Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

EPISÓDIO 06: O ÚLTIMO A SAIR

K. Arsenault Rivera

Escreveu os arcos de Voto Carmesim e Innistrad: Caçada à Meia Noite

O medo é a primeira coisa de que ela se lembra.

Em seguida vem o cheiro da coisa: piche queimado, ozônio. Ele gruda no céu da boca e não há para onde fugir.

Assim que ela ouve o deslizar de suas garras contra a pedra, seus olhos se abrem e ela alcança sua espada. Lá está: o monstro com garras tão longas quanto as de um sabujo de caça, centenas de dentes afiados, órbitas vestigiais cegas. Uma garota se encolhe na frente da besta, pressionando-se contra a parede de pedra fria. Entre a menina e o monstro há um corpo enrolado de lado: uma mulher mais velha, com a garganta cortada. Seu sangue escorre da mandíbula trêmula do monstro enquanto ele avança para a garota.

O que a impressiona – além do fato de ela ter olhos e poder ver – é que nada disso é novidade para ela. Ela conhece este lugar. Ela esteve aqui, antes. Esta masmorra mofada fica a apenas alguns passos da antiga casa de sua família. Ela sabe que a garota está aqui há uma semana, talvez mais – que ela está com fome, sede e perdeu toda a esperança. Ela sabe que a mulher no chão é a mãe da menina.

Desta vez, ela faz o que a garota só poderia sonhar em fazer. Desta vez, ela tem uma espada. A criatura avança para a garota, mas ela se coloca entre a fera e a criança. As garras arranham a armadura conforme ele se aproxima. Assim que ela abre suas mandíbulas para mordê-la, ela enfia sua espada no céu da boca do monstro. Óleo preto borbulha da ferida e escorre pelo comprimento de sua lâmina. Ela puxa a lâmina de volta. A criatura, convulsionando, se enrosca no chão. Mais um corte separa a cabeça do corpo. Ela a chuta para longe.

Tão fácil. Tinha sido tão fácil. Ela já achou esse tipo de coisa difícil?

Ela é atingida por suas memórias. A garota precisa ir a algum lugar. Há outra coisa que ela deveria fazer. A mulher precisa de um enterro adequado, mas nunca o terá, e é melhor não pensar nisso.

E… não havia outra coisa?

O que ela está esquecendo?

Ela balança a cabeça. A garota jogou os braços em volta dela em um abraço. Ela bagunça o cabelo da garota. “Você está segura agora.”

“Obrigada,” responde a garota, numa voz sem qualquer traço de juventude. “Você fez a coisa certa.”

Ela olha entre o corpo da criatura e a mulher morta. “Meu trabalho é manter as pessoas seguras.”

“Então é por isso. Mas entenda que você está vendo isso com novos olhos. Antes, isso era difícil para você.”

Passos pelo corredor – calcanhar, estalido, calcanhar, estalido.

Os olhos da garota começam a brilhar. Ela aponta para a porta. “Um implantador está chegando.”

A palavra puxa algo em sua mente – a coisa que ela deveria se lembrar. Ela percebe que deveria achar estranho uma garota com olhos brilhantes, mas não acha. Há algo familiar nela – então ela se ajoelha para dar uma olhada melhor.

Duas sobrancelhas grossas e pretas, combinando com o cabelo brilhante – cabelo que nunca ficava preso em nada além de tranças fortes. Bochechas redondas que sua mãe costumava beliscar. Uma cicatriz ao longo de sua mandíbula de uma queda que ela sofreu. O que foi que sua mãe disse na época? Feridas como aquela pertenciam apenas à carne; usar uma cicatriz era uma escolha. Na época ela gostou daquela escolha. Isso a fazia se sentir mais forte, mesmo que a causa não fosse tão admirável assim.

Uma espada deslizando em uma bainha.

Agora ela entende.

A garota assente.

“Elspeth, é hora de acordar.”

O chão cede sob elas, as paredes voam, o teto mofado é arremessado para outra dimensão. Ao redor delas as estrelas sussurram seus segredos eternos. O rosto da menina – seu próprio rosto, porém mais jovem – muda para o de sua mãe. Sangue pinga da garganta dilacerada em sua capa.

“Você tem uma escolha a fazer.”

Mais uma vez, ela cai.

