Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
EPISÓDIO 04: RUBI E O CORAÇÃO CONGELADO
K. Arsenault Rivera
Escreveu os arcos de Innistrad: Caçada à Meia-Noite, Voto Carmesim e Marcha das Máquinas.
O dia está fresco e claro quando Kellan e Rubi retornam a Edgewall. Após a difícil ida a Dunbarrow e a maravilhosa casa dos gigantes, este lugar parece tanto um paraíso quanto um casebre. Isso é o que Kellan mais gosta nele. Se ele voltasse para casa em Orrinshire, ele sabe precisamente o que veria: sua mãe no tear, seu padrasto cuidando das ovelhas, os aldeões seguindo o dia em perfeita harmonia. Não há traços da Maldição do Sono em Orrinshire, nem surpresas.
Aqui em Edgewall há muitas.
A primeiro é a disseminação do violeta pela cidade. Onde antes os fios amaldiçoados acentuavam as ruas e vielas, agora eles formam rios e riachos. Quando partiram, havia dezenas de adormecidos. Agora, com o coração apertado, Kellan percebe que as vítimas estão além de qualquer contagem. Apoiados em varandas, escondidos sob pergaminhos e cobertores, em pé junto a janelas abertas…
Até Rubi é surpreendida pela visão. Ela não diz isso — ela é muito corajosa — mas ele ouve isso na respiração aguda dela enquanto eles percorrem as ruas. Ele vê isso nos saltinhos cuidadosos que ela dá para evitar qualquer fio violeta, na rigidez da postura dela. “Cuidado por onde pisa”, ela diz a ele com um sorriso mais para o bem dele do que para qualquer alegria própria. “Não podemos deixar nosso herói adormecer.”
“Não me chame assim,” Kellan responde. “Minha mãe sempre me diz que se eu agir como se algo que fiz não fosse grande coisa, os outros também vão achar isso. Você é tão heroica quanto eu.”
Rubi ri. “Sua mãe parece ser uma pessoa legal, mas você está enganado. Peter é o herói da nossa família. Criar sua irmãzinha sozinho e ser o melhor caçador da cidade…” Ela pula sobre um fio amaldiçoado. “Isso sim é um verdadeiro herói.”
“Acho que há muitas maneiras de ser um herói,” Kellan diz. “Peter é um, mas você também é. E eu gostaria de ser um dia também.”
“Bem, você já está em uma missão,” ela enquanto os conduz pelas ruas até uma pequena cabana bem na beirada da cidade. Uma alma pouco generosa poderia dizer que ela nem fazia parte de Edgewall, mas as cores da cidade penduradas na janela proclamam com orgulho o contrário. Uma nuvem de fumaça de macieira se eleva da chaminé. O estômago de Kellan ronca.
“O que você acha que torna alguém um herói, afinal?” ela pergunta.
“Um herói é alguém que sempre faz a coisa certa,” ele diz. “Alguém que melhora a vida das outras pessoas.”
Rubi para com a mão na porta e franze os olhos. Kellan espera para ver se ela vai responder, mas não há chance de discutir isso agora. Peter os avista da janela e os convida para entrar. Com bifes de carne de veado frescos sibilando em suas frigideiras de ferro fundido, o assunto do heroísmo dá lugar galantemente ao jantar. E aos planos.
Eles dizem a Peter que estão indo para o Lago Larent, e ele concorda em levá-los — com uma condição.
“Vocês devem usar meu manto mais grosso e, quando não conseguirem mais sentir o nariz, devem retornar. Não importa as circunstâncias.”
“Mas e se ainda não tivermos chegado lá?” Kellan pergunta.
“Então, quando vocês tiverem voltado, irei eu mesmo,” diz Peter. “Eu ouvi falar sobre aquele castelo. Ninguém conseguiu chegar ao centro. Nem os outros caçadores, nem os bandidos. Syr Imodane tentou antes de vir para cá. Na opinião dela, era mais fácil enfrentar as terras selvagens do que caminhar mais de quarenta passos pela ponte levadiça — e ela tem aquela arma mágica ardente para aquecê-la.”
O silêncio se espalha pelo cômodo. Kellan olha para Rubi e Rubi olha para Kellan.
