Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

EPISÓDIO 03: UMA MÃE, UM FILHO, E UMA HISTÓRIA

K. Arsenault Rivera

Escreveu os arcos de Voto Carmesim e Innistrad: Caçada à Meia Noite

Há uma história.

Muitas eras atrás havia um grande mago chamado Urza. Ele era tão sábio que todos os magos do Multiverso o procuravam em busca de conselhos; ele era tão poderoso que apenas seu irmão Mishra era um rival em potencial. Mas Mishra o odiava amargamente, e logo uma guerra começou.

A guerra durou décadas e tirou incontáveis vidas. Pior ainda, permitiu que o mal sem comparação florescesse. Uma terrível aflição se espalhou pelos exércitos de Mishra – um óleo negro que mudou tudo em seu caminho.

Tamiyo conhece essa história. É assim que ela começa; mas há mais, muito mais. Anos atrás, ela memorizou cada palavra. Posteriormente, assim como o herdeiro metálico de Urza se propôs a criar um plano, ela se propôs a tarefa de escrevê-la. Como o óleo, ela descobriu que a história se infiltrara em sua mente, começando a transformá-la em algo que não gostava. Algo perigoso.

Ela o selou.

Que coisa tola de se fazer.

Pairando sobre os céus neon de Towashi, ela segura o pergaminho na mão. Óleo escorre de seus dedos para o pergaminho. Em pouco tempo será impossível ler qualquer um dos caracteres – mas isso não é problema para alguém como ela, alguém que conhece essas histórias mais do que a si mesma.

Um centurião phyrexiano bate no telhado de um prédio. As pessoas se espalham como formigas. Não, não como formigas, cujas carapaças lhes dão força, que agem como uma unidade em tudo. Pessoas nunca poderiam ser tão confiáveis quando aprisionadas pela carne e pelo medo mortal. Não, enquanto eles saem do prédio gritando, é apenas o visceral que os impulsiona, o corpóreo – as partes mais falsas de sua existência.

Há um anel de ferro prendendo o pergaminho. Tamiyo o retira. Ele despenca no ar, caindo como tantos outros pedaços de metal na cabeça de algum desavisado.

A história continua.

O mago Urza cria um herdeiro de metal puro e simples. Ele o chama de Karn. A mesma faísca da criação que o gerou arde intensamente em seu peito. Karn também precisa criar. Como um escultor lascando mármore, ele molda seu mundo. Quando está concluído – criaturas nomeadas e vantagens concedidas, clima cuidadosamente elaborado, terra moldada e polida – ele nomeia seu próprio sucessor, Memnarca, para supervisioná-lo.

Os espíritos de Towashi não aceitam bem a intromissão dela, nem de seus companheiros. Galhos se desdobram, vapor queima os tendões, folhas cortam como navalhas. Outras histórias servem para protegê-la. Histórias menores. Histórias sem propósito, histórias que não exaltam as glórias e virtudes que ela agora vê com tanta clareza. Toda história, todo conto, toda fábula que existe é a favor da unidade ou contra ela.

Ela pode largar aquelas histórias que não importam mais. Esta importa; ela deve conduzi-la à sua conclusão.

Arte de Artur Nakhodkin

Enquanto seus olhos examinam o pergaminho, os caracteres se iluminam – mesmo aqueles agora consumidos pelo óleo preto. Cada sílaba que ela lê ressoa e reverbera, sacudindo os arranha-céus de Towashi. Trens saem de seus trilhos em ruínas e mergulham no chão. A terra se rasga, abrindo fendas na cidade que só tem espaço para si. Rios são inundados, levando barcos e pescadores com eles. Manchas pretas colorem a água. Símbolos phyrexianos se gravam nos anúncios pendurados nos prédios ainda em pé.

Não vai demorar muito agora. A história continua.

