Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

EPISÓDIO 04: SOB OLHOS BEM ABERTOS

K. Arsenault Rivera

Escreveu os arcos de Voto Carmesim e Innistrad: Caçada à Meia Noite

Para bravuras e batalhas nasceu, para bravuras e batalhas Tyvar Kell retornou – com orgulho em seus lábios e notícias impiedosas em seu coração.

Skemfar recebe seu filho rebelde de braços abertos. Depois do clima carregado de ozônio em Nova Phyrexia e do abrigo pantanoso em Dominária, respirar o ar puro da floresta em seus pulmões é uma grande dádiva.

Mas assim que chega, ele descobre que já é tarde demais. Ele não retornou para aplausos de boas-vindas, mas para o barulho das espadas contra o metal, o uivo das flechas voando e os gritos dos trespassados. Ao longe, um ofidiano sanguíneo do tamanho de uma montanha estrangula a Árvore-mundo. Uma armadura branca, espessa como uma geleira, a protege. Casulos caem – as escamas daquela serpente asquerosa – e o chão treme a cada nova entrada, cada uma recebida com os martelos de guerra.

Os tambores de guerra batem no ritmo apressado do seu próprio coração enquanto ele abre caminho para o corpo a corpo. Glória dirige seu corpo. Ele desvia de um membro semelhante a uma foice de um dos inimigos, transforma seu próprio braço em metal, e atravessa a cabeça da coisa. Um instante depois, ele está desviando de um machado enquanto acerta outro. Uma saudação vinda detrás dele alegra seu coração – o fim dos dias chegou a Kaldheim, e os elfos de Skemfar o enfrentam de frente.

Tyvar vê seu irmão lutando ao lado de seu povo, cercado por skalds e estandartes.

“Veio para lutar contra a escória?” Harald questiona. “Haverá bastante.”

“E mais está chegando,” Tyvar diz. Algo que já foi um gigante arremessa uma pedra na direção deles; os outros se dispersam, mas Tyvar firma seus pés no chão. Da terra ele extrai sua força – e com um único golpe estilhaça a rocha. Ele sorri. “Você deve ter sofrido antes de eu voltar.”

Harald balança a cabeça. “Já chega disso. Você sabe de alguma coisa que possa nos ajudar? Quem são essas criaturas?”

“Phyrexianos,” Tyvar responde. Um grito chama sua atenção – um dos elfos estava preso na barriga de um lobo esquelético gigante. Tyvar estremece. “Está vendo ali – eles vão banhá-lo em óleo, e então ele vai ser mais metal do que elfo. Depois disso, as mudanças começam. Não vai demorar muito para ele arrancar a pele do próprio pai.”

Uma dúzia de guerreiros alcança o sabujo, dois de cada lado para flanqueá-lo. Martelos soam contra o aço.

“Eles não vão parar até que tudo em Kaldheim esteja como eles. Eu estive na casa deles, irmão – é sem vida, sem música.” Ele engole em seco. A próxima parte não é fácil de dizer, mas deve ser dita: “Este não é um inimigo que os elfos possam vencer sozinhos.”

O próprio Cosmos reforça o aviso sombrio. O chão ruge e treme sob seus pés, uma luz branca vazando das fendas que se abrem. Tyvar se desequilibra contra seu irmão. Harald o estabiliza, então aponta para a abertura do doomskar. “Parece que não vamos ficar sozinhos por muito tempo.”

Phyrexianos e elfos mergulham na terra faminta. Luzes em movimento os transformam em silhuetas enquanto o Cosmos os reivindica. Insatisfeita, a luz rasteja cada vez mais alto – até que torrentes de água emergem. Tyvar se movimenta, fixando-se no chão, criando uma plataforma para ele e seu povo. Seus músculos se contraem sob a força de sua magia, alternando entre rocha e água, rocha e água.

Quando ele vê o primeiro dos barcos subindo na água, Tyvar percebe que vai ficar naquilo por um tempo. Talvez mais do que ele consegue. Se ele falhar, os elfos certamente serão levados como os phyrexianos. A vida de seu povo está em suas mãos.

Ele não pode falhar.

Tyvar Kell solta um grito de guerra. Enquanto seu corpo luta contra as marés e as rochas, ele se sente vivo.