“Eu não vou voltar atrás,” ele diz. “Não posso. Não quando tantas pessoas estão doentes. Meu senhor disse que quem derrotar as bruxas acabará com a maldição…”
“Seu senhor não disse que tinha que ser você, rapaz,” diz Peter. “Não há vergonha em precisar de ajuda. Você é apenas um garoto e Rubi ainda é jovem. Você precisa saber quando uma fera pode ser abatida e quando é melhor deixá-la em paz.”
Quando Kellan encontra o olhar de Rubi novamente, ele sabe que ela está pensando a mesma coisa.
E se Peter estiver certo?
No final, Rubi faz a promessa, seu irmão coloca uma pele de urso sobre seus ombros, embora ela insista em manter o capuz. Para Kellan, ele concede um belo casaco de lã, cuja visão faz o garoto soltar um gemido. A lã é de Orrinshire.
Ele o usa com orgulho à noite, e quando Peter diz que tem uma surpresa para eles, ele enterra o rosto na gola elevada quando o embaraço o domina. Pois ali, na praça da cidade, há crianças reunidas em capuzes vermelhos e mantos de lã. Dezenas delas, ele pensa — e há meninas em lã tanto quanto meninos de vermelho. Todos observam em perfeita imobilidade enquanto dois bonecos triunfam sobre toda sorte de problemas para derrotar uma bruxa má que come pessoas.
À luz das velas tremeluzentes, Kellan acha que vê Rubi lacrimejar. Mas ela as enxuga no momento em que ele as percebe, e os dois não falam mais sobre esse momento sagrado.
O Lago Larent fica a uma jornada de uma semana de Edgewall. Peter os acompanha a maior parte do caminho, mas à medida que se aproximam do próprio lago, ele anuncia que vai parar para montar acampamento. E quem poderia culpá-lo? Mesmo a um dia inteiro de viagem de distância, está tão frio que Kellan precisa pular de um pé para o outro para se manter aquecido. Em todos os seus invernos, ele suportou apenas dois dias mais frios do que este — ambos nos meses mais amargos. Ele e sua família se encolhiam com as ovelhas para que ninguém congelasse. No fundo, ele se perguntava se seria possível alguém congelar de verdade. Parecia algo que só a água fazia, ou talvez a cerveja, mas nunca pessoas.
Ele se pergunta menos sobre isso agora. Mas não levanta essa questão. E Rubi também não.
Peter está mais vigilante. “Você tem certeza de que não quer que eu vá com você?” ele pergunta.
“Você ainda está se recuperando,” Rubi responde, embora Kellan ouça um toque de arrependimento em sua voz. “Além disso… acho que quero tentar dessa vez. Ver até onde consigo chegar.”
Eles se despedem de Peter. Ele os abraça com carinho, deseja-lhes o melhor e fica ao lado do fogo enquanto os dois partem. Um longo tempo depois, Rubi olha por cima do ombro, talvez procurando pela silhueta dele contra a luz alaranjada. Tudo o mais neste lugar é azul, verde ou violeta. O céu acima está marmorizado com todas as três cores misturadas como as camadas do manto de uma nobre. Sob a superfície congelada do lago, luzes azuis e estranhas oscilam e dançam, competindo por sua atenção. Kellan acha que vê um par de olhos amarelos sob o gelo — mas um momento depois eles desaparecem.
O mais impressionante de tudo é o castelo. Vê-lo através do espelho é uma coisa; pôr os olhos nele pessoalmente é completamente diferente. Kellan não tinha ideia do quão grande era até agora. A torre principal fica em um penhasco com vista para o lago, mas quem quer que o tenha projetado não parou por aí. A loucura atingiu o arquiteto desconhecido: portões que levam a novas fortalezas, pontes levadiças que não levam a lugar nenhum, uma série interminável de pátios, cada um cedendo lugar a um novo portão. Kellan conta pelo menos cinco pontes levadiças.
Eles haviam se esgueirado para dentro de uma cabana, escalado um pé de feijão e passado por baixo da porta para entrar na fortaleza de um gigante.
Mas ainda não haviam invadido um castelo.
A estrada diante deles, pavimentada com cascalho de cristal cintilante, parecia mais uma ameaça do que um convite. No entanto, Kellan não hesita em pisar nela. O medo não é nada diante do bem maior, ele diz a si mesmo.
Mas Rubi para com seu pé bem na beira do cascalho crocante. “Isso… parece diferente, não é?”
