Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
EPISÓDIO 05: O PRIMEIRO A CRUZAR A LINHA
Em algum lugar de Avishkar, uma equipe de corredores atravessa um Omenpath sob aplausos ensurdecedores. As ruas estão repletas de espectadores agradecidos; há tanto confete no ar quanto éter; a música começou de madrugada e não dá sinais de parar. Quando esses audaciosos corredores cruzam a linha, o fazem como heróis lendários. Muitos anos depois, as crianças que assistiram contarão aos seus filhos sobre o momento eletrizante em que perceberam que a corrida, enfim, chegava a um desfecho dramático.
Ninguém contará histórias sobre este pouso. Pelo menos, não histórias gloriosas. Com o tempo, Pia Nalaar talvez seja convencida a relembrá-lo como uma piada. Daretti o registrará como um dos grandes fracassos de sua carreira, tanto pelo pouso em si quanto pelas circunstâncias que o levaram até ali. Daqui a alguns dias, Chandra Nalaar dirá à namorada que realmente, realmente não fazia ideia de que as coisas terminariam assim, e Nissa estreitará os olhos como se isso não pudesse ser verdade.
Pois, em vez de atravessar o Omenpath de volta para Avishkar, valentes e invictos, o carro-foguete espirala pelo ar acima de um oásis em Amonkhet. Seus ocupantes mal têm ideia do que está acontecendo. A realidade se perde em uma confusão de impulso e torque; apenas a gravidade os mantém em seus assentos. Rodopiando de um lado para o outro como um foguete em movimento, eles voam, voam, voam…
E então pairam, impossivelmente, no ar.
“Ela vai aguentar mais um pouco!” grita Daretti.
“Não tenho tanta certeza disso,” responde Pia. E, como frequentemente acontece, Pia Nalaar está exatamente certa. Mal ela termina de falar, a ponta da nave inclina para baixo como o nariz de um pai desapontado.
Pia se lança em direção à traseira da nave. Entre seu peso, impulso e determinação de desacelerar aquilo a qualquer custo, ela consegue evitar que fiquem completamente na vertical.
Daretti, lamentando a falta de materiais adequados para estabilizadores, vasculha uma cabine, encontra um pedaço de metal que se parece vagamente com uma asa e o amarra ao lado do foguete. Foi sua melhor obra? Não. Nem de longe. Ele adoraria passar dois dias criando um trabalho perfeito que integrasse um novo sistema de forma impecável, em vez de improvisar algo com sucata, mas não pode fazer isso enquanto despenca pelo ar em direção a uma morte certa.
Chandra Nalaar xinga. Depois de extravasar, ela dispara uma rajada de fogo no solo à frente. As águas tranquilas do oásis borbulham e se transformam em vapor fervente, e ela pensa consigo mesma: Talvez isso tenha sido um erro.
Loot, por sua vez, agarra-se aos ombros de Chandra e se pergunta como, exatamente, tudo aquilo aconteceu. Os detalhes técnicos das falhas de engenharia que os lançaram ao ar escapam dele. Mas o medo de cair? Ah, isso ele entende muito bem.
“Estamos chegando quente!” Chandra grita. “Preparem-se para o impacto!”
“Não temos nada para nos segurar, ou onde nos segurar!” responde Daretti.
Não há espaço para mais discussões. Um instante depois, a nave atinge o solo. Uma trilha abrasadora de preto e marrom contra o verde vibrante do oásis será sua marca pelos anos seguintes. Não o orgulhoso traço de heróis, mas a assinatura constrangedora de uma celebridade que não estava prestando atenção enquanto autografava.
Pouco tempo depois, Chandra é a primeira a acordar sob o calor do sol de Amonkhet. Sua dor de cabeça latejante já é ruim o suficiente, mas piora ao perceber que precisa descobrir o que aconteceu com os outros. Seus olhos lacrimejam e embaçam enquanto ela se força a ficar de pé. O pouco que tinha comido antes é expelido de forma insistente enquanto ela vomita ao lado do carro. Vaguamente, ela percebe Loot agarrado ao cinto de seu uniforme. Depois de se limpar, ela o pega nos braços e chama por sua mãe.