Ao seu redor, o mundo começa a se alterar. A aldeia em que ela estava – sua aldeia – está selada sob pedra. Blocos são construídos sobre ela pouco a pouco, montados como se por alguma criança invisível brincando, enquanto as árvores frutificavam e murchavam rapidamente, frutificavam e murchavam. O ar começa a tremer.

“Você se lembra do que está se tornando?”

A sombra de uma jovem. Um rosto em meio ao tremeluzir, sorrindo para ela. Elspeth olha para as próprias mãos. Elas também estão opalescentes à luz deste lugar. Uma sensação curiosa formiga ao longo de suas omoplatas; uma pena brilhante cai do nada e flutua diante dela. “Exatamente,” diz sua mãe. “Você fez muito bem em vir até aqui, mas há um último passo a dar. Primeiro você deve deixar seu antigo eu para trás.”

“É por isso que você me trouxe aqui?” ela pergunta.

“Você veio aqui por sua própria vontade. Quando se deparou com o impossível, você fez uma escolha que os outros recusaram. Você reescreveu o destino. Parte de você sabia que era hora de despertar. As consequências dessa escolha estão se desenrolando – e nós estamos logo à frente do seu autor, esperando sua chance de entrar na história.”

Matando a besta phyrexiana? Não… outra lembrança surge: o sílex, seus amigos discutindo, um caminho que parecia claro e certo, se não fácil. Ele não explodiu? Talvez ela esteja morta. Talvez tudo isso seja uma alucinação.

“Não é.”

“Não gosto que leiam meus pensamentos,” Elspeth diz.

“Você pensa alto,” responde a voz.

Ela suspira, ou pensa que sim, neste corpo estranho. Diante dela, os blocos se empilham cada vez mais alto — uma agulha contra o céu. Quando atinge o pico, ela começa a reconhecê-la. Nova Capenna.

“O que eu tenho que fazer?”

“Você deve fazer mais uma escolha – e você tem pouco tempo para fazê-la. Seus desejos e vontades mortais não devem entrar na equação.”

Parecia bastante simples, mas ela tinha a sensação de que não seria.

“O que eu tenho que escolher?”

“Todos os Planos estão em chamas. Você viu um pouco do que aconteceu, mas não tudo. Em breve, você verá o resto. Você deve escolher onde intervir,” diz a voz.

O que ela quis dizer com…? Ah. Uma cabana, uma velha amiga em prantos do lado de fora; uma mulher em uma embarcação balançando inquietamente no céu; um jovem em guerra contra algo que já foi um dragão. Os fragmentos se juntam em sua mente como um vitral blasfemo.

Phyrexia.

É sobre Phyrexia.

No momento em que ela pensa, o mundo acima dela se estilhaça. Os céus de Nova Capenna ficam vermelhos como uma romã; uma enorme estrutura branca perfura as nuvens. A estrutura – algo como o tentáculo de um deus – envolve a cidade. Janelas estilhaçam, monumentos tombam, vigas estalam. Rachaduras correm pela lateral da torre. Óleo derrama do tentáculo, cobrindo a superfície com um preto brilhante. Cápsulas descem sobre a cidade como insetos carniceiros.

Mas Nova Capenna não está morta. Ainda não. Não pode ser – a cidade inteira está fortificada contra ataques. Ela mesma viu isso.

Elspeth quer ver mais. Logo ela está cercada por fogo e escombros. Sangue chega aos tornozelos nas ruas de Nova Capenna. Leva um momento para ela perceber que as pilhas de couro ao longo do meio-fio são as peles arrancadas dos cidadãos mais lentos. Há mais phyrexianos do que pessoas ao redor dela.

E pior: flutuando acima de todos eles está algo que já foi um anjo. A visão a deixa enojada de maneiras que ela não consegue expressar.

Arte de Gabolpes

“Eles a chamam de Atraxa.” A voz está diferente, agora, mas não é desconhecida. Sua mãe. Não é uma imitação convincente – mas, ainda assim, o som gera algum calor no coração de Elspeth. “Um anjo corrompido pelas mãos de quatro pretores. Um de seus generais mais fanáticos.”

Um assobio no ar. Algo explode contra o elmo de Atraxa, mas em seu rastro… nada. Nem uma rachadura. Ela passa sua foice por um grupo de sobreviventes com a mesma facilidade que um fazendeiro colhe trigo.

Elspeth já viu a guerra antes. É familiar para ela, embora nunca fosse confortável, estar no meio da confusão. Em Alara, Theros e Mirrodin, ela levantou sua espada para proteger os inocentes, para encontrar a paz.