E enquanto ele faz as coisas simples, seu irmão cuida das coisas mais complicadas. Os pressagiadores a bordo dos navios chamam os elfos encalhados, seu capitão conduzindo: “É o fim de todas as coisas. Os elfos virão e se juntarão à luta?”

“Os elfos vão liderar!” é a resposta orgulhosa de Harald. “Para os navios!”

Os ombros de Tyvar tremem com o esforço e ainda assim ele se apega à terra. Cada par de pés em fuga diminui a plataforma. Cada vez menor, até que apenas ele e Harald permanecem na rocha.

Ele mal consegue acreditar no que vê quando olha para os navios.

Anões e humanos, heróis fantasmagóricos, guerreiros mortos-vivos, bárbaros de Karfell, gigantes do fogo vagando pelos mares, trolls tocando tambores de guerra – todos em Kaldheim se uniram? Tyvar não se lembra de ter visto tantos rostos diferentes em um só lugar fora de um campo de batalha.

Nova Phyrexia plantou as sementes da dúvida e do medo profundamente dentro dele. O óleo e a transformação de seus novos companheiros o alimentaram. Mas isso? Esta verdadeira unificação?

Isso é uma machadada.

Harald sobe no navio primeiro. Ele estende a mão para Tyvar, que, em vez disso, pula no navio por conta própria. Abaixo deles, a plataforma desmorona no novo rio de Skemfar.

“Guerreiros!” Harald grita. Os símbolos e guias ao longo das laterais do navio começam a brilhar. “Nossos rancores são antigos. Uma única batalha não apagará a tábua de velhos erros. Quando o próximo dia chegar, todos seremos inimigos novamente!”

O coração de Tyvar bate no ritmo dos tambores, das trombetas. Os vavios aumentam a velocidade. Quando Harald falava, até seus inimigos mais odiados esperavam para ouvir o que ele tinha a dizer. Ele não sabe para onde estão indo, mas sabe que onde quer que cheguem, a glória os espera.

O clarão os engole. Por um instante, eles entram no Cosmos, deslumbrante e infinito. Bestas sobrenaturais galopam ao lado dos barcos – lobos, corvos, ursos e até um esquilo.

“Mas isso ocorrerá apenas se vivermos para saudar o amanhã, meus irmãos e irmãs de armas. Hoje, as valquírias escolherão seus heróis; hoje é um dia que os skalds cantarão por séculos. Seus descendentes o chamarão de herói, ou de covarde?”

Clarão novamente. Tyvar não fecha os olhos, por mais que a luz queime suas íris.

Quando finalmente a luz recua, eles se encontram acima de um oceano agitado. De alguma forma, eles estão no ar – ele não tem tempo para questionar, apenas deixa que aquilo faça seu sangue vibrar. Valquírias voam ao lado deles em direção às farpas afiadas da Árvore da Invasão, ainda tentando adentrar seu lar. Flechas divinas iluminam o céu avermelhado. A Árvore-mundo paira, seu reflexo imundo descendo, descendo, se aprofundando. De onde está, ele consegue contar cada protuberância da lombada dela, cada cápsula aninhada ali dentro.

Deve haver milhares. Dezenas de milhares, talvez, cada uma com sua própria tripulação de soldados, e cada um desses soldados era um inimigo temível. Este era um inimigo quase imparável: pior, aqueles que morrerem em defesa de Kaldheim se levantariam, corrompidos, para lutar pelos invasores que buscavam destruir a terra que um dia chamaram de lar.

As chances, ele sabe, não são boas.

Arte de Bryan Sola

“Se Kaldheim sobreviver, que sobreviva porque nós lutamos! Se morrer, que morra como um guerreiro, machado na mão, orgulho nos lábios e hidromel na barriga!”

Abaixo deles, a água borbulha. Assim como os barcos irrompem na canção de um guerreiro, os mares também irrompem.

As tatuagens nos ombros de Tyvar formigam. Todos os elfos cresceram na sombra de Koma. Sempre se transformando, sempre crescendo, rápida como um raio e além disso, astuta – existe alguma criatura melhor para imitar do que uma serpente?