“Só se você quiser,” Kellan diz. Ele estende a mão. “Pelo menos não precisamos escalar desta vez.”
Rubi ri, soltando uma nuvem de vapor, pega a mão dele e começa a andar pelo caminho. “Não diga isso muito alto, ou o Troyan pode surgir de um monte de neve.”
“Eu acho que isso não seria tão ruim,” Kellan diz. “Os lugares de que ele costumava falar pareciam incríveis, não é?”
Rubi faz um som de desdém. “Os lugares dos quais ele estava falando eram inventados, Kellan! Toda a minha vida em Edgewall e eu nunca ouvi ninguém falar de um circo de dor antes. O que isso até significa?”
“Eu não sei. Eu pensei que talvez fosse algo que as fadas fizessem,” Kellan diz. Ele tenta não deixar a decepção atingir seu tom, mas como sempre, Rubi é muito esperta para que isso funcione.
“Você realmente quer ver mais das terras das fadas, não é?” diz Rubi. Ela aperta a mão dele. “Tenho certeza de que, quando isso terminar, você será o centro das atenções na cidade.”
Ele não tem tanta certeza sobre isso. Uma parte dele se pergunta — ele sempre foi muito mais fada para os humanos, então e se ele for muito mais humano para as fadas? Talion já apontou o quão pouco ele sabia dos costumes das fadas todas as vezes que conversaram. Ele ainda não conseguiu fazer os cabos funcionarem. E se for a mesma coisa lá, mas diferente?
Ele tenta pensar em algo para dizer.
Mas logo outra pessoa fala por ele: uma voz de mulher carregada pelo vento gélido.
“Cavaleiros, bandidos e aspirantes a reis falharam ao percorrer este caminho. Duas crianças têm pouca esperança de sucesso. Voltem.”
O céu acima escurece, o vento se intensifica; se não fosse pelo alfinete de aço segurando o manto de Kellan, ele teria sido arrancado do seu pequeno corpo.
Rubi puxa a cabeça do urso sobre a própria cabeça para se proteger do frio. Kellan faz o mesmo, embora com seu simples capuz de lã.
“Não vamos desistir tão facilmente,” ele grita para o ar. Mas aqui o ar é tão frio que corta sua voz ao falar, e quando apenas o silêncio responde, ele se arrepende de ter feito tanto esforço.
“Os corajosos vivem vidas curtas. Não pense que sua idade lhes renderá qualquer misericórdia de minha parte. Meu reino estará seguro contra ameaças, não importa quais sejam essas ameaças. Voltem.”
A cada palavra que Hylda fala, o ar ao redor deles fica mais frio. O vento é tão poderoso que eles precisam se esforçar a cada passo, mas eles não param de caminhar.
Kellan continua olhando para Rubi enquanto caminham. Ele não consegue ver muito do resto do rosto dela, mas o que consegue ver é vermelho como o capuz dela. Certamente ela já não consegue mais sentir o nariz. “Você não precisa continuar indo.”
Mas Rubi apenas lança um olhar de soslaio para ele. “E deixar a bruxa vencer?”
“Ela não vai vencer se eu chegar lá,” ele fala em seu cachecol para tentar se manter aquecido. “Se nós continuarmos…”
“Vocês vão morrer,” vem a voz de Hylda. “Este é o seu último aviso. Sigam suas próprias palavras e voltem.“
O véu de neve se tornou tão espesso que tudo o que ele pode ver é cinza e branco. Mesmo assim, ele e vira, tentando encontrar o castelo. Na distância, ele avista o borrão mais fraco de azul. A um quilômetro de distância, se não mais.
Kellan pisca com olhos frios. Ele poderia se virar, mas se o fizer, ninguém jamais acordará, e ele nunca saberá quem é seu pai.
“Você… não sabe… reconhecer um herói em busca quando vê um,” ele diz rouco. Ao lado dele, Rubi ri, e isso o faz se sentir um pouco mais corajoso.
“Eu sei. Eles morrem tão facilmente quanto qualquer outra pessoa. Você não será o último,” Hylda responde. Sua voz se dissipa no uivo do vento — e nas criaturas dentro dele.