Mas este lugar é diferente. Não há nada que ela possa fazer. A ponteira de uma besta phyrexiana atravessa seu corpo. Um leve formigamento é tudo o que ela sente, mas atrás dela, sua presa afunda morta no chão. Uma criatura com asas de morcego que talvez tenha sido um Maestro desce sobre um homem em fuga. Ela tenta salvar o homem apenas para ver suas mãos desaparecerem através dele.

“Lembre-se do que lhe foi dito, El,” diz sua mãe. “Você tem que escolher onde ajudar.”

Elspeth engole em seco. Quando olha para cima, Atraxa varre a praça mais novamente. Cabeças e torsos caem no chão sob o olhar atento dos serafins.

“Aqui era o meu lar. Nunca imaginei que fosse crescer tanto, claro, mas, ainda assim, era um lar,” diz sua mãe. “O povo capennano nos recebeu de braços abertos. Décadas depois, eles receberam você novamente.”

Atraxa solta um grito horrível. Nos céus, as criaturas aladas se organizam em uma rede.

“A invasora recebeu ordens estritas. Não deve haver sobreviventes em Nova Capenna. Apenas nossos órgãos e ossos sobreviverão.”

Como flechas, as bestas aladas descem sobre os níveis superiores do Parque Alto.

E parece que elas têm motivos para isso.

Rebiteiros balançam precariamente de qualquer suporte que conseguem encontrar, segurando ferramentas em brasa nas mãos. Parafusos e porcas caem da superfície como pétalas.

“Há alguns que lutam,” diz sua mãe. “Há outros ainda que se entregaram à corrupção. A voz do poder está aumentando, não é? Mas sempre há alguns que lutam contra probabilidades impossíveis. Pessoas que precisam de ajuda. De inspiração.”

Mais perto um pouco. Dentro do Parque Alto, as ordens são gritadas para lá e para cá, uma cacofonia. Jatos de vapor derretem a armadura dos invasores enquanto eles vão na direção dos que estão dentro. No entanto, eles não conseguem proteger a todos – para cada Rebiteiro que é salvo, mais dois são levados entre mandíbulas de metal.

Eles não têm muito tempo.

“Você poderia ser a salvação para eles. Esta já foi a nossa casa. Você poderia salvá-los com suas próprias mãos. Construir algo novo.”

Poderia? Embora ela tivesse conhecido pessoas gentis que a acolheram, havia aqueles que aceitariam qualquer desculpa para vê-la cair. Ela poderia passar o resto dos seus dias aqui?

As palavras da mulher ecoavam em sua mente: ela deve fazer a escolha certa. Ela deve fazer o que é necessário. Elspeth se vira. Ela avista os serafins mais uma vez e acena para eles.

Por mais terríveis que as coisas pareçam, Nova Capenna tinha seus defensores.

“Este não é o lugar,” ela diz.

Um som trovejante. As paredes voam novamente, tornando-se planas como telas antes de desaparecer na escuridão. Quanto mais ela cai, mais deles ela vê. Alunos se esgueirando pelos corredores, longe de seus professores transformados; uma mulher em um vestido de noiva preto cantando acima de uma horda de zumbis; kor voando em arraias em direção a uma grande estrutura branca.

Ela para entre um céu vermelho e um mar vermelho. No alto, o tecido fino de estrelas ondula. O ar tem gosto de sal.

Theros.

“Bem-vinda ao lar.”

A boca de Elspeth se abre. Imediatamente ela está girando no vazio, procurando pelo orador. “Daxos?”

“Então você não me esqueceu, mesmo com o novo posto,” ele diz. Sua voz é quente e doce como o mel. Ouvi-la é o suficiente para aliviar a tensão em sua alma. “Vou levar isso como um elogio.”

“Não seja ridículo,” ela diz. “Eu não poderia te esquecer, nem se eu tentasse.” No entanto, também sente um aperto no peito quando ela percebe que não pode vê-lo.

E quando seus olhos pousam em Meletis.

Aqui também há fogo; aqui também há escombros e ruínas. As casas em que ela havia tomado chá foram destruídas. O mercado é pouco mais do que uma pilha fumegante.

“É o nosso tempo de necessidade,” ele diz. “E é o tempo de necessidade dele.”