Mas essa não é verdade para a serpente que ele vê agora, a criatura que surge das profundezas do mar. Escamas lustrosas de metal, ossos afiados ao longo das arestas de sua boca, placas de porcelana no lugar dos olhos – o que quer que essa criatura tenha sido, agora é inconfundivelmente uma das criações de Elesh Norn.

A monstruosidade sem olhos já quebrou um dracar entre suas mandíbulas. Madeira geme e os guerreiros gritam, caindo de grandes alturas para a morte. Dos outros, uma saraivada de flechas, pedras, machados arremessados — o que quer que eles consigam alcançar.

Tudo ricocheteia na estranha carapaça da criatura.

Tyvar dá um passo para a amurada do barco. Na luz bruxuleante do que pode ser a última guerra de Kaldheim, o fio de sua lâmina brilha.

Abaixo dele, a boca da serpente: dentro dela, Nova Phyrexia, e todos os seus medos manifestados.

Ele não gosta de ter medo.

Com a fervilhante canção de batalha em suas costas e um grito em seu peito, Tyvar pula do navio.

Seja como for que termine a história deste dia, as sagas dirão que ele não era um covarde.

Pia Nalaar passou os últimos dez anos de sua vida lutando por uma Kaladesh melhor.

A maior parte desse trabalho foi desfeita em um dia.

Não – a verdade é que já faz uma semana, pelo menos. Saheeli a avisou que algo assim poderia acontecer, que algo iria acontecer. As nuvens continham a prova, ela disse. No lugar dos redemoinhos que tantas vezes dominavam os céus de Kaladesh, ela mostrou a Pia a nova forma que passou a dominá-los.

“Temos que estar prontos para uma invasão,” Saheeli dissera.

“Chandra e os outros vão resolver isso.”

Ela estava tão confiante. Tão segura. Ela não queria acreditar que seria diferente. Depois de tudo o que aconteceu, depois de todas as lutas e guerras, as Sentinelas deviam saber o que precisava ser feito. Elas devem ser capazes de lidar com isso. Então, certa manhã, Pia derramou tinta na mesa. Quando ela pegou um pano para limpar a bagunça, o símbolo – como um olho escancarado – olhou para ela em um preto viscoso.

A lembrança já era bem ruim, mas depois do primeiro derramamento ela viu o símbolo em todos os lugares que olhou: em pergaminhos enrolados em uma prateleira, em um prato de macarrão que ela não teve estômago para terminar, em árvores e em correntes de água.

Todos os dias ela acordava esperando que eles sumissem, que ela não os visse, que Chandra voltasse para sua casa para o chá mensal com outra história sobre como eles arrancaram a vitória das garras da derrota.

Mas no terceiro dia, ela soube que tinha que agir.

Ela e Saheeli se dirigiram ao consulado — mas como poderiam transmitir a gravidade do que sabiam? Depois que Ghirapur conquistou sua própria liberdade e segurança? Lidar com essa ameaça provocaria medo na população, e como elas poderiam ter certeza do que estava vindo? A Casa do Conhecimento não tinha registros de nenhum phyrexiano. No entanto, Saheeli e Pia não eram loucas delirantes, um fato que o consulado conhecia bem. Se Pia alocasse os recursos para lutar, eles lutariam.

Mesmo que alguns deles não tivessem essa intenção.

No quarto dia, o céu escureceu para um vermelho profundo e meio enferrujado.

Nos últimos três dias, Saheeli trabalhou em algo que ela chamou de “Operação Escamas Douradas”, algo que ela disse que manteria as ruas seguras. A maioria dos cidadãos em Ghirapur foi evacuada, deixando apenas o pessoal essencial para trás. Aeronaus se armaram com poderosos armamentos experimentais. As oficinas e fábricas de Ghirapur nunca trabalharam tanto em tão pouco tempo – mas era por uma causa necessária.

Afinal, se o inimigo violasse o reservatório do fluxo de éter, não haveria mais uma Ghirapur para defender.

Então os artesãos não dormiram, e Pia também não. Ela havia adormecido na entrada de sua própria casa. Ir para a cama era muito esforço.

Quando finalmente os portais acima se abriram, quando os grandes espinhos da invasão desceram dos buracos que eles abriram na realidade, quando o éter ao redor deles começou a crepitar perigosamente contra sua pele – tudo isso foi como deixar escapar um suspiro.