“R-relatório. Aqui é Chandra… Nalaar para…”
“Chandra, não grite. Por favor, não grite,” vem a resposta sofrida. Pia geme. “Eu vou ficar bem.”
Um peso sai dos ombros de Chandra. Ela se apoia na lateral do carro meio destruído enquanto o mundo gira ao seu redor. Respira fundo, tentando se estabilizar. Então, pergunta: “Daretti? Você também está bem?”
“Bem, dentro de certos parâmetros,” ele responde, surpreendentemente um pouco irritado. “Eu sugeriria que vocês tirassem alguns momentos para se recompor. É possível que estejam levemente, ou talvez gravemente, com concussão. A tontura e a dor de cabeça vão continuar por um tempo. Felizmente, nunca mais serei pego desprevenido em uma situação como essa. Se precisarem de remédios, tenho vários.”
Chandra se deixa cair no chão. Tanta tontura. O solo sob ela não parece real. Ela se agarra a Loot porque precisa desesperadamente de algo para segurar. A pequena criatura a abraça de volta, e ela sente um leve orgulho por todos terem saído dessa bem.
Quase todos bem.
“Certifique-se de que Chandra seja cuidada primeiro,” diz Pia. “Não é a primeira vez que passo por algo assim. Vou ficar bem daqui a pouco.”
“Não seja tão teimosa,” murmura Chandra.
“Ah, é? Você está me dizendo para não ser teimosa?”
Chandra geme. “Mãe…”
Ela ouve alguém despejando algo ao lado dela. Um cheiro herbal corta o odor de graxa queimada. Uma mão pega a de Chandra. Daretti? Ele lhe entrega um copo.
“O gosto deixa um pouco a desejar, mas vai acalmar seu estômago e aliviar a dor por um tempo,” ele diz.
Chandra está tão fora de si que não consegue evitar dizer o que pensa. “É assim que você se sente o tempo todo?”
A risada de Daretti é suave, mas cheia de dor. “Nos dias ruins,” ele responde. Seu braço mecânico alcança Pia com uma xícara de chá. “Descansem. Vou dar uma olhada no motor e pensar em algo enquanto isso. Só não durmam.”
“Descansar sem dormir?” diz Pia. “Você pede coisas tão simples.”
“Acredite,” Daretti responde. “Quando se trata disso, sou quase um especialista.”
Medicamentos excelentes — do tipo que não são apenas absurdamente caros, mas também raros — fazem você esquecer que já teve algum mal. Eles apagam todos os vestígios da doença e não deixam nenhuma marca no papel.
A maioria das pessoas não tem acesso a medicamentos excelentes.
Bons medicamentos apagam a maior parte do que está acontecendo, mas deixam rastros. Uma marca fantasma no projeto da sua mente e corpo. No caso de Chandra, é um pulsar na têmpora, uma certa secura na língua e a sensação persistente de que está esquecendo algo. A dor se foi, na maior parte, e para a grande alegria de todos, ninguém vomitou nas últimas horas. Descansar sem dormir consistiu basicamente em ficar sentada com os olhos fechados. Pia passou o tempo contando histórias de seus dias como Renegade Prime novamente. Daretti ouviu sem reclamar, mexendo aqui e ali no motor do carro-foguete.
Depois do que parece ser três horas, mas está mais perto de uma, o goblin faz seu diagnóstico.
“Nalaars Prime e Junior. Loot. Lamento informar que o motor foi para o espaço.”
“Junior?” diz Chandra, piscando.
“Não é surpresa, considerando o quanto forçamos aquela coisa. Há sucata suficiente por aqui para remendá-lo e garantir mais uma viagem?” pergunta Pia. A velha rebelde se levanta com esforço.
“Para a maioria das pessoas? Não. Não haveria nem perto de sucata suficiente. As chances seriam intransponíveis,” diz Daretti. “Mas—”
“Não somos a maioria das pessoas,” responde Pia, assentindo. “Bem, não há outra opção, então. Vamos apenas ter que superar as probabilidades de novo. Remendar uma nave funcional a partir de…”
Pia olha ao redor do oásis em que se encontram. Na verdade, há lugares muito piores onde poderiam ter acabado. Há água em abundância, apesar dos esforços de Chandra para transformá-la em vapor; tâmaras espalhadas pelo chão como alimento; estátuas meio enterradas nas areias distantes, oferecendo um toque de beleza artificial para complementar a natural.