A visão ao redor deles muda novamente – embora desta vez sem a permissão de Elspeth. Eles deixaram Meletis em favor do centro de um templo. Estátuas brancas brilhantes agora estão escorregadias de óleo, seus rostos pintados com máscaras phyrexianas. Fumaça espessa e escura sufoca a câmara interna. Lá dentro, as pessoas estão tão apertadas que ninguém consegue se mexer. Máscaras de porcelana e saliências ósseas falam sobre seu estado.

Um leonino está no topo do altar.

“Os deuses de Theros existem porque desejamos que fosse assim. Eles servem a nosso comando. Agora vocês conhecem a glória de Phyrexia, a glória da verdadeira unidade – um vínculo interminável entre tudo o que é vivo. Isso não é uma divindade maior?”

“Persuasivo como sempre, não é?” Daxos diz.

A garganta de Elspeth ameaça fechar.

“Está vendo a tigela em suas mãos? Está cheia de óleo. E a mulher ali, ajoelhada ao lado dele?”

A visão de Ajani a perturbou tanto que ela não se atentou à mulher. Pelo tecido macio que está usando e pelas joias de ouro que o adornam, ela deve ser uma sacerdotisa.

Arte de Konstantin Porubov

A compreensão dos fatos é como uma facada nas costas. “Ele está tentando converter os deuses?”

Tentando é um eufemismo. Ele já converteu três deles. Nem precisou tentar. Os phyrexianos são tão fervorosos em suas crenças que os deuses têm pouca esperança de revidar,” respondeu Daxos.

“Deuses phyrexianos,” ela repete. “Com esse tipo de poder, seria fácil…”

“Não haveria muitos lugares para se esconder,” concorda Daxos. “Mas você sabe onde estamos? De quem é este templo? Olhe com atenção.”

A cabeça decepada de uma estátua entre os destroços. No momento em que ela presta atenção, ela se sente uma tola. Heliode. Claro. Isso foi feito para ser um teste – e que maneira melhor de testá-la do que esses dois? Em Theros, Elspeth encontrou uma nova luz para guiá-la. Eles se separaram em maus termos – mas ela conseguiria ficar e assistir Ajani ungir o Plano com aquele óleo imundo?

O assobio de uma flecha mata seus pensamentos. A tigela na mão de Ajani se estilhaça; cacos caindo cortam o rosto da sacerdotisa. Enquanto Ajani se volta para o atirador, a sacerdotisa tenta fugir. Dois na multidão a seguram no alto.

Outra flecha acerta o ombro de Ajani. Ele a arranca, quebrando-a em desconforto. “Encontrem-nos!”

“Então, ainda existem heróis em Theros,” observa Elspeth.

De alguma forma, ela sente a mão de Daxos em seu ombro. “Continue assistindo.”

A escuridão os engole por um instante, apenas para devolvê-los a uma parte ligeiramente diferente do templo. Caçadores perseguem um jovem por um dos corredores. O líder – com várias cabeças metálicas – lança uma rede sobre o jovem. Um dos outros leva o jovem capturado de volta ao altar. Ajani ergue a rede com uma única mão.

“Eis aquele que se afasta do bando! Aquele que trama contra nós!” O jovem está gritando. Ajani o solta, apenas para pegá-lo pelos cabelos. “Qual é a utilidade de uma mente que planeja semear a discórdia?”

Elspeth não suporta olhar. Ela se vira – mas não há como escapar do som do osso esmagado ou dos aplausos que se seguem. Como aquilo pode ser Ajani? Como ele pôde fazer uma coisa dessas?

“Ele foi forçado,” Daxos diz. “Você poderia salvá-lo disso. Se ele estivesse aqui – o verdadeiro – ele gostaria de ser libertado.”

“Não tenho certeza se é tão simples.”

Ela se obriga a olhar mais uma vez. A sacerdotisa está ajoelhada, novamente, e ele a está forçando a beber o óleo.

Uma luz está chegando ao templo.

Mas não é o amanhecer rosado, nem o crepúsculo violeta – é a luz branca escaldante da forja. O sol ardente. Apesar da coroa de fogo no templo, os fiéis não desviam o olhar. Nuvens de fumaça sobem do que resta de sua carne sem pele.

“Você é a mulher mais corajosa que já conheci e sempre tentou fazer a coisa certa. Se eu fosse confiar em alguém para salvar Theros, seria você.”