O primeiro movimento é rápido demais para os dois jovens verem: um traço azul cerúleo em sua visão, um som como vidro quebrando. Somente quando a lança de gelo aterrissa aos seus pés é que eles percebem o que estão vendo. A neve girando à frente deles se solidificou em malha e placas: um guerreiro de gelo, pelo menos duas vezes maior do que Kellan, avança sobre eles. Uma nova lança se forma em sua mão aberta.
Um ataque malévolo mira diretamente o coração de Kellan. Rubi o puxa para fora do caminho. Ainda assim, a ponta perfura o fino casaco de Kellan até o chão nevado sob eles. O vento uiva em seus ouvidos e a neve arde em seus olhos enquanto ele tenta se afastar rapidamente.
Mas a lã de Orrinshire é renomada por sua resistência. A fibra de sua casa — talvez cortada de suas próprias ovelhas — o mantém no lugar. Por mais que tente, ele não consegue rasgar o canto preso.
“Ele não pode te machucar se a lança dele estiver presa!” Rubi grita. “Apenas largue o casaco e vá!”
Mas ele não consegue. Seus dedos estão muito rígidos para soltar o fecho que prende seu casaco, e mesmo que o fizesse, o que eles fariam? Nesse frio, ele certamente congelaria.
Kellan trava os olhos com o guerreiro através da névoa. Há uma nova forma se criando em sua mão livre: um machado.
“Rubi, vá em frente!” ele diz.
“Não seja… aaah!”
O protesto dela é interrompido quando é puxada para o alto. Outro guerreiro se formou, e este a segurou em suas garras. Uma espada com estrias de gelo é pressionada contra a garganta dela.
Não, não, não é isso que deveria acontecer. Uma coisa é ele estar em apuros, mas deve haver algum jeito de sair disso. Nas histórias, sempre há algo que o herói descobre. Mas ele não tem armas e não conhece nenhuma magia porque sua mãe nunca o ensinou, e seu pai nunca…
O guerreiro se prepara para desferir um golpe.
“Pai, por favor,” Kellan sussurra. Ele estende a mão uma última vez para os cabos… e uma luz dourada corta o cinza. Algo em Kellan se sente tão brilhante quanto a primavera, não importando o cenário, algo que flui para os cabos e os transforma. Agindo por instinto, ele ataca —
— e sua recém-descoberta espada corta diretamente pelo braço do guerreiro de gelo.
Ele olha com surpresa para a delicada lâmina de luz em suas mãos, a coisa que ele conjurou de sua própria desesperança. Em torno do cabo, a luz parece afiada como espinhos. Ele a admira por um segundo, mas agora precisa tirá-los dessa confusão.
Kellan se abaixa sob as pernas do guerreiro, correndo diretamente para Rubi. Antes que possa pensar em hesitar, também corta o braço deste guerreiro. Pegar Rubi no caminho é algo fácil em comparação.
“Kellan, você está conseguindo!” ela diz com os olhos arregalados. “O poder das fadas, você está realmente conseguindo!”
“Estou!” Se ele disser mais alguma coisa, tem medo de que isso estrague tudo, como se falar isso em voz alta fosse dissipar o efeito.
Ele a coloca de volta no chão. Os guerreiros, uivando de dor, se afastaram, deixando suas armas presas na neve. Rubi pega a espada e fica de costas para Kellan. Mas quanto mais eles esperam, mais difícil é ficar de pé. Sua alegria inicial começa a ceder. A espada mágica em suas mãos está pesada como ferro. Está mais frio? Um estranho sono se instala e ele se preocupa de ser a maldição — mas não há nevoa violeta aqui, nenhuma magia além da sua e de Hylda. Então, por que ele está tão…?
As pálpebras de Kellan começam a fechar. “Rubi… acho que posso estar…”
“Kellan?” Rubi diz e se vira. “Kellan!”
Talvez eles devessem ter descansado antes disso. Ele está tão frio, tão cansado, e…
Já se saiu tão bem, merece um pequeno cochilo.
Kellan cai.
Desta vez, Rubi é quem o pega.
Entre os redemoinhos de azul, branco e verde, há uma garota de vermelho — e um garoto que ela carrega pela neve.
Acolhido em seus braços, se encolhendo instintivamente no calor de seu manto, Kellan é tão frágil que ela teme que os flocos de neve caindo o quebrem. Sua respiração é tão superficial que, se não pudesse sentir seu batimento cardíaco, pensaria que ele estava morto.
“Leve-o e volte para casa.”