“Arenito, palmeiras, sucata e determinação. Moleza.”
“O que eu faço?” pergunta Chandra. “Se vamos tentar colocar isso em funcionamento?”
Pia sorri. “Você, Nalaar Junior—”
“Eu já sou adulta, tá? Você não pode me chamar de Junior se nem temos o mesmo nome.”
Pia dá um toque na testa de Chandra.
“—vai ser o maçarico pessoal da sua querida e doce mãe.”
“Talvez—e isso é só uma ideia—não devêssemos estar tentando soldar coisas no meio de um deserto. Talvez.”
Chandra enxuga o suor da testa. Seu macacão de motociclista está meio aberto, as mangas penduradas nos tornozelos. Depois de horas de trabalho exaustivo sob o sol escaldante, o motor está… melhor? Ela não tem certeza. Espera que sim. A mecânica dessas coisas nunca foi exatamente seu ponto forte. Kolodin era o especialista em toda essa parte técnica. Para Chandra, sempre bastou que o motor funcionasse quando ela girava a chave. Os detalhes se embaralhavam demais em sua cabeça para serem úteis.
Mas Daretti parece bastante confiante de que isso vai funcionar. E Pia confia que Daretti está certo. Então, talvez estejam realmente no caminho certo.
“Acredito que estamos desenvolvendo um tipo totalmente novo de motor aqui, puramente por desespero. Não é algo incrível?” diz Daretti. “Junior, pode suavizar esta solda aqui?”
Uma linha de fogo ao longo da emenda que Daretti aponta. Chandra já fez isso pelo menos quatro vezes, mas tudo bem.
Se isso os levar mais perto de sair dali.
“Você pode estar certo sobre isso. Nunca teria pensado em integrar fibras de palmeira dessa forma. E os ossos de hipopótamo foram uma verdadeira descoberta. Quem diria que eram tão maleáveis?”
“Flexíveis e leves. Não é alumínio, mas certamente tem suas utilidades,” responde Daretti. Mas quando ele olha para Pia e Chandra, há algo diferente nele. Uma… compreensão? Ele respira fundo. “Mas… acho que a maior parte do trabalho de solda está concluída por hoje. Com a noite chegando, talvez seja melhor vocês descansarem mais um pouco. Eu consigo lidar com o restante.”
Pia inclina a cabeça. “Tem certeza? Ainda tenho um pouco de energia.”
“Sim, e não me importo de dar um pouco de luz, se precisar,” diz Chandra. “Você já nos deu aquele remédio antes. Talvez seja você quem precise descansar um pouco. Podemos cuidar de você desta vez.”
Daretti balança a cabeça. Ele aponta para os olhos. “Minhas capacidades visuais superam as de vocês, especialmente quando o dia dá lugar à noite. O tipo de trabalho fino necessário para ajustar o motor a partir daqui faria Nalaar Senior chorar de frustração, e Nalaar Junior desistiria em dez minutos. Então, como podem ver, sou o mais adequado para isso.”
“Senior? Não podemos voltar para Prim…” Pia começa. Ela para e olha para Chandra. O sorriso da filha está um pouco exagerado para ela terminar a frase.
“Tudo bem. Mas não porque eu não conseguiria fazer. É preciso mais do que você imagina para me levar às lágrimas hoje em dia, Daretti.”
Daretti ri baixinho enquanto volta sua atenção para o veículo arruinado. Pia passa o braço pelo de Chandra e a puxa para longe.
“Você pode acender uma fogueira?” pergunta Pia. “Por mais bonitas que essas areias sejam, ainda estamos em um deserto. Assim que o sol se puser, nossos ossos vão começar a tremer.”
A perspectiva de acender uma fogueira alivia o tédio de Chandra. As provocações de Daretti se dissipam como cinzas ao vento. Enquanto ela sai para coletar gravetos — folhas de palmeira secas, lascas das árvores, e o que acha que pode ajudar — Loot pula para seus ombros, chilreando entusiasmado. Vocês são bons em consertar coisas.
Chandra sorri de lado. “Minha mãe é muito boa em consertar coisas. Eu, na maioria das vezes, só derreto elas.”