Estava aqui.

Eles estavam aqui.

O tempo de preparação já havia ficado para trás. Tudo o que podiam fazer era esperar que tivesse sido o suficiente.

As ruas de Ghirapur estão limpas – ou tão limpas como nunca mais vão ficar – quando Pia sai de casa. A três prédios de distância, um casulo destrói a fachada de um prédio. Vidros estilhaçados, gritos distantes, armas disparando – os sons são próximos, mas totalmente diferentes dos sons da revolução. Não há cânticos aqui, não há slogans guturais, nem trombetas orgulhosas ou tambores retumbantes.

Só medo e desespero.

Aeronaus disparam seus canhões nos galhos invasores e as explosões pintam o céu vermelho de dourado. Cacos de porcelana chovem sobre as ruas. Ela procura abrigo sob os braços estendidos de uma estátua e observa como os estilhaços perfuram seus lados.

Pia olha de volta para o céu – para a nave que tão prontamente avançou contra o galho explorador. Ela conheceu o capitão dela dois dias atrás. Ele jurou que faria tudo ao seu alcance para manter Ghirapur segura. Mil e quinhentos voos, ele disse, sem grandes perdas para relatar.

Ela assiste o galho envolver a nave, observa suas janelas se estilhaçarem tão facilmente quanto as da rua, vê o óleo manchar sua superfície.

Pia fecha os olhos. Seu peito dói. Milhares de pensamentos lutam para entrar em sua mente, mas ela os afasta. Ela tem um encontro com Saheeli.

Falando nisso, parece que a operação dela começou bem. Câmaras de distribuição brotam de escotilhas ao longo da rua, e dessas câmaras emergem os frutos da Operação Escamas Douradas. Saheeli deve ter se inspirado em algum tipo fantástico de lagarto: aquele que se arrasta na frente de Pia é tão grande quanto a casa que desmoronou momentos atrás. Os dentes brilhantes ao longo de suas mandíbulas são do tamanho do antebraço de Pia. Quando ele bate os pés, as pedras abaixo racham. E é apenas um de muitos – ao longo das ruas outros lagartos de bronze brotam da terra. Alguns são do tamanho de cachorros pequenos, alguns sobem aos céus como tópteros, mas todos rugem em desafio aos phyrexianos que se aproximam.

E há phyrexianos para enfrentar, mesmo que a visão dessas coisas seja quase suficiente para distrair Pia. Da casa quebrada saem dezenas de soldados de porcelana esguios – alguns carregam gaiolas tão grandes quanto eles.

As duas forças estão prestes a se chocar.

Pia não quer ficar no meio disso. Ela se abaixa sob os pés do lagarto de bronze a tempo de um rosto familiar aparecer atrás dos phyrexianos. Uma nuvem de tópteros voa do veículo de Saheeli. Enquanto os lagartos atacam os soldados, os tópteros escondem a fuga de Pia.

“Entre!” Saheeli grita. E ela está certa em ter apressa – os soldados não encaram suas tarefas levianamente. Em poucos minutos, eles cercaram o maior dos lagartos e o derrubaram. Óleo escorre de sua boca aberta. Não demorará muito para que o lagarto se levante contra elas também.

Pia entra no carro. O pé de Saheeli deve ser tão pesado quanto o metal que ela tanto gosta; as duas empurram os bancos para trás quando a velocidade as atinge. O vento assobia nos ouvidos de Pia, mas elas precisam conversar. “A nau capitânia caiu.”

“Eu sei.” Saheeli responde. Uma explosão à direita as faz desviar; Saheeli quase não consegue impedi-las de capotar. “As naves menores estão fazendo o que podem. As gavinhas não conseguem agarrá-los rápido o suficiente para detê-los. Claro, falta poder de fogo quando comparados…”

Pia se abaixa quando Saheeli as coloca entre as pernas de um enorme construto de lagarto phyrexianizado. Metal raspa contra metal; as laterais do carro amassam e distorcem, apesar dos melhores esforços de Saheeli. Óleo pinga na tampa do porta-malas. Pia tenta não se perguntar quanto tempo levará até que o veículo também seja corrompido.

“Você sabe qual é a situação no reservatório do fluxo de éter?” Pia pergunta.