Memnarca, o herdeiro do herdeiro, é a cópia de uma cópia – uma imagem desbotada do próprio Urza. Ele anseia pelo poder que seu avô exercia tão facilmente quanto um poeta segura uma pena. Anseia pela capacidade de criação de seus pais. Anseia por ver mais. Ao longo dos anos, ele retira a vida daquele Plano e assim, acomodando-as todas neste jardim, espera que as flores cheguem. E elas chegam, mas não são as flores que Memnarca espera: elas florescem em óleo negro. Suas raízes sufocantes envolvem aquilo que é vivo e inteiro. Logo, todo o jardim se afoga sob o óleo. O herdeiro retorna para descobrir que sua casa foi destruída.

Há mais história ainda. Há pessoas sendo expulsas de suas casas e pisoteadas, suas almas arrancadas de seus corpos, seus corpos alterados além de qualquer reconhecimento. Uma rainha surgindo da lama para governar seu povo. Uma unidade gloriosa e sem fim – uma vida sem guerra ou conflito. O herdeiro olha para tudo isso com horror.

Quando Tamiyo escreveu a história, ela temia tudo isso. Ela não entendia a paz que vinha de fazer parte de uma grande família. Não é assim que ela contaria essa história agora. Mas está quase pronta, e ela continuará contando.

Boseiju, a árvore que antes mantinha este plano unido, se despedaça. Como o vinho derramado de um barril, o óleo escorre por entre as lascas, pingando na terra sedenta. Um guincho profano perfura os ouvidos de todos que quiserem ouvir: kami, arrancados de sua casa, espalhados para longe do distrito. Alguns encontram seus destinos na ponta de uma lança, outros são encontrados dilacerados por pescadores completados unidos com suas capturas, mas o resultado é sempre o mesmo: os kami se dissolvem em uma névoa fina. Gavinhas de fumaça sobem do solo enegrecido, das pontes se dissolvendo em nada, até que todo o distrito é engolido pela névoa dos kami mortos.

Há uma parte distante dentro dela que grita ao ver tudo aquilo. Uma pequena voz ecoando em seu ouvido, um formigamento na ponta dos dedos. Mas ela não pode dizer que está com medo. Isso é o certo para Kamigawa. Após séculos de guerra, eles não conquistaram a paz? Isso não é simplesmente mais um passo para a unificação?

O próprio pergaminho se torna óleo nas mãos de Tamiyo, pingando entre seus dedos.

É assim que a história termina, e sempre terminou: com a vitória de Phyrexia.

Uma ferida se transforma em uma cicatriz quando você cutuca demais. Uma cicatriz adoece quando não recebe os devidos cuidados.

Kamigawa está sangrando. Ravnica também. Mas Ravnica tem muitos planinautas para mantê-la segura. Essa é a tarefa de Teyo, para começar – e Ral está pensando em medidas defensivas há um bom tempo. Disse que tinha um palpite de que algo grande estava por vir. Eles podem lidar com as coisas lá por enquanto, no mínimo.

Kaya e Vraska deveriam segurar Ravnica enquanto Jace coordenava com os outros Planos. Isso não iria acontecer mais.

Eles sobreviveriam sem eles. Kaito pediu ajuda para estancar o sangramento em Kamigawa, e depois do que passaram, ajudar é o mínimo que ela poderia fazer.

Mesmo que ela tivesse seus próprios ferimentos para se preocupar.

Kaya não tinha certeza de quanto tempo o dela duraria. Esse é o tipo de memória que muda quem você é na vida após a morte? Se assim for, ela está irremediavelmente perdida. Ver Nova Phyrexia já foi ruim o suficiente. Mas estar no meio de uma invasão – assistir Nova Phyrexia rasgar um Plano membro por membro? A única maneira de não traumatizar é deixar-se entorpecer com as visões.

Há muita coisa acontecendo para salvar todo mundo: o chão treme com as pisadas dos centuriões. Cães de caça rosnadores vagam pelas ruas, alguns com pessoas presas dentro de suas caixas torácicas. Séculos de história evaporam em um instante – centenas de futuros potenciais são eliminados de uma só vez.