Olhando para ele, ela sabe que é um bom conselho. Seu irmão diria a mesma coisa: eles falharam. Ela pode levá-lo de volta e, então, os dois podem pensar em algo para fazer. Ou talvez algum outro herói passe por ali, alguém com um coração como um forno e sangue como minério derretido, que não será atrasado pelo frio.
Há um mês, ela não teria hesitado. A vida se tratava de cuidar de si e dos seus; tratava-se de continuar viva.
Mas não é só isso agora. Isso é maior do que os dois; o show de marionetes mostrou isso para ela. Todas aquelas crianças com seus capuzes vermelhos — o que elas pensariam se ela o deixasse aqui? O que Kellan diria quando acordasse, sabendo que talvez nunca descobrisse a verdade sobre seu pai? Como ela poderia viver consigo mesma se a Maldição do Sono nunca desaparecesse?
Rubi começa a andar.
A neve estala sob seus pés, o vento assobia em seu ouvido. Seus passos nunca pareceram tão pesados como agora; cada um é uma batalha.
“Você não deve nada a ele.”
“As pessoas não precisam dever nada para ajudarem umas às outras,” responde Rubi, falando contra o vento cortante.
Não há resposta. Por um longo período, não há palavras — nenhum som além das rajadas, a neve, sua respiração. Ela nem consegue ouvir a de Kellan. O gelo se formou em seus cílios. Embora ainda esteja longe, o castelo se aproxima a cada passo dado — cada batalha vencida.
Um passo, outro. Suas pernas doem.
“Ele é pequeno e fraco. Você é resistente e forte. Você tem sangue de caçadora. Abandone-o e talvez você ainda possa me alcançar.”
Rubi sente como se estivesse respirando vidro, mas continua respirando. “Continue… falando… já estava me sentindo sozinha.”
Uma forte rajada, provavelmente um desagrado da bruxa, a derruba. Ela e Kellan caem na neve. O frio suga a força que ela lutou tanto para manter. Cada um de seus membros parece pesar tanto quanto um porco de colheita.
No entanto, ela os levanta. Ela fica de pé. Ela levanta o garoto da neve e o carrega, mais uma vez. E nem uma vez durante todo esse tempo pensa em deixá-lo para trás.
Um pé na frente do outro.
“Sabe o que eu acho?” Rubi grita para o vento. “Acho que você também está solitária. É por isso que você continua me provocando. Você não consegue conversar com as pessoas de outra forma, não é?”
Outra rajada poderosa. Granizo a atinge. Ela se agacha, o manto absorvendo o pior do impacto.
“Saiam.”
Rubi segura Kellan com mais força e continua seguindo em frente.
Os portões esqueléticos se erguem diante dela. Quanto tempo ela andou? Pareceu uma eternidade. Ela se vira e observa as pegadas sobre o deserto congelado. Peter disse que essa era a parte mais fácil, chegar até a ponte levadiça mais externa. A travessia é que era fatal.
Quando ela se vira de volta para a ponte levadiça, pode vê-los: protuberâncias sob o cobertor de neve branca pura. Corpos mantidos escondidos da vista. Ela e Kellan serão tão pequenos a ponto de passarem despercebidos se acabarem assim. Nem mesmo Peter conseguiria encontrá-la.
Volte quando você não conseguir sentir seu nariz, ele disse a ela. Ele a fez prometer.
Na verdade, ela não consegue senti-lo há um bom tempo.
Rubi pisa na ponte.
Não há montanhas para moderar o vento aqui, nenhuma estrutura para proteger do granizo ou da neve. Assim que ela está ao ar livre, o clima a atinge de todos os lados. Seus dedos tremem. Ela não conseguiria movê-los, se tentasse. Mas não precisa movê-los para manter o controle, para continuar andando.
Um passo, outro.
“Você é uma tola por continuar.”
“Talvez,” diz Rubi sem argumentar o ponto. Embora ela esteja apenas um quarto do caminho ao longo da ponte, já está ficando difícil continuar levantando os pés.
“Você vai morrer aqui.”
“Eu não vou saber até acontecer,” ela não está mais levantando os pés; não consegue. Caminha pela neve como um bêbado voltando para casa do bar. “Eu tenho que tentar.”