“Achamos que os phyrexianos conseguem entender a importância dele, ou então sentir uma atração pelo éter armazenado lá,” Saheeli responde. “Se você prestar atenção, estão todos indo direto para lá.”

Arte de Leon Tukker

Eles dobram uma esquina e Pia vê os guardas.

Seu estômago embrulha com o que ela vê. Como uma paródia sinistra da estética do design de Saheeli, eles são filigranados em porcelana branca, meio metal e meio carne. Um dos homens ostenta um grande buraco no centro da cabeça, através do qual Pia pode enxergar claramente do outro lado. Apenas suas orelhas, couro cabeludo e queixo permaneceram. Parece que ele é uma agulha destinada a ser enfiada – e as navalhas que seus braços se tornaram apenas confirmam a ideia. Apesar dessa alteração hedionda, seu peito sobe e desce com uma respiração invisível. Sua cabeça, do jeito que ficou, está virada para o reservatório.

Pia cobre a boca.

“Não podemos fazer nada para salvá-los,” Saheeli diz.

“Tem que haver alguma coisa.”

“Pode até haver, mas seja o que for exigirá estudo, experimentação, iteração. Assim que a cidade estiver segura, podemos considerar quais formas aquilo pode assumir – mas não agora.”

Pia fecha os olhos enquanto o carro dispara sobre os phyrexianos recém-convertidos. Haverá mais deles para ver quando ela abrir os olhos novamente. Ela havia os ignorado antes? Há tantos, em tantas formas diferentes: alguns compartilham o mesmo padrão de revestimento de porcelana que os tentáculos acima, alguns tiveram seus órgãos substituídos por uma chama alaranjada brilhante. Ela vê um cachorro de rua com espinhos e tentáculos com o dobro do seu tamanho. Seria cômico se o Plano não estivesse desmoronando ao seu redor.

“Você teve notícias dos outros?” ela pergunta, incapaz de se conter.

Os olhos de Saheeli não saem do reservatório ainda muito à frente. “Tive. A última vez que eles viram Chandra, ela estava bem.”

Pia esteve perto de políticos há tempo suficiente para saber quando não está ouvindo a história inteira. “E quando foi isso?”

“Recentemente, bem recentemente,” Saheeli responde. Ela olha por cima do ombro. “Este talvez não seja o melhor momento.”

“Não há um bom momento quando se trata de más notícias.”

“Há momentos melhores do que este.”

Pia franze a testa. “Por favor, apenas me diga o que está acontecendo.”

Saheeli olha em volta. “Ela está-”

“Líder dos Renegados! Há quanto tempo!”

Pia se vira. Junto com a voz alegre vem o ronco de um motor. Pendurado na lateral de um deslizador acima deles está um de seus antigos contatos renegados, Baji. “Precisa de ajuda aí embaixo?”

“Vamos precisar de toda a ajuda que conseguirmos,” ela diz. “Estamos indo para o reservatório.”

“Entre, então!” diz o piloto. “Você chegará lá mais rápido nisto. E também temos um melhor poder de fogo.”

Saheeli olha para cima. “Ele não está brincando. Aquelas armas não são permitidas por lei.”

Os renegados sempre foram bons em conseguir contrabando. Pia está no banco do passageiro do carro, uma mão no banco e a outra na porta. Saheeli não diminui a velocidade – nem mesmo quando Pia lhe estende a mão.

“Só há espaço para mais um naquele deslizador,” Saheeli diz.

Quando um dos gênios de Kaladesh diz a você o que ela quer fazer, cabe a você ouvir. Além disso, quando se trata de revoluções e crises, você deve ser capaz de improvisar. “Certo,” Pia diz. “Nós cobriremos você.”

Quando Baji abaixa, ele estende a mão para Pia. O deslizador não é a coisa mais sólida do mundo, nem de longe. Agora que estão nele, ela se pergunta como aquilo está voando – porcas e parafusos chacoalham ao redor deles, e o assento é pouco mais que uma tira de couro em metal duro e moldado às pressas. O banco de trás é tão estreito que as laterais encostam em seus ombros.