Não há tempo para pensar sobre isso, não há tempo para amargar sobre como tudo isso aconteceu ou por que é ela quem deve reunir as Sentinelas, não há tempo para se perguntar o que pode dar errado. Pessoas estão caindo. Também não há tempo para se reconciliar com a forma como seu estômago se contorce depois de um transplanar – há apenas movimento, apenas ação.

Ela deve agir.

Kaya corre. Um salto a leva para uma varanda que está se rachando; outro a coloca num piso cambaleante logo à frente. O horror se instala um segundo depois: as plantas da casa, as roupas espalhadas e a cozinha destruída dão fôlego aos seus piores medos. Este era um edifício residencial. Com sorte, a maioria dos habitantes escapou. Uma tigela de macarrão pela metade diz que as pessoas nesta unidade conseguiram. Mas há outros, não é?

Um grito atinge seus ouvidos, abafado pelo caos em curso. Kaya atravessa a parede cheia de quinquilharias e lembranças, tentando não pensar em como todas essas coisas se perderão depois de hoje. Um menino e seu cachorro tremem no canto do outro lado. Vigas caídas prenderam os dois. Há espaço suficiente para o cachorro se espremer, mas o menino teria muito mais dificuldade.

Kaya não pode deixá-los aqui. Ela não tem uma rota de fuga, não sabe exatamente como eles vão sair, mas ela pode descobrir ao longo do caminho. Não deve ser mais difícil do que descobrir o que fazer com essa invasão.

Passar pelas vigas caídas é bastante fácil. Normalmente, tirar o menino de sua posição seria difícil, mas é mais fácil quando ele quer sair tanto quanto ela quer ajudá-lo. Ela lhe oferece uma mão. Quando ele pega, ela o puxa pela viga caída. O menino sorri – e o cachorro se espreme atrás deles.

“Como vamos descer?” ele pergunta.

Uma pergunta adequada, dada a visão à sua frente: toda a lateral do prédio foi arrancada. Towashi – ou o que restava dela – estava pairando. Pisos e móveis caindo no chão enquanto fumaça subia da terra, uma fumaça acre e oleosa que Kaya não queria pensar muito de perto. As ruas estavam lotadas com aqueles que lutavam contra a invasão e com os que a promoviam. Óleo negro escorria das bocas e olhos dos atacantes e símbolos phyrexianos imundos brilhavam em todas as superfícies. Pior – a cada poucos minutos, um barulho estrondoso sacudia o Plano novamente, anunciando o ataque dos galhos esqueléticos e brilhantes de Norn.

Arte de Titus Lunter

Se Kaya fosse uma criança assistindo tudo isso, ela faria a mesma pergunta.

Mas ela é uma adulta agora. Seu trabalho é encontrar respostas onde não havia nenhuma.

“Vamos pular de um lugar para o outro,” ela diz. O menino enfia o cachorro dentro da camisa. “Você é bom em pular?”

“O melhor,” diz o menino.

Ela espera que sim. Ela pega a mão dele, os dois se aproximam da beirada do andar restante. Mais à frente, há os restos de uma sacada – se eles conseguirem chegar lá, talvez possam deslizar por uma tubulação para um lugar seguro.

“No três,” ela diz. Ele concorda.

Um, dois…

Três!

Os dois pulam ao mesmo tempo, Kaya segurando a mão do menino. Mas, quando deveriam pousar, a sacada cai.

Kaya, o menino e o cachorro despencam.

Você tem muitos pensamentos quando pensa que vai morrer. Menos quando você é responsável por salvar outra pessoa. Kaya pensa rápido. Ela pode salvar o menino se conseguir desacelerar a queda. Essa deve ser a prioridade. Quando ele começa a gritar, ela o agarra contra o peito.

Ela fecha os olhos.

O impacto não acontece.

Uma força invisível os empurra de volta, retardando a queda. Segundos antes de atingirem o solo, eles flutuam acima dele. O que quer que estivesse prendendo-os não poderia segurar por muito mais tempo; os dois estão tremendo. Um phyrexiano?

“Tente ser menos imprudente da próxima vez.”

Kaito.