“Mas por quê? Por quê?” a bruxa pergunta. Pela primeira vez, há urgência em sua voz; pela primeira vez, ela realmente parece perturbada. “Você não tem motivo para…”
“Porque meu amigo quer derrotar você, para poder encontrar seu pai e salvar o Reino, e eu não vou desapontá-lo,” Rubi diz.
Um terço do caminho. Ela já passou por cinco corpos.
“Você abandonaria sua vida porque…?”
“Porque é a coisa certa a se fazer,” diz Rubi.
Mais um passo. Mais um. Os joelhos dela doem.
Então ela não pode mais andar. Grande coisa. Ela ainda pode engatinhar.
Rubi força-se a rolar. Ela coloca Kellan de costas, e joga as mãos para a frente. Elas mergulham na neve. Tão fria, tão cansada, tão desajeitada, mas tem que tentar.
“Isso é inútil. Você sabe disso.”
“Ele faria o mesmo por mim, e ele não acharia inútil,” Rubi diz.
Isso não vai funcionar. Ela sabe disso, lá no fundo, mas continuará tentando de qualquer maneira. Mesmo que ela desmaie, mesmo que a neve a leve, Kellan vai acordar em algum momento. Talvez o sangue de fada ajude. E quando ele chegar ao castelo, ele pode descobrir. Ela procura o próximo apoio.
Mas, em vez disso, encontra uma palma estendida, seus dedos puramente brancos, as unhas sobre ele delicadamente afiadas. A pulseira de cristal brilha no pulso. “Pegue minha mão.”
Aquela voz. É a bruxa. Mas o que ela está fazendo aqui fora?
Rubi respira instável. O irmão dela conheceu uma bruxa uma vez – veja onde ela o levou. Ela balança a cabeça. “Não, eu não…”
“Não quero te machucar,” diz a bruxa. “Mas se você não acredita em mim, eu vou te provar.”
A bruxa se ajoelha ao lado dela. Ela parece mais triste do que Rubi esperava. Nenhuma quantidade de enfeites brancos, nenhuma coroa pesada de inverno, nenhuma magia pode esconder a solidão em seus olhos pálidos.
Lentamente, o tempo em torno deles limpa até que apenas a queda de neve suave permanece.
É neste silêncio perfeito que a bruxa se inclina sobre Kellan. “Queridas crianças, que suportaram tantos problemas…” Ela pressiona um beijo em cada uma de suas testas. “Sejam bem-vindos à Casa do Inverno.”
Um formigamento mágico se espalha ao longo da pele de Rubi quando ela começa a perder o foco. “O que você está fazendo?” ela murmura.
“Te mantendo a salvo,” a bruxa diz. Rubi sente dedos correndo através de seu cabelo. “Você estava certa sobre mim, eu tenho medo. Eu estou sozinha. Eu tinha esquecido disso, mas vocês dois me mostraram o que esqueci por ficar aqui nesse castelo.”
A visão de Rubi começa a desaparecer.
“Durma, criança. Quando vocês acordarem, saberão a verdade.”
Os jovens acordam horas depois em uma sala de gelo brilhante. Dois golens, trabalhados com o mesmo material que as paredes, protegem seu sono. Cobertores, grossos e peludos os envolvem e diante deles está um banquete matinal apresentado em uma bandeja de cristal. A sidra picada, a torta, a sopa generosa – qualquer coisa que alguém pudesse querer aquecer seus ossos – repousa sob uma cloche cintilante. Tudo o que falta é alcançá-la.
Kellan nem pensa. Seu estômago roncando, sua cabeça martelando. O que mais um jovem pode fazer? Mas Rubi segura sua mão.
“É a bruxa que fez,” ela diz.
“A bruxa que disse que não vai te machucar,” vem a resposta do outro lado da sala. Ela está de pé, ao lado de uma cadeira, abrindo um livro. Pega sua própria xícara e pires antes de vir se sentar em frente aos dois. “Fico feliz em ver que você está bem.”
“Como sabemos que isso não é uma pegadinha?” pergunta Rubi. “Você nos salvou lá fora, mas talvez você só quisesse nos deixar à vontade por um tempo. Talvez você vá nos comer…”
“Comer você? Suponho que você tenha conhecido Agatha.” ela diz.
“Nós a jogamos em um caldeirão,” diz Kellan. Ele não tem certeza o quanto Rubi está certa sobre isso, ou mesmo como ele acabou aqui, mas achou chato perguntar.