Ela se vira novamente. Seus pensamentos correm. Se ela escolher Theros, ela deve lutar contra Ajani. Se ela lutar contra ele, provavelmente não há mais como salvá-lo. Quando a corrupção se enraíza assim, há pouco a ser feito. Sim, ela matou deuses. Sim, ela amou este lugar, o chamou de lar.

E sim, ela deseja ver Daxos novamente.

Mas isso não pode ser sobre seus próprios desejos e necessidades. De que adianta salvar Theros? O pensamento deveria machucá-la, mas não dói. O que isso faria de bom? Se Ajani cair aqui, as invasões continuarão. Os deuses phyrexianos causarão estragos em Theros – mas as pessoas aqui são mais dignas de salvação do que as pessoas de Nova Capenna?

Sua mente está dividida. De um lado, suas emoções se enfurecem como os mares fora do templo. Do outro, apenas as águas calmas.

Os braços de Daxos envolvem sua cintura. “Eu acho que você sabe o que tem que fazer.”

“Não me faça dizer isso,” ela diz, recostando-se contra ele.

Mas não há ninguém mais lá.

O mundo cai novamente.

Ela cai em uma paisagem onde um lagarto do tamanho de uma montanha luta contra sua contraparte prateada. O óleo e o sangue de suas feridas formam rios ao longo da exuberante terra verde.

Ela cai em um castelo, outrora brilhante, agora reduzido a escombros. Um jovem vasculha os restos quebrados de um arsenal. A armadura que o cobre está remendada com esses restos e já esburacada de preto. Quando ele encontra um selo entre os destroços, ele exclama alegremente. Agora, ele pensa, poderá defender sua família. Mas ele não havia protegido aquela armadura adequadamente, e sua espada é de tamanho inadequado para seu corpo; ele vai cair. Ela tenta falar para ele tentar encontrar um cavaleiro adequado, mas ele não a ouve, pois ela já começou a cair novamente.

Através de fileiras de cavaleiros tocando tambores de guerra, seus cães caçando inimigos phyrexianos; através de uma cidade neon protegida por imponentes guardiões mecânicos; através de pântanos estranhos e colinas retorcidas, ela cai e cai.

Até que ela pousa em um lugar que esperava nunca mais ver.

A Árvore da Invasão é um testemunho orgulhoso dos triunfos infindáveis de Elesh Norn. O vermelho pulsa por baixo de suas placas brancas limpas enquanto alcança os céus – e, de fato, as perfura. Um exército ondulante ocupa uma das pontes à sua frente. Seu estandarte e suas formas – estranhamente curvadas, repletos de tubos e tonéis – os sinalizam como criações de Jin-Gitaxias. Devia haver milhares deles. Quantos eram recém-formados? Quantos vieram dos lugares que ela acabou de ver?

“Você tem uma escolha a fazer.”

O desespero a leva para mais perto da base da árvore. Ela partiu, mas os outros devem ter ficado. Eles não abandonariam uma luta tão importante. Certamente haveria alguém.

Mas quando chega na base da árvore, Elesh Norn é a primeira criatura que ela vê. Sentada em um trono de porcelana, com as laterais desconfortavelmente próximas a espinhos, ela examina sua criação. Diante dela, Urabrask está amarrado a uma máquina. Dois centuriões de cada lado giram rodas quase tão grandes quanto eles. A cada giro da roda, os membros de Urabrask são afastados de seu corpo. Agora, ele é pouco mais que uma pilha uivante de tendões.

Flanqueando Norn estão dois coros improvisados – instrumentos vivos que cantam as glórias de Phyrexia. Ainda assim, o que emerge de suas gargantas profanas dificilmente pode ser chamado de música: eles gritam, gritam, dobram suas vozes. Nem uma vez eles se aproximam de algo como uma melodia. Os gritos de morte de Urabrask fazem pouco para adicionar harmonia.

“Não há espaço para erros.”

Norn estala os dedos. O coro para. Com outro estalo, ela dispensa Urabrask – os centuriões o cortam em pedaços e o levam embora. Com um terceiro, ela convoca um grupo de criaturas voadoras carregando uma grande carga entre eles. Não precisou que elas pousassem para Elspeth reconhecer o corpo devastado de Karn. De alguma forma, seus olhos ainda mostravam sinais de vida, mas a dor dentro deles era muito mais forte.

Arte de Artur Nakhodkin

Ainda mais quando ele, assim como Elspeth, vê o que Norn está celebrando.