Kaya abre os olhos para vê-lo. Sua telecinésia mal consegue os segurar; gotas de suor na testa dele. Lidar com um objeto de tamanho humano, ainda mais três, deve ter levado seus poderes ao limite. Sangue, óleo e sujeira estão espalhados por sua armadura lisa. Ele acena com a cabeça.

O menino age primeiro, pulando no chão. Uma mulher perto grita por ele – ele corre sem olhar para trás. Um latido de sua camisa diz a ela que o cachorro está bem também.

Kaya se levanta. Ela aperta a ponta do nariz com o polegar. “Obrigada,” ela diz. “Estaria perdida sem você.”

Ele deixa aquela declaração sem correção, o que ela supõe ser justo.

“Temos que agir rápido. O distrito de Boseiju é o alvo principal. A coisa toda, a árvore…”.

Kaito divaga, mas Kaya tem as próprias respostas. A árvore sobre Towashi está dilacerada. Uma cachoeira de podridão jorra de seu tronco.

“Isso é… isso é horrível,” Kaya diz.

“É,” Kaito acena com a cabeça. “E pior, Tamiyo fez isso. Abriu um pergaminho. Você consegue vê-la.” Kaito aponta para Tamiyo, flutuando bem acima da cidade, perto dos galhos de Boseiju. “Ela ainda está lendo dele. Se ninguém a derrubar, isso só vai piorar.”

Infernos – eles estão falando sobre derrubar amigos agora. Não que Kaya fosse estranha a assassinatos, mas há algo diferente nisso. Tamiyo ainda mais. “Nós dois temos habilidades para isso. Devo ir, ou você quer lidar com ela?”

“É pessoal,” diz Kaito com um aceno de cabeça. “Os kami vão querer lutar contra isso tanto quanto nós – aqueles que podem lutar. Veja se você consegue convencê-los a vir.”

“Falando em ajuda, onde está a Errante?”

Kaya não quis dizer isso como um soco, mas Kaito pareceu entender como um. O canto de seu lábio se contrai.

“Ela está chegando,” Kaito diz.

“Você quer dizer que ela não está aqui?”

“Ela estará aqui,” ele diz. “Apenas tenha um pouco de fé.”

Ao redor deles, Kamigawa está desmoronando. Ele diz para ter fé. É como uma piada de mau gosto, não é?

Ou uma ferida que eles continuam cutucando.

Tamiyo flutuava acima deles. Ou algo que um dia foi Tamiyo. Ela não os olha de cima, nem parece se mover, não parece se importar com o que está fazendo. Nada poderia estar mais longe da mulher que Kaito conheceu em Otawara.

Ele avalia a casca oleosa da árvore. Não importa o que ele pensou de Tamiwo antes, isso é muito mais do que apenas ele. Kaito põe o pé contra a casca. Ele sobe cerca de três degraus antes que alguém o chame.

“V-você vai até lá para lutar contra ela?”

A voz é pequena e tímida. E por mais que ele queira ignorá-la, ele sabe que não pode. Além disso, se havia uma criança por aí, ela precisa fugir e rápido. “Vou. Você deveria sair daqui.”

“Não posso,” diz a voz. Quando ele olha para baixo, ele avista o garoto: um pequeno nezumi em uma armadura de metal multicolor e um capacete feito em casa, que escondia seu rosto. Ele deveria ter remendado tudo com sucata. Espere um pouco…

“Aquela lá em cima é a minha mãe.”

“Nashi?” ele pergunta.

Com certeza, ele acena com a cabeça.

Kaito desce da árvore. “Você não quer estar aqui,” ele diz. “As coisas vão ficar feias.”

“Mas você não vai machucá-la, vai?” Nashi pergunta, agitando as mãos. “Ela parece diferente, mas ainda é ela. Acho que ela se esqueceu de si mesma – pensei, talvez se eu falasse com ela…”

Kaito passa a mão pelo cabelo. “Eu não acho que seja tão simples.”