Se isso incomoda Hylda, ela não dá nenhum sinal. “Ela não merecia menos,” ela responde. “Eu acreditava que era diferente delas. Das outras duas, quero dizer. Elas sempre buscaram poder. Tudo que sempre quis foi ficar sozinha.”
Kellan olha para Rubi. Ele tem uma memória fraca da voz de Hylda, mas é uma que o deixa tranquilo. Ele aperta a mão de Rubi. “Mesmo que você goste mais de estar sozinha do que com pessoas, é sempre bom ter amigos.”
A bruxa sorri. Seu rosto não é adequado para essas coisas. “É sim,” ela diz. “Mesmo quando eles são amigos muito céticos.”
Rubi resmunga. “Só estou cuidando dele!”
Há uma risada tão inadequada para a bruxa quanto seu sorriso. “Eu não guardo rancor – mas você é difícil de impressionar. Mais dois presentes provarão minhas intenções para você?”
Rubi cruza os braços, como se estivesse esperando para ver o que poderia ser. Enquanto isso, Kellan experimenta a cidra e a torta. Hylda não representa nenhum mal para eles; se ela quisesse, os teria deixado lá fora. Além disso, sua mãe sempre ensinou que era rude recusar a hospitalidade assim.
Mas ele logo para quando vê o que Hylda fez. Com um toque leve e cuidadoso, ela levantou a coroa congelada de sua cabeça e a colocou sobre a mesa diante deles.
“Ah. Já me sinto mais leve. Leve isso ao seu Senhor Amável, como prova da minha derrota.”
“Você tem certeza?” Kellan pergunta.
“Você não está derrotada se ainda estiver por aí,” Rubi diz. “Quem garante que não vai continuar cultivando o castelo e congelando as pessoas até a morte?”
“Eu garanto,” ela diz fazendo gestos para as janelas. “Dê uma olhada lá fora, se quiser. Sem a coroa eu posso manter apenas uma pequena casa para mim.”
Rubi estreita os olhos e vai para a janela, Kellan a segue. O sol matinal cai sobre as paredes do castelo, iluminando a água já escorrendo em riachos abaixo da pedra, córregos já em cascata abaixo do penhasco. O castelo começou a derreter.
“Eu acho que ela está falando sério,” Kellan diz para Rubi. Então se vira para a anfitriã: “Foi uma coisa corajosa de se fazer, desistir do poder assim. Minha mãe sempre disse que nem toda bruxa deve ser temida.”
“Sua mãe não falou falsamente,” diz Hylda. “Além disso, tive muita inspiração.”
Rubi se senta. Finalmente se permitindo apreciar um pouco da cidra.
Kellan pega a coroa e coloca em seu colo. “Você disse que tinha outra coisa para nós?”
“Um presente de informação,” diz Hylda. “Eu ouvi vocês dois falando no caminho para cá. Você serve ao Senhor das Fadas. Quando você deixar este castelo, certamente vai encontrar um dos seus portais esperando por você. Mas desta vez, você não cruzará o limiar sem saber.”
“O que você quer dizer?” Rubi pergunta.
Hylda olha em direção à janela antes de continuar. “Nós, bruxas, não criamos a Maldição do Sono sozinhas. Estava além do nosso poder fazê-lo.”
“O quê?” pergunta Kellan.
“Quando os invasores chegaram, cada um tinha ideias diferentes de como lidar com as coisas. Talion foi quem quebrou o impasse. A Maldição do Sono de Eriette, Talion argumentou, seria a maneira mais segura de combater os invasores. Já que nós três nunca poderíamos lançar um feitiço tão poderoso por conta própria, nunca teríamos considerado. Éramos quatro naquela época, e poderíamos ter alguma esperança, mas ela morreu há vinte anos. Nós precisávamos de quatro. Talion, forte como pode ser, precisava de nós para isso funcionar tanto quanto nós precisávamos de sua ajuda. Assim nos ofereceu a chance de salvar o Reino – e benefícios por nossa ajuda. Sempre favores e benfícios, com fadas.”
Kellan engole. “Mas Talion disse que você colocou o mundo inteiro para dormir.”