Baji inclina a nave para cima, subindo mais alto, Ghirapur desaparecendo sob as nuvens enquanto eles sobem no céu. Ele aciona um botão em seu console e uma cúpula de vidro desliza sobre a cabine aberta. “O capacete está embaixo do seu assento,” Baji diz. Pia coloca o capacete. Ela não pode deixar de notar as lascas e fragmentos no vidro da cabine. “Essa coisa é segura?” ela pergunta.

“Vai aguentar,” Baji dise. “Eu mesmo que montei. Usei a melhor sucata, direto de…”

O que quer que ele quisesse dizer se perde em um gorgolejo quando um dardo perfura a janela e o empala no peito até seu assento, a ponta encharcada de sangue parando a apenas um fio de cabelo de Pia. Voando pelo ar acima deles está algo que um dia poderia ter sido um pássaro. Agora ele luta por Phyrexia. Então ela percebe – não era um dardo, é uma pena. Os alarmes soam, abafados pelo ar gritando pelo buraco na cabine da nave. Lentamente, ela começa a virar para o lado e, em seguida, torcer primeiro a ponta, caindo em direção ao solo. O estômago de Pia revira com a mudança de direção, a repugnante falta de peso. Sem pensar, ela se espreme no assento do piloto, soltando a pena do couro. O corpo de Baji a deixou meio presa. Não há espaço para navegar, o console é uma miscelânea incompreensível de peças soldadas, há dois pássaros phyrexianos em seus flancos e mais navios ao redor.

Isso não é nada bom.

E isso antes de considerar que Pia Nalaar nunca voou em uma dessas coisas antes.

Mas ela não está perto de desistir. Não quando se trata de manter Kaladesh segura, e nem quando se trata de sua filha.

Chandra virá para o chá no mês que vem.

Pia estará lá para encontrá-la.

Se ela conseguir sair disso.

No segundo em que Atraxa chegou, Nova Capenna deslizou suas unhas por sua carapaça imaculada. Uma cidade construída sempre para cima, a atmosfera crepitando com uma energia nojenta, rastejando com uma horrível diversidade de vida. Tudo isso era um anátema para ela – para Phyrexia.

Que sorte que suas ordens eram para purificá-la.

Mas Phyrexia não é uma fera que come por instinto. Em tudo existe a semente da grandeza, não importa quão básico seja o material. Ser phyrexiano é se permitir crescer, mudar, se tornar algo maior do que você já foi. A torre que tanto a incomoda pode ser despojada de seus apetrechos e restaurada.

Este é um lugar repleto de pecado e sujeira, e Atraxa será sua salvadora.

A missão por si só é suficiente para enchê-la de êxtase. Ao longo dos telhados, os orgânicos pegam em armas. Suas armas não servirão aqui: não há aberturas na armadura de Phyrexia. Nem subir mais alto os salvará. Um único pensamento de Atraxa convoca enxames de servos voadores. Por mais minúsculos que sejam, são animais famintos – logo, aqueles que escalavam não são nada mais do que ossos caindo na terra. Aqueles que vão para as ruas, por sua vez, contam com seus músculos e tendões para revidar. Eles ignoram as fraquezas da carne. As máquinas de guerra atravessam vitrines após vitrines para cumprir sua vontade. Ao chegarem à rua, soltam nuvens de gás cáustico. A carne derrete nos ossos.

Ceifem. Um pensamento glorioso, ecoado em mil mentes. Eles não farão prisioneiros aqui em Nova Capenna; não há gaiolas para os filhotes. O que as máquinas não conseguem derreter com seus gases é colocado de volta dentro deles por servos. Apenas essas partes permanecerão.

Ceifem. Todos eles. Quão alto as palavras ressoam em sua mente! Os orgânicos tentam enganar os phyrexianos, desaparecendo na escuridão e reaparecendo atrás deles, mas não adianta. Nada vai impedir o que está por vir. Nem os feitiços lançados em desespero, nem as lâminas enfiadas entre as costelas dos centuriões. Phyrexia nunca pode ser derrotada.

Mas carne… a carne sempre cede, no final.

As ordens de Norn eram claras: tudo o que respira miseravelmente neste plano deve ser ceifado em busca de componentes – e assim será. Mas Atraxa vê uma utilidade para eles antes de separá-los.

Afinal, em algum lugar dessa monstruosidade de Plano estão os restos mortais de seus predecessores. Encontrá-los faz parte de sua missão aqui.