“Você tem que me deixar tentar,” Nashi responde. Ele se levanta em toda a sua altura – o que não é muito. “Eu vim até aqui para ajudar quando soube que as coisas estavam ficando ruins. Mamãe disse que é isso que os heróis fazem. Se você puder me levar para algum lugar onde ela possa me ver, então tenho certeza que ela vai ouvir. Não importa quem ela é, ela sempre vai me amar. Ela prometeu.”

O peito de Kaito fica apertado. Ele não quer fazer isso. Mas e se fosse Eiko lá em cima? Kaito não quer pensar nessa possibilidade, mas sabe que faria qualquer coisa para recuperá-la. Mesmo que recuperá-la não parecesse uma opção. Tamiyo acabou assim por causa dele. O mínimo que ele pode fazer é tentar este plano.

“Tudo bem,” Kaito diz. “Você é bom de escalada?”

“Mais ou menos,” Nashi diz. “Não é bom o suficiente com toda essa… coisa na árvore. Não parece que eu devo tocar nela.”

“Não deve mesmo,” Kaito diz. Ele tira um repulsor do cinto. Nashi não deve pesar muito, certo? Kaito o prende no cinto de Nashi e o liga. Um zumbido suave irradia quando ele começa a flutuar. “Caminhe na direção que você quer ir. É um pouco lento, mas você será capaz de acompanhar. Se você apertar o botão mais uma vez, ele te protegerá. Não aperte depois disso, a menos que você queira cair.”

Nashi assente.

Kaito engole seco, afastando a sensação de pavor. Se o pior acontecesse, ele diria a Nashi para ir embora. Mas talvez ele esteja certo, talvez haja uma maneira de superar tudo aquilo. Coisas estranhas aconteceram. Eles precisavam tentar.

Boseiju não era fácil de escalar. Entre as torrentes de óleo que choviam acima deles e o caos logo atrás, não havia muita facilidade no caminho. Normalmente haveria galhos mais baixos no chão sobre os quais alguns dos kami moravam – mas todos eles se separaram. O primeiro galho que lhes serviriam era muito mais alto e apenas mais ou menos estável. O ar estava frio e rarefeito quando eles finalmente pousaram sobre ele; se não fosse por seu treinamento, Kaito estaria tonto.

Nashi não tem tanta sorte. Quando suas patas encontram a casca, ele balança de um lado para o outro, segurando o estômago. Kaito coloca a mão em seu ombro. Ele aponta para frente, para onde Tamiyo ainda flutua. “Espere um segundo se precisar, mas ela está lá. Ela também não nos notou.”

Nashi respira fundo duas vezes. Kaito respira junto com ele; às vezes ajudava ter companhia quando se tratava desse tipo de coisa.

“Certo. Estou pronto,” Nashi diz.

Kaito espera que sim. Para o caso de as coisas darem errado, ele desembainhar a espada. “Eu te dou cobertura.”

A passos instáveis, Nashi caminha até o final do galho. Kaito segue um ou dois passos atrás. Seu coração martela em seus ouvidos. Tinha que ter sobrado algo em Tamiyo. Alguma coisa nela se lembraria, certo?

“Mãe?”

A cabeça de Tamiyo dá uma volta ao redor de seu pescoço. Os olhos que os contemplam não são os olhos gentis e inquisitivos que Kaito conheceu. São algo completamente diferentes – com contornos pretos, as lágrimas em suas bochechas eram uma prova do que ela se tornou.

Tamiyo não diz nada. Ao redor dela, os pergaminhos giram; a luz atinge as bordas afiadas de suas garras.

“Sou eu, Nashi. Você se lembra de mim, certo?” ele pergunta. “E-eu não acho que você queira fazer nada disso. Eu acho que você cometeu um erro. Mas eu sei que alguém está te obrigando. Eu só quero que você se lembre. Como nas histórias sobre príncipes perdidos.” Nashi treme tanto que é difícil para ele falar.

“Nashi,” diz Tamiyo. “O que você está fazendo aqui…?”

Kaito estende a mão para equilibrar o pequeno nezumi.