Loot balança a cabeça. Chandra deixa cair um feixe de folhas de palmeira secas, e Loot salta para pegá-las de volta. Ele as coloca no lugar com um cuidado surpreendente para alguém tão pequeno. Ele as segura para ela e funga. Quando você vê algo errado, você conserta.
“Bem, sim. Quem não faria?” Chandra responde. Então seus ombros caem. “Acho que muitas pessoas não fazem, pensando bem. Mas isso nunca fez muito sentido para mim. A mudança acontece quando alguém tenta consertar algo. Nem todo mundo consegue ir até o fim, mas qualquer um pode tentar. E mais pessoas deveriam.”
“Ela herdou isso de mim,” Pia grita. “Mas muitas outras coisas ela herdou do pai. Como todo esse otimismo.”
“Você passou tanto tempo acendendo coisas, que acabou acendendo a si mesma um pouco também,” diz Chandra com um sorriso. Ela despeja os materiais coletados ao lado de Pia, que está descansando. Ela começa a empilhar a madeira, preenchendo os espaços com gravetos. Loot fica feliz em correr por ali, seguindo as instruções. Um pouco de lascas aqui, pedras ao redor, cavar um pouco mais fundo.
A pergunta de Pia — aquela que vinha fervendo em seus olhos como um chá forte — surge quando Chandra acende o combustível em uma conflagração de calorosa alegria.
“Chandra… por que você não quis correr conosco?”
O calor da fogueira impede Chandra de congelar e relaxa a tensão que isso poderia causar. “Eu já te disse, mãe. Eu queria a melhor chance de vencer.”
Pia a encara com um olhar questionador. “Mas você sabe quanto tempo passamos trabalhando naquele veículo. Eu sou sua mãe. Se você precisa de ajuda para você e sua família, você sabe que eu faria qualquer coisa para te ajudar.”
As bochechas de Chandra ficam vermelhas. Nissa. Família. Não está errado. Depois de tudo o que passaram juntas, elas nunca poderiam ser outra coisa uma para a outra.
Nissa… é difícil imaginar uma vida sem ela.
“Você está certa. Passamos tantas noites trabalhando naquela coisa que, se eu tentasse, nem conseguiria contar agora.” Chandra se deixa cair na grama ao lado da mãe. Acima delas, as estrelas de um plano distante se movem e dançam em seus próprios ritmos peculiares. Uma das coisas que ela mais gosta de fazer com Nissa é olhar para as estrelas assim, tentando encontrar semelhanças entre os planos. Nenhuma das duas é muito boa nisso. E agora, com tudo o que aconteceu, ficou ainda mais difícil.
Mas Chandra espera que possam continuar tentando.
“Você acha que todas essas estrelas têm seus próprios Planeswalkers?” ela pergunta.
Pia murmura. “Talvez tenham. Ou talvez não. É difícil dizer sem irmos até lá, não é?”
“Eu aposto que poderíamos, se tentássemos.”
“Iria exigir muito esforço,” responde Pia. “E você não está levando em conta o tempo de viagem. Você pode atravessar os planos como quiser, mas viajar entre planetas deve ser uma história bem diferente. Saheeli costumava teorizar comigo sobre isso às vezes, enquanto tomávamos chai.”
O silêncio preenche o espaço entre elas. Chandra pensa nas coisas que quer dizer, tenta juntar as palavras em sua cabeça e percebe que não adianta. É melhor falar o que vem à mente. Ela encontrará o caminho para as partes importantes, como sempre faz.
“Se todos esses outros lugares têm seus próprios Planeswalkers, eu nunca os vi. Fico me perguntando como eles são, se os Phyrexianos invadiram lá também. Quantas vezes eles tiveram que salvar seus mundos, e será que alguém ainda se lembra disso?”
Chandra entrelaça os dedos atrás da cabeça. “Eu não podia arriscar estragar tudo. Nissa e eu já perdemos tanto. Não podemos perder a segunda chance dela de ter uma centelha também. Estou preocupada. Você devia ver como ela fala de Zendikar e das coisas que perdeu. Eu consigo ouvir na voz dela, e é como se—é como se qualquer dor que ela sentisse—eu sentisse também. Nós merecemos um final feliz, e ela merece mais do que qualquer pessoa.”