As mentes dos recém-chegados se abrem prontamente para ela. Maestros, eles se autodenominam. A emoção de seus novos corpos ondula por toda a força invasora, dando-lhes força contra aqueles que resistem tolamente. No entanto, esta não é a resposta que ela procura, não é a resposta que Phyrexia precisa. Mais profundamente em suas mentes, ela se aventura.

Dentro deles, Atraxa encontra algo curioso.

Belo.

Arte de Chris Seaman

Mais e mais vezes, aquela palavra. Aquela ideia. Nunca vinha sozinha – sempre com imagens, sons ou sabores. Pintada em tela. Moldada em pedra por uma mão estudiosa. Flores desabrochando à noite. Um rangido agudo de um instrumento de madeira. Essas coisas, ela supõe, devem ser belas, e o que é belo devia ser importante. Frequentemente, é o primeiro pensamento que eles têm quando olham para suas novas formas, a primeira palavra que surge em suas mentes.

Mas o que é isso? Por que eles estão tão preocupados com isso? A força de suas convicções se espalhou pelas forças invasoras, cada mente amplificando a anterior. A palavra soa dentro do crânio de Atraxa até que ela não consegue mais ignorar.

Norn a avisou sobre isso. Ela disse que havia algo neste lugar que tentaria infectá-la, algo contra a qual sua vida anterior poderia oferecer resistência. Há memórias distantes em sua mente sobre o belo, de uma pálida imitação da completação com a qual ela se deleitou. Este é o rosto e o nome de seu inimigo – e aqueles que passaram tanto tempo adorando essa falsa divindade devem saber onde ela mora.

Ao pesquisar suas mentes, elas fornecem outra resposta: museu.

As imagens que aparecem são suficientemente claras. Examinando a cidade, ela o vê não muito longe de uma das cápsulas de conversão: um edifício atarracado enfeitado com mármore moldado de um lado até o outro. Ela olha para ele e se pergunta se ele é belo. Aqueles que já foram Maestros dizem a ela que sim. As colunas, as estátuas, a hera cuidadosamente cuidada rastejando em sua fachada: como ela poderia pensar que era outra coisa senão belo?

O furor da paixão deles a impulsiona. O que quer que eles estejam escondendo, ela deve ser capaz de ter uma ideia melhor disso lá. Enquanto Phyrexia atravessa a resistência, Atraxa pousa nos degraus do lado de fora do prédio. As portas são pequenas demais para ela; com um toque, ela corrige suas falhas já aparentes. Este lugar também deve abraçar Phyrexia.

Dentro há mais obras incompreensíveis. Seres carnais olham atrás de telas ou painéis de madeira – uma prova da fragilidade dos materiais naturais. Tão grande é a arrogância dessas criaturas que moldaram pedra e metal à sua imagem. A miserável inversão irrita Atraxa. Tudo aquilo a irrita. Por que alguém se incomodaria com isso? Essas “pinturas” muitas vezes retratavam apenas um único indivíduo; mesmo aqueles com grupos não retratavam mais de uma dúzia. Por que exaltar as virtudes de tão poucos quando é por muitas mãos que grandes obras são feitas? E essas estátuas! Ainda mais individuais do que as pinturas!

Sua lança faz um trabalho rápido nelas. Os recém-formado gritam nos recantos da mente phyrexiana, mas apenas por um instante; aquela parte deles está morrendo e entende que isso é o melhor. Todos serão um. Essas obras não importam mais.

E, no entanto, algo no fundo dessa mesma mente lhe diz que ela deve continuar. Há algo aqui. No mínimo, ela pode cuidar de destruir a heresia ao seu redor.

No fundo, há mais atrocidades. Ainda pior, se é que era possível. Aqui as obras não representam mais nada: são réplicas nítidas e geométricas de criaturas orgânicas. Sem armas e nem defesas; ela não consegue imaginar nenhum propósito para eles. Estas, também, ela derruba, sua frustração aumentando.

É a última sala que responde às suas perguntas.