E é então que o resto do corpo de Tamiyo se vira para se alinhar com sua cabeça, então seu rosto se transforma em uma expressão carrancuda. Um fragmento de metal dispara na direção deles, arremessado da órbita de pergaminhos flutuando ao redor de Tamiyo. São apenas os instintos aguçados de Kaito que os salvam: ele desvia os fragmentos com telecinésia da mesma forma que desviara de todas as pedras que seus instrutores atiraram nele. O barulho de metal ressoa em seus ouvidos.

“Eu não quero nada além de você se juntar a mim, Nashi,” diz Tamiyo. Sua voz soa estranha para Kaito – como o grito de uma cigarra distorcida. “Você só está com medo porque não entende. Não há nada a temer. À luz de Nova Phyrexia, todos são um.”

Kaito pisa na frente de Nashi. “Volte para a árvore.”

“Eu não posso deixá-la-”

“Esta não é sua mãe,” Kaito retruca. “Agora vá!” Kaito dá a Nashi um empurrão ainda mais para trás. Já que as coisas vão ficar violentas, ele não quer que Nashi veja isso de jeito nenhum.

Assim que Kaito empurra Nashi para longe, Tamiyo desce sobre ele. Tamiyo era alguém que fazia o que podia para apoiar os outros. Uma contadora de histórias, uma investigadora, uma mulher dedicada à família. E agora?

Phyrexia a mudou. Transformou aquela curiosa contadora de histórias em um hierofante cruel. Não havia nada atrás daqueles olhos cheios de óleo.

As garras de Tamiyo cortaram o ar, seguidas por pergaminhos armados que agarraram o pescoço e os braços de Kaito, ameaçando prendê-lo e dominá-lo. Kaito cortava o papel enquanto mantinha o metal afastado – mas pisar naquele galho escorregadio era algo muito traiçoeiro. Ele escorrega. As garras de Tamiyo deslizam e atingem a armadura de Kaito antes que ele consiga se recuperar. Com o menor deslize de seus pés, aquelas garras se alojariam em seu pescoço. Ele consegue recuperar o equilíbrio com apenas um talho em sua armadura para provar.

Kaito segura sua espada diante dele.

Tamiyo olha para ele sem piscar. “Esta é uma luta inútil.”

“Talvez para você,” Kaito diz. “Não há nenhuma maneira de você vencê-la.”

Sem um gesto sequer, Tamiyo lança mais cinco fragmentos voando na direção dele; Kaito bloqueia quatro. O quinto o corta na bochecha.

“Tenho pena de você,” Tamiyo diz. “Lutando contra a paz para manter sua solidão. Você está no caminho de sua própria iluminação. Como uma criança, você luta contra os pais que só desejam acolhê-lo.”

Kaito fica de olhos marejados ao ouvi-la falando assim. Kaito espera que Nashi não consiga ouvi-la. E ele espera, também, que Nashi não estivesse olhando quando ele lança seu peso em uma estocada. Tamiyo balança para trás e contra-ataca – um pergaminho envolve sua perna. Ele tenta se desvencilhar e se soltar.

Tamiyo puxa.

Kaito fica de cabeça para baixo antes de saber o que aconteceu, balançando bem acima de Towashi. A fumaça da cidade em chamas arde em seus olhos. De alguma forma, ele mantém sua espada.

“Estou te dando a uma última oportunidade de se render, Kaito. Phyrexia pode lhe dar a vida que você sempre quis. Venha para casa. E deixe-me receber minha família.”

O sangue está subindo à cabeça. Pense. Se ele se cortar, ele vai cair. Talvez ele consiga se segurar em alguma coisa; talvez não. Mas ele não tem muitas opções melhores.

“Eu gosto da minha vida do jeito que ela é,” ele diz.

Kaito faz o corte.

Ele cai. Não há impacto. Em vez disso, ele sente algo frio e macio embaixo dele. Algo… familiar. “Já somos três, se você continuar contando.”

Aquela voz. Um sorriso malicioso surge antes que seus olhos se abram – é a imperatriz. Ela pousa no topo do galho envolta em um tecido, sua espada estendida ao seu lado. O que significa que ele deve ter pousado em Kyodai – o espírito guardião de Kamigawa cuja alma está ligada à imperatriz.