Pia permanece em silêncio, mas atenta. Seu olhar muda das estrelas acima para a filha. Silenciosamente, ela envolve um braço ao redor dos ombros de Chandra. É reconfortante—mas não o suficiente para impedir que os verdadeiros sentimentos de Chandra transbordem.
“Eu sei que você está fazendo o seu melhor, e sei que é uma droga que eu tenha ido embora, mas eu simplesmente… eu não podia arriscar. E agora, estamos aqui em Amonkhet, bem atrasadas, e eu sei que não vamos ganhar, e eu vou ter que voltar lá e contar para ela que eu estraguei tudo—”
“Shh, shh. Ela vai entender, Chandra,” Pia diz. Ela beija o cabelo de Chandra. “Você fez a coisa certa. Você sabe que ela não teria preferido de outra maneira.”
Chandra não soluça. Soluçar não seria a coisa heroica a se fazer. Mas se alguém escutasse de perto, poderia ouvir algo que soa muito como um soluço. “Eu sei. Eu só… eu queria poder parar a dor dela. Eu queria poder fazer algo, descobrir isso, montar alguma solução mágica que consertasse tudo, e eu não consigo.”
“A vida nem sempre funciona assim,” diz Pia. “A gente tenta o nosso melhor, e faz o que pode para encaixar as peças, soldar as coisas, lixar, improvisar da maneira que der. Às vezes dá certo, e você vai para aqueles planetas lá em cima. Mas às vezes, não dá.”
Outro tremor no ombro, outra coisa que poderia, aos olhos de outra pessoa, ser um soluço.
“O que a gente faz quando não dá certo?”
Há uma longa pausa entre elas, mas também um calor tão palpável quanto o fogo que dança diante delas. Pia Nalaar também não está chorando. Ninguém diria isso. Mas, se uma única gota de água salgada estivesse em seus olhos, bem, isso é outra história.
“A mesma coisa que eu fiz quando pensei que tinha perdido você e seu pai no mesmo dia,” ela diz. “A gente… improvisa. A gente encontra outras formas de ser. Nada do que a gente faz é desperdiçado; nenhum movimento é em vão. Todos os anos que passei lutando e me revoltando contra o Consulado me treinaram para ajudar a desmontá-lo—e para me ajudar a entender minha filha de longa data, que não gosta de aceitar ajuda, mesmo quando precisa.”
À medida que a noite cai sobre o oásis, não se pode dizer se alguma das duas está chorando. Mas…
Pode-se dizer que elas estão se conectando.
Já faz muitos meses desde que Chandra Nalaar conseguiu dormir a noite inteira. Pesadelos continuam a encontrá-la. Seja o rosto de Nissa manchado com lágrimas Phyrexianas, os gritos de morte de Urabrask, ou os corpos dos Mirrans enquanto avançavam para o Seedcore, sempre há algo para assombrá-la. Estar com Nissa ajuda. Quando ela acorda e vê sua amada ao seu lado, pode se assegurar de que tudo deu certo, que tudo valeu a pena no final.
Mas aqui, em Amonkhet, ela não tem esse conforto.
Quando acorda desta vez, é com a lua alta no céu, as areias pintadas de prata, a superfície do oásis como um grande espelho no qual ela pode recordar todas as coisas que lhe aconteceram e que ainda podem acontecer. As mariposas são atraídas pela chama, mas a piromante é atraída, neste momento, pela quietude e pelo conforto.
Ela deixa o acampamento e caminha até a borda do oásis. Quando mergulha os pés na água, descobre que está fria, surpreendentemente fria, e seu coração bate em ritmo acelerado enquanto o resto de seu corpo se ajusta.
Mais uma vez, ela olha para o céu.
Foi assim que ela não viu o homem antes que ele falasse—pois ele se manifesta ao seu lado de maneira silenciosa, como a luz da lua sobre a pele.
“Algo a perturba,” ele fala.
“Bem, sim, mas isso não é novidade,” Chandra responde. Então, o pensamento a alcança de que ela deveria estar sozinha, e ela se vira para ver o falante. Uma onda de calma a envolve ao vê-lo. Ela sabe que talvez deveria estar assustada com ele, mas não está. E sabe o que isso significa.
Um dos deuses de Amonkhet.
