas correndo, e não estava sozinho. Duas figuras estavam logo atrás, e Anafenza captou um brilho de aço nelas. Ela não disse nada, mas silenciosamente se puxou para os galhos da árvore.
Anafenza observou Gvar passar em disparada abaixo dela. Os perseguidores o seguiram. Dois humanos – e ela viu a silhueta familiar de uma armadura pesada Abzan. Seus olhos se estreitaram, ela apertou o punho da espada com mais força, e jogou-se atrás dos traidores. Um dos homens virou-se a tempo de receber a ponta da lâmina de Anafenza abaixo de seu peitoral. Aço mordeu carne, afundando profundamente na barriga do homem. Algum protesto incompreensível foi gorgolejado por sua boca, e ele desabou.
Gvar e seu perseguidor deram meia-volta a tempo de ver Anafenza libertar sua espada. O atacante remanescente ergueu sua própria lâmina, mas antes que ela descesse, Gvar agarrara seu pescoço por baixo. Os dois engalfinharam-se no chão, e o orc rolou sobre as costas de forma a manter o atacante bem preso, com o rosto virado para o outro lado.
Anafenza pressionou sua espada ensanguentada contra o pescoço de seu inimigo incapacitado. “Se você resistir, vai morrer.”
O homem ficou flácido nos braços de Gvar.
“Você vai nos dizer quem planejou isso. Tudo isso,” Anafenza disse, sua voz fria e clara.
O homem permaneceu em silêncio.
Anafenza pressionou mais. “Se você não nos der um nome, vamos acreditar que foi você. E nós planejamos machucar o culpado. Muito.” Ela se inclinou mais perto do rosto dele e o olhou nos olhos. “Então tente de novo.”
“Foi um membro da sua casa,” o homem conseguiu dizer. “Ele contratou os Sultai.”
“Você consegue fazer melhor do que isso,” ela disse. “Quem?”
“Oret. Foi o Oret.”
Com o olhar feroz de uma veterana de incontáveis batalhas, Anafenza olhou de cima para seu primo. Ele parecia tão pequeno aos pés de Gvar. “Parece que seus mapas guardavam segredos que só você conhecia,” ela disse, sua voz fria e firme. “Mas até você precisa vir prestar juramento para um novo khan, Oret.”
Quase inaudível, Oret conseguiu falar, “você estava morta.”
“Eu sou a khan.”
“Por favor,” Oret voltou a implorar.
A khan ergueu uma mão para silenciá-lo.
“Por favor!” ele tentou novamente. “Nós nos reencontramos. Eu sou a única família que você tem!”
Gvar irrompeu. “Como se atreve?”
Anafenza olhou além de Oret para o orc, e seu semblante se transformou em um sorriso de diversão.
“Oret, você não é minha família.”
A khan moveu o pulso e a lâmina brilhou em um borrão. Uma linha vermelha apareceu no lado do rosto de Oret da orelha até o queixo, e ele gritou. Seu sangue prendeu-se à ponta da Espada do Khan, e Anafenza a segurou sobre um dos braseiros acesos na base do estrado. O sangue estalou e chiou com o calor. Ela virou o gume da espada para cima e passou sua própria mão pela lâmina afiada. Sem tirar os olhos de Oret, Anafenza colocou a mão sobre a chama e a apertou em punho. O sangue pingou, chiando quando caiu sobre as brasas.
“Diante da Primeira Árvore e dos olhos de nossos ancestrais, eu o renego, Oret. Você não é mais do meu sangue. Eu o declaro meu inimigo. Se nos encontrarmos no campo de batalha, você não sairá dele. Seu espírito não terá raízes, vagando sozinho em agonia pela eternidade. Agora, Gvar, meu irmão, mostre a ele a saída.”
Traduzido por Alysteran
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