“Diz isso contando comigo?” A voz de Kaya mostra a Kaito que ele não está sozinho. Ela está bem ao lado dele, os dois cavalgando juntos.

“Por enquanto,” Kaito responde. “Eu te disse que ela estaria aqui.”

Kyodai voa de volta para Tamiyo. Eles estão na altura do galho, agora. Seus olhos estão fixados na imperatriz enquanto ela confronta Tamiyo. Cada passo é cauteloso e gracioso – a astúcia que incomodava Kaito não é uma preocupação para a imperatriz. A jovialidade que havia em sua saudação inicial desapareceu quando ela se dirigiu à monstruosidade diante dela.

“Este é realmente o lugar para uma luta, Tamiyo?” a imperatriz questiona.

“Você deveria perguntar isso a si mesma,” Tamiyo responde.

Uma enxurrada de fragmentos voa em sua direção, cada um dividido em dois por um único corte da lâmina da imperatriz. Tamiyo recua a cada passo que a imperatriz dá em sua direção – parando ao lado de um Nashi assustado.

A mão de Tamiyo pousa na cabeça de Nashi.

O estômago de Kaito revira. Ele se questiona se deveria desviar o olhar. Em vez disso, ele encontra forças para gritar. “Nashi, afaste-se!”

Tamiyo pega um pergaminho em sua cintura, um que estava amarrado com uma faixa de ferro. Ela solta a faixa com um dedo. O papel de seda se desenrola.

“Kyodai!” grita a imperatriz.

O grande kami abaixo deles voa para o lado dela. A imperatriz aponta a espada para sua companheira e Kyodai bafora sobre ela. Linhas brancas brilhantes revestem a lâmina; os símbolos flutuam no ar ao redor dela. O poder de Kyodai flui através da imperatriz.

A boca de Tamiyo começa a se mexer.

Nashi, finalmente compreendendo o que está para acontecer, se afasta.

Um flash de luz branca, o som de uma lâmina desembainhando, o assobio de um vendaval distante.

Arte de Tran Nguyen

Tamiyo cai.

Kaito fica de pé em um instante. Nashi está sozinho agora – ele vai precisar de companhia. No momento em que Kaito diminui a distância, a Errante está lá para encontrá-los. Kaito abraça Nashi com força.

“Não era ela,” Nashi repete. “Aquilo não era… por que ela estava assim… por que ela não…?”

Não havia respostas fáceis – certamente nenhuma que Kaito pudesse usar. Uma pedra em sua garganta o impedia de falar.

A imperatriz inclina a cabeça com tristeza. “Sua mãe viverá em sua memória e nas histórias que você contar sobre ela.”

Era um conselho sábio, mas não necessariamente reconfortante para alguém no meio da dor. Os soluços de Nashi só ficam mais altos. Kaito não pode culpá-lo.

Outra mão pousa em seu ombro, estranhamente leve e fria. Kaya nunca pareceu do tipo de reuniões chorosas, mas talvez depois do que eles viram em Nova Phyrexia ela esteja mudando de opinião. Qualquer conforto era bem-vindo agora. Até Kyodai abraça todos eles. Por um momento, parece que eles estão tentando manter o Plano inteiro. Talvez no caso deste menino, eles realmente estejam.

A paz dura até que eles ouvem a mãe de Nashi chamando por ele.

A voz de Tamiyo não vem da pilha de metal que a imperatriz derrubou, mas de dentro deles. Não era o frio sussurro phyrexiano, mas os tons calorosos e familiares do seu antigo eu.

“Nashi, me desculpe.”

Kaito protege Nashi com seu corpo. Diante deles está um ser estranho: símbolos flutuantes densamente compactados formando a silhueta de uma mulher. Eles brilham e escurecem como se estivessem respirando. Quando eles ouvem a voz de Tamiyo, uma luz no centro brilha ainda mais forte. Os símbolos surgem, desaparecem e mudam à medida que ele os observa. Os neons projetados de Towashi conseguem produzir