Ao seu lado, com as pernas também na água do oásis, está um homem muito alto, com um corpo musculoso. Não, não exatamente. Onde a cabeça de Ajani é a de um ser vivo, a deste homem é uma máscara dourada de qualidade excepcional, com uma luz branca intensa iluminando seus olhos e sua boca. Ele está nu, com o peito largo, e sua pele marrom brilha com ouro, mesmo no meio da noite. Um arco dourado está preso às suas costas.
“É novo para mim,” diz o homem. Algo em sua voz lembra Chandra dos mercados de Ghirapur. Ele soa vivo.
“Você é um deus,” Chandra solta. “Você é um—eu pensei que Nicol Bolas tivesse matado todos, exceto Hazoret? Mas você está aqui.”
Uma risada suave borbulha no peito do jovem guerreiro. “Você tem uma maneira interessante de falar, Visitante,” ele diz. “De fato, sou. Matar um deus é matar o próprio espírito de algo. Bolas pensou que havia estrangulado nosso espírito com suas garras, mas o que você vê ao seu redor?”
Chandra olha ao redor. Do outro lado, um par de caracais adormeceu nas margens do oásis. Frutas crescem nas árvores; peixes nadam na água; flores de lótus desabrocham. Aqui é verde, lindamente, abundantemente verde.
“Vida,” ela diz.
“Exatamente,” responde o deus. Ele repousa as mãos em suas coxas bem musculosas. “Onde há respiração, onde há água, onde há pessoas que acordam todas as manhãs e enfrentam o amanhecer—lá estarão os deuses de Amonkhet.”
Um silêncio cai sobre eles, mas não é realmente silêncio. A vida raramente é. O ronco de Daretti, o vento, o suave ronronar dos caracais. Todas essas coisas estão ali, se ela apenas desacelerar para ouvi-las. E, de algum modo, ela acha que pode. Só por um momento.
“A vida está falando com você,” diz o deus.
“Sim, acho que está,” Chandra responde. E não importa para ela que não saiba o que está dizendo.
“Bom. Alegra-me o coração ter ajudado você,” diz o deus.
Chandra o estuda. Ela pode não lidar com deuses tanto quanto alguns dos outros Planeswalkers, mas há uma pergunta no fundo de sua mente que ela não consegue deixar de lado. “Há algo que eu possa te dar em troca? Quero dizer, de todos os lugares onde você poderia estar, você está aqui. Tenho certeza de que há coisas mais importantes que você poderia estar fazendo.”
“Onde quer que um deus escolha estar é o lugar mais importante para esse deus,” ele responde. “Deliciaria-me se você me contasse sobre os outros mundos, sobre como vivem e no que acreditam. Se você me contasse sobre os amanheceres, sobre a glória e sobre a vida comum lá—sim, isso me encantaria.”
Chandra inclina a cabeça. “Isso é tudo?” ela diz.
“Mortais não são as únicas almas a ver as oportunidades de outros mundos. O sonho de nossos campeões é o meu sonho também.”
Hm. Isso não era algo que Chandra já havia considerado. Ela pensa por um momento. Então, olha para as estrelas novamente.
“Bem… o lugar favorito da minha namorada no Multiverso se chama Zendikar.”
Em vinte anos, Spitfire contará às pessoas sobre este momento.
Tudo está se alinhando perfeitamente. Enquanto sua nave uiva pelo Omenpath, nada a impede. Nenhuma distração. Ela nem consegue ver os outros times no retrovisor enquanto dispara pelas ruas de Ghirapur novamente. Os rostos felizes e os cartazes coloridos ao longo da pista são para ela o que é certo e devido a ela. Cada criança avishkari observando, cada mulher com uma camisa de corrida, cada homem acenando com uma bandeira é uma razão para vencer.
E ela vai vencer. Está certa disso.
Só Winter, capitão dos Speed Demons, está em seu caminho. E mesmo assim, não por muito. Qualquer truque que eles estejam usando para se adiantar não está mais ajudando. O estranho glitching do carro deles está pior do que nunca, a silhueta constantemente borrando nas bordas contra a realidade ao seu redor. Quando Spitfire muda para a marcha mais alta, ela está mais certa do que nunca.
Os outros não têm potência suficiente para ganhar isso.