Tão pequenos são os mortais diante dela que Elspeth não os notou a princípio: mirranianos, algemados juntos, suas cabeças inclinadas. Sangue escorrendo dos rostos de muitos. Alguns já perderam membros. Implantadores os atendem, enxertando membros indesejados em destinatários relutantes. Elspeth os conhece. Ela lutou lado a lado com eles. Ninguém merece um destino como este.

“Entendemos que suas mentes não podem compreender a glória que espera por vocês,” Norn fala, “e por isso oferecemos nossa eterna piedade. Vocês tem a traição de sua pele para culpar. Sem ela, vocês se encontrarão livre de todos os fardos.”

Elspeth pega sua espada.

“Pense no que está fazendo. Você só tem uma oportunidade para escolher.” É a voz da mulher novamente. “Escolha erroneamente e tudo acaba aqui.”

“Norn tem que morrer,” Elspeth responde.

“Uma vez, há muito tempo, houve uma mulher benevolente de branco que criou um mundo só dela,” começa a voz. Ela se lembra agora. Havia um deus, não havia? Um cujo nome foi proibido dentro da masmorra. Um a quem ela rezava, quando criança. “Um lugar lindo – brilhante, pacífico. Um lugar onde os anjos habitavam. Ela o tornou tão agradável que nunca pensou em sair ou olhar além dele. Anos se passaram e um mago veio até ela em busca de ajuda. Ela nunca imaginou o tipo de ameaça que seguiria em seu rastro.” Ela gesticula ao redor deles. “Esta ameaça. E não é levada apenas por Norn. Ela acredita ser o começo e o fim de Phyrexia, mas ela está errada. Matá-la não vai acabar com isso.”

Centuriões trazem mais três prisioneiros para Elesh Norn. Eles são jogados no chão. Dois não podem ficar de pé por conta própria, nem mesmo se ajoelhar. O estômago de Elspeth afunda quando ela os reconhece: um Koth derrotado; a dríade Wrenn, arrancada de sua árvore; e uma ensanguentada Chandra Nalaar.

“Eis os traidores,” fala um dos centuriões – e é então que Elspeth a reconhece como Nissa. Ou, pelo menos, alguém que já foi Nissa Revane. Partes de seu novo corpo derreteram em escória. “Mãe das Máquinas, aguardamos seu justo julgamento sobre eles.”

“Aplaudimos seu trabalho em apreendê-los, Nissa,” Norn fala. “As provações e tribulações que você enfrentou serviram apenas para varrer todos os vestígios de sua antiga vida. Quando você olha para eles agora, o que você sente?”

“Desprezo. Pena.”

“Como deveria ser. Mas você não precisa ter pena deles por muito tempo. Logo eles serão remodelados e curados. O êxtase da completação os purificará como aconteceu com você.”

Pairando atrás deles, Karn geme.

A mão de Elspeth se contorce ao redor do pomo de sua lâmina.

“Permita que nosso abraço a esses rebeldes prove a toda Phyrexia que temos piedade dos seres inferiores.” O sorriso de Norn era todo dentes afiados. “Jin-Gitaxias. Venha colher o que resta da pequena rebelião de Koth. Você será o arquiteto da perfeição deles.”

O exército se separa. Uma figura desliza entre eles, tubos balançando de sua mandíbula. Jin-Gitaxias logo estará ao lado de Norn. Ele se curva. “Como a Grande Pretora ordena, essa é a vontade de Phyrexia.”

Ele dá um passo em direção ao grupo – e para.

Tudo para. Os rebeldes estão congelados no meio da respiração; o exército não se move mais. O tempo para. Parte dela se pergunta se não é obra de Teferi — se ela o verá no topo da árvore, com o cajado na mão. Quando se trata de Phyrexia, Elspeth sabe que não deve alimentar tais esperanças.

“Por que paramos?”

“Chegou a hora,” diz a mulher. Uma forma brilhante se aglutina entre Jin-Gitaxias e Koth, seu primeiro alvo. Ela é uma mulher de aparência serena, com feições amáveis. Ainda assim, há uma certa tristeza pesando em seus ombros. “Eu preciso ouvir sua decisão.”

“Quem é você?” Ela solta sem pensar.

“Meu nome não importa mais, mas você já o conheceu,” ela diz. Ela caminha entre os prisioneiros, parando agora em Chandra. A Piromante não pode nem mesmo se ajoelhar sozinha – a mulher a equilibra. “Pense bem. Você ainda acha que Norn deve ser morta?”