Hylda alisa o cabelo de Kellan. “Era apenas para deter os invasores,” ela diz. “O fato de que ela continuou fora de controle depois é obra de Eriette. Disso, tenho certeza. Ela aproveitou a oportunidade para aplicar uma maldição desse tamanho – para ter todas aquelas pessoas em seu poder. Acho que ela poderia até ter feito isso sem receber algum favor, caso o Senhor das Fadas não tivesse oferecido um.”
“Mas… esta é supostamente uma missão heroica,” Kellan diz. Os lábios começam a tremer, a voz dele vacilando. “Pensei que estávamos fazendo a coisa certa. Foi Talion quem fez isso?”
“Você está fazendo a coisa certa,” Hylda diz. “Talion enviou você para limpar a bagunça que nós quatro criamos. Isso é uma coisa boa e nobre de se fazer – consertar as coisas. Mas é melhor quando é feito conscientemente.”
Rubi encolhe os ombros, mas Kellan ainda não consegue parar de tremer. Talion criou isso. Fadas não deveriam mentir, não é? Três bruxas têm atormentado essa terra com a Maldição do Sono…
Kellan pega a coroa em seu colo e corre para fora da sala.
Descendo os salões sinuosos e escadas em espiral ele continua, apesar de não saber o caminho. Atrás dele Hylda o chama, mas ele não consegue entender o que ela está dizendo com seu sangue correndo pelos ouvidos. Quando finalmente chega lá fora, vê que Hylda está certa: já existe um portal.
Quando Kellan segura a maçaneta, a mão de Rubi encontra seu pulso novamente. Ela está suada e sem fôlego, havia corrido atrás dele por todo esse caminho, mas está lá – com ele.
“Juntos, lembra?” ela diz.
Kellan não consegue invocar nenhuma palavra; o caroço em sua garganta é muito grande. Ele acena e caminha pelo portal.
Juntos na terra das Fadas, os dois heróis avançam, a terra dos falsos castelos e das falsas esperanças. Talion espera, preso como sempre, em seu trono. “Aventureiros galantes, grandiosa glória vocês alcançaram…”
Kellan joga a coroa aos pés de Talion.
O Senhor das Fadas estuda o item inestimável e torce uma sobrancelha para o menino. “O espírito do seu pai está finalmente se mostrando, rapaz. O que te aflige?”
“Você mentiu,” Kellan diz.
Talion ergue uma varinha de espinheiro. Uma fada serviçal pega a coroa e leva embora. Talion, enfim, senta-se corretamente no trono.
“Fadas não mentem,” diz. “É um anátema para nós. Se eu fosse mentir para você, meu sangue coagularia como leite estragado.”
“Sabemos da maldição,” Rubi diz. “Sabemos que foi você quem teve a ideia. Você está nos usando, não é?”
Talion se inclina. Aquilo é um sorriso em seu rosto? Kellan acha que pode ser e odeia isso. “Ah. Aquele assunto. É algo tão ruim ser usado para fins tão nobres? A espada de um cavaleiro não reclama por beber sangue.”
“Isso não é a mesma coisa!” Kellan protesta. “Perguntou se éramos puros de coração. Você disse que me ajudaria a encontrar meu…”
Quão vergonhoso é chorar assim, na frente do Rei Fada, mesmo assim Kellan não consegue parar e sua voz se quebra, nem consegue impedir as lágrimas de fluir. Ele limpa os olhos, frustrado. “Eu acreditei em você. Eu realmente acreditei que você o conhecia.”
“Eu conheço,” diz Talion. As lágrimas de Kellan não lhe causam nenhum efeito. “E eu lhe direi o que eu sei dele se você completar esta busca. Ou você vai se recusar a salvar o Reino porque você não gosta da razão pela qual ele está sendo salvo?”
Kellan fecha o punho. “Eu… Eu não disse… Não é tão simples assim!”
“Nada em nossas terras é simples,” diz Talion. “Você encontrará Eriette no Castelo do Vale Arden. Derrote-a e acabará com a maldição; acabe com a maldição e eu te falarei sobre seu pai. Ou não a derrote. Regresse ao seu lar bucólico e nunca mais estará tão perto do pertencimento como quando abraçou a sua tradição. A escolha é sua.”
Um movimento da varinha. O Mundo Fada cintila e se esvai ao redor deles.
Mais uma vez, eles estão nos penhascos do lado de fora do castelo de Hylda.
E Kellan? Kellan começa a chorar.
Traduzido por Rissa Rodrigues
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