Aqui não há objetos estranhos, aqui não há tinta, nenhum mortal anunciando em voz alta seu próprio eu individual. Em vez disso, as formas que ela vê são pálidas imitações de glória. Um machado torto na parede, uma falsa carapaça de cão de guerra em um pedestal, imagens que ocultam a glória da completação… Norn disse a ela que phyrexianos já estiveram aqui, mas isso fala sobre a crueldade que os orgânicos pensam deles.

Belo, aquela palavra novamente em sua mente, aquela palavra horrível, mas não há nada de belo nisso. Essas pessoas adoram o fracasso? Eles olham para os corpos daqueles que vieram antes e se maravilham com eles? As memórias dos Maestros são um aríete: grupos reunidos em torno desses restos, bebendo, comendo e tagarelando com seus lábios úmidos e línguas brilhantes.

Você consegue se imaginar sendo o cara balançando essa coisa?”

Vou te falar uma coisa, eu gostaria de poder contratá-lo para me seguir e ficar parado assim, parecendo intimidador.”

Diga, quanto você acha que vale…? Estou pensando em comprá-la para mim.”

Ah, fala sério, você não consegue pagar por isso.”

O aperto em sua lança aumenta. Errado, errado, errado. Este lugar, os phyrexianos que eram muito fracos para cumprir sua missão, os carnais que zombavam deles. Belo, essa palavra terrível que eles usam para isso, não pode significar outra coisa senão erro.

Atraxa vai derrubá-lo. Tudo isso, tudo que leva aquele nome, deve ser destruído. Permitir que ela exista apenas convida a mais zombaria – e Phyrexia não deve ser ridicularizada.

Enquanto a phyresis rasteja sobre a fachada do prédio, ela destrói tudo dentro dela. A que propósito servirá não cabe a ela decidir. O que é útil deles vai perdurar e o que não é será eliminado. Cauda, garra, lança e grito: suas armas são infalíveis e incansáveis. Sucata e entulho é tudo o que resta quando ela termina. Os habitantes que ela encontrou estão soterrados pelas rochas. Em seus últimos momentos, eles deveriam imaginar que eram belos.

Mas ela nunca queria ouvir a palavra novamente. Se ela pudesse esvaziá-la da mente de Phyrexia, ela o faria, mas isso é algo que apenas a Mãe das Máquinas pode decretar.

Ainda assim, Elesh Norn a nomeou para liderar essas forças, o que significa que ela pode limpar a beleza aqui, se quiser. Atraxa só precisa pensar na ordem para que ela saia. Para sua satisfação, ao sair do museu, ela ouve armas batendo nas pedras ao redor.

A satisfação não dura muito.

Do outro lado do pátio há anjos olhando para ela — anjos com rostos de pedra.

Não é uma coisa consciente que acontece em sequência – não é um pensamento que ela tem, mas um instinto. Imediatamente ela percebe que os serafins de pedra da catedral são realmente belos e que ela os odeia mais do que jamais odiou qualquer coisa, mais do que ela sabia que era possível odiar. O coro das mentes desaparece com a nota retumbante de raiva martelando por todo o seu ser. Em um clarão branco, ela golpeia as cabeças das estátuas. Quando eles desmoronam no chão, ela não para de atacá-las, mas continua atacando com sua lança, repetidamente, sem se importar com a energia nebulosa que emerge da rocha. Embora queime sua carapaça e seus tendões estejam ardendo de agonia, ela não consegue parar até que nada reste das cabeças exceto um pó fino.

Só então ela para. Só então ela ouve Phyrexia novamente.

Há carnais escalando a torre. O que deve ser feito com eles?

Uma voz fala, depois outra: ceifem, ceifem.

Mas esse vapor nos machuca, e nós sofremos.

Phyrexia não sofre. Ceifem.

Atraxa olha para as figuras sem cabeça. Uma calma profunda toma conta dela. O belo está morto e ela pode voltar suas atenções mais uma vez para a frente – para os seres do lado de fora da torre e o que eles podem estar planejando.

Ela sai da plataforma.

Mas os serafins permanecem, observando-a partir, com o visitante pairando entre eles em uma névoa colorida.

Eles também falam entre si.

Por que não impedi-la? questiona o visitante.

Ainda não é o momento.

Não parece ser a resposta certa – mas o visitante não pode refutá-la.

Tenha fé. O fim está próximo. Você saberá o que fazer quando chegarmos lá.

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