Todas as horas que ela e Pia passaram trabalhando neste carro se concretizaram ao redor dela. Quatro curvas, esquerda, direita, esquerda, direita, pelas ruas. À frente está a estátua de Kari Zev: o último marco antes da reta para a linha de chegada. A pista faz uma curva suave ao redor da estátua decorada com flores. Quando Spitfire e os Speed Demons passam por ela, os vasos de flores caem.
Ela vai ultrapassá-los na reta. Sabe disso. O motor dos Speed Demons não tem chance de competir com o dela, especialmente quando estão tão próximos no início. Eles têm confiado em truques o tempo todo.
Mas ela treinou para isso. Colocou o trabalho. Cada movimento e cada interruptor neste carro é algo que ela aprendeu como se fosse seu próprio batimento cardíaco.
Mais rápido.
O para-choque dianteiro do Aether Ranger raspa na porta do lado do motorista do Speed Demon.
Mais rápido.
Chassi contra chassi, olho no olho. Spitfire não dá nem uma olhada em Winter. Um trapaceiro como ele nunca mereceria. Nem mesmo quando ele explode em chamas ao lado dela com uma risada sinistra e ondulante.
Mais rápido!
Winter dispara uma rajada de chamas azuis em sua direção. Spitfire acelera através do calor, suas mãos já queimadas gritando novamente de dor. A linha de chegada é a única coisa que importa. Vencer é a única coisa que—
De onde surgiu aquela parede?
Tudo acontece tão rápido. Daqui a vinte anos, ela ainda vai estar tentando juntar os pedaços do que aconteceu.
Erguendo-se no meio da pista está uma parede intrincada de filigranas douradas; uma cerca que nenhum dos dois havia considerado quando aceleraram. Como ela foi parar ali? Ela não teve tempo para descobrir, não poderia ter percebido como as próprias precauções de segurança da pista haviam sido usadas contra os corredores.
Tudo o que ela tem tempo para fazer é levantar os braços e se preparar para o impacto.
Estrelas explodem atrás de seus olhos; sua cabeça bate entre as paredes da gaiola de segurança; o volante pressionando contra seu estômago a faz perder o fôlego. No rescaldo do acidente—quando ela está tremendo no banco, quando a adrenalina é éter em seu sangue, quando o mundo parece um sonho distante—confusão é tudo o que ela conhece. Tudo é um borrão de cores, dor e frustração. Tudo o que ela consegue fazer é tentar se levantar, mas até isso é uma tarefa impossível agora. Tentar faz seu estômago virar de cabeça para baixo.
Mãos em seus ombros. Os fiscais?
“Não… eu ainda c-consigo…”
As palavras saem enroladas e desajeitadas, mas ela as diz com cada fibra de seu ser. Temporariamente cega pelo impacto, ela tenta afastar a pessoa que veio até ela.
“Consulado! Consulado, você vai querer ver isso!”
O quê…? Consulado…?
Seus olhos focam. Um grito agudo martela seus ouvidos. As mãos do horror se fecham ao redor de sua garganta.
Ali, em seu colo, está metade da máscara de Spitfire.
Eles sabem. Oh, deuses. Eles sabem.
“Espere. Espere, você não pode—”
Mas o que ela pode fazer? Tonta e ferida como está, ela é impotente quando os capangas a arrastam para fora dos destroços, quando a arrastam até o homem que ela menos queria ver.
A antecipação do que ele vai dizer é pior do que o acidente. Naquele momento, ela não quer nada mais do que se derreter em nada. Quando ele fala, ela quase o faz.
“Sita! Você está bem? O que significa isso? Você poderia ter morrido lá fora!”
A dor e a humilhação a impedem de falar. Ela não consegue dizer nada em resposta, muito menos entender o que está acontecendo.
Sempre teria que acabar assim?
“Levem-na ao médico. Agora. Não economizem,” diz Mohar. “Eu não vou perder minha filha para a degeneração.”
Enquanto a carregam, Sita ouve a próxima ordem de seu pai para seus homens: “Não contem nada disso a ninguém.”
Um gesto de mão é o suficiente para dispensar os guardas. Eles podem dever sua lealdade a Mohar no papel, mas uma mente é uma coisa fácil de mudar. Para ele, é tão simples dispensá-los quanto respirar. Talvez mais simples, nestes dias.
O veículo dos Speed Demons é pouco mais do que uma massa deformada de metal, mas ele sabe, sem precisar ser informado, onde encontrar seu único ocupante. Vraska arranca Winter dos destroços.
“Onde está Loot?” ela pergunta.
Winter tenta chutar para se afastar. Com outro gesto de sua mão, Jace o faz relaxar. Um momento depois, ele está vasculhando a mente de Winter em busca da resposta.
“Você precisa fazer isso dessa forma?” Vraska lhe pergunta.
Jace acena com a cabeça. “Um sobrevivente como ele nunca entregaria voluntariamente uma vantagem.”
“Loot é mais do que uma vantagem,” Vraska diz. “Prometemos mantê-lo seguro.”
“Prometemos,” diz Jace. “Mas para Winter, isso é tudo o que ele é. Tudo o que ele pode ser.”
Há um silêncio desconfortável entre eles. Ela o conhece muito bem. Há um suspiro. “Desde que você se lembre de por que estamos realmente aqui.”
Ele sorri para ela. “Vamos cuidar de tudo. Eu prometo. Agora, deixe-me dar uma olhada nesse cara.”
Jace volta sua atenção para Winter. As memórias vêm até ele: a bola de fogo, os saqueadores. Em algum ponto, a gaiola se desprendeu do veículo.
Jace murmura. Isso é… menos que ideal. “Acho que precisamos fazer dele um prisioneiro.”
“Por quê?” pergunta Vraska. “Se ele não sabe, qual é o uso dele para nós? Podemos simplesmente deixá-lo ir.”
“Ele é uma ponta solta,” Jace diz. “Se as coisas vão melhorar para todos, não podemos nos dar ao luxo de deixar pontas soltas. Não mais.”
De manhã, Daretti bate com alegria no capô do carro foguete. Ele esfrega as mãos e contempla a criação majestosa e aterradora que eles montaram.
“Não tem nada igual em todo o Multiverso,” ele diz.
Pia sorri. “As folhas de palmeira dão um toque de estilo, não é?”
Chandra já está se balançando para o banco do motorista. Loot corre atrás dela, se acomodando sobre seus ombros enquanto ela procura pela ignição. Não havia uma chave para isso?
“Você tem que ligar do jeito antigo,” Pia diz. Ela ocupa o banco do passageiro, deixando Daretti com mais espaço no banco de trás. “Achei que seria nostálgico. Seu pai e eu costumávamos ligar os carros assim o tempo todo.”
Chandra pisca para sua mãe por um momento. “Do jeito antigo?”
“Fique de lado.”
Um segundo depois, Pia está esfregando dois fios juntos sob o volante. Chandra está prestes a perguntar o que isso vai fazer quando o motor dispara com um rugido. Pia se recosta.
“Do jeito antigo,” ela diz.
O motor começa bem—parece vivo, se não forte. Mas eles não precisam de força. Só precisam conseguir terminar a corrida e voltar para casa.
“Então… precisamos encontrar o caminho de volta para a pista, e depois para o Omenpath. Ketramose disse que se seguirmos por essa direção por uma ou duas horas, devemos encontrá-lo—”
“Ketramose?” diz Pia.
“O deus leão. Ele me deu as direções.”
Loot piou. Tem um mais perto.
Silêncio na cabine do carro. Chandra é quem quebra o silêncio. “Um Omenpath? Você já esteve aqui antes ou algo assim?”
Não. Eu só sei onde eles estão, Loot responde de seu jeito peculiar. Ele abana a cauda para o leste.
Algo se encaixa atrás dos olhos de Chandra. “Espera aí. Foi assim que os Speed Demons conseguiram se adiantar, não foi? Winter usou atalhos. Ele fez você mostrar onde estão os outros Omenpaths, aqueles que ninguém mais sabe.”
Loot apenas acena com a cabeça.
Chandra não consegue evitar sorrir. “Ei, talvez a gente ainda consiga ganhar essa depois de tudo,” ela brinca. Mas então ela dá uma tapinha na cabeça de Loot e coça suas orelhas. “Provavelmente não. Mas com a sua ajuda, vamos fazer uma entrada e tanto.”
Em menos de quinze minutos, ela vai se arrepender dessas palavras.
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