Por mais que tente, Elspeth não consegue imaginar o Multiverso em paz enquanto Norn viver. “Quando um galho apodrece, você tem que cortá-lo,” ela diz.

“Estranho. Nós ouvimos algo parecido, não é?” a mulher diz. Ela se move para Wrenn – se ajoelha para sustentá-la. A dríade está olhando para a Árvore de Invasão. “Você se lembra, Elspeth?”

Agora que ela mencionou, era familiar. Onde ela tinha ouvido aquilo antes? Ela vasculha a memória, escavando tudo o que viu, até que finalmente a voz volta para ela. Quando um galho apodrece

Wrenn. Elas disseram a mesma coisa, as duas, separados por tempo e lugar. Assim como Elspeth sabia o que tinha que ser feito, Wrenn também sabia. Deve ter sido por isso que ela veio aqui. E se ela está olhando para a árvore…

Alguma coisa muda. Quando ela olha para a cena, Norn fica translúcida, como um espírito. Assim como Jin-Gitaxias. Quanto mais ela olha em volta mais fantasmas ela vê. Apenas Nissa e Wrenn permanecem elas mesmos. Elas eram as peças-chave? Wrenn devia estar ligada à sua revelação anterior – mas por que Nissa? Além de sua excursão para Nova Phyrexia, Elspeth não tinha falado muito com ela. Quando Elspeth chegou, Nissa já havia se perdido.

“Não podemos ficar aqui para sempre,” ela diz. “Você deve responder.”

“Eu sei,” Elspeth diz. “É só… me dê um momento para pensar.”

Por quê Nissa?

Se era alguém que já estava perdido, por que não Ajani? Por que não recompensar seu antigo mentor por tudo que ele fez por ela? Talvez ainda houvesse uma maneira de salvá-lo.

E por falar nisso, por que não entrar em campo em Nova Capenna? Se ela derrubasse Atraxa, talvez os anjos de lá pudessem retornar — e talvez o retorno deles pudesse limpar o plano.

Por mais que ela não quisesse lê-las, as respostas estavam claras em seu coração: se ela salvar Ajani, estará salvando apenas uma pessoa. Sozinho ele não é suficiente para virar o jogo. Nova Capenna pode se salvar. O que deixa Wrenn, Nissa e o fio brilhante que as amarrava.

Sim – ela compreende.

A decisão não é salvar Nissa ou salvar Wrenn.

É para manter Nissa ocupada tempo suficiente para Wrenn alcançar a árvore.

“Você tem certeza?” a mulher pergunta.

Elspeth assente. Seu corpo parece estranho, como se todos os nervos estivessem ligados ao mesmo tempo. “Esta é a coisa certa a fazer.”

“Certo. Eu não posso lutar contra esta ameaça ao seu lado, tanto quanto eu gostaria. Mas posso moldá-la para o que você estava destinada a ser.”

Elspeth olha para sua mão, formando-se novamente a partir do éter deste lugar. Suas unhas, seus calos, as linhas da palma de sua mão. Videntes disseram que podiam ler o destino naquelas linhas. Ela se pergunta se algum deles sabia onde ela iria chegar. “Estou com medo,” Elspeth diz. Novamente, simplesmente escapa dela. Ela nem sabia que estava com medo até falar – mas está. Há uma dormência rastejando no fundo de sua mente. Ela pensa em Daxos, em Theros, na casa que um dia imaginou. Tudo parece um sonho agradável.

A mulher a abraça.

“O medo é sempre a última coisa a sair,” a mulher diz. “Você o derrotou outras vezes. Não hesite agora, Elspeth.”

É a última coisa que ela ouve antes de Serra desaparecer.

Que sensação estranha é renascer – sentir-se sendo despojada e mudada. As asas em suas costas são pesadas como uma cota de malha, mas ela não consegue se lembrar de uma vez que esteve sem elas. Este corpo é diferente – e ainda assim é como sempre foi. Ela é Elspeth, e não é.

Não há mais espaço para indecisão. O Multiverso está na balança.

Arte de Rovina Cai

Toda a sua vida ela esteve adormecida. É hora de acordar, hora de se tornar o que ela estava destinada a ser.

Jin-Gitaxias levanta suas garras.

A espada de Elspeth está lá para enfrentá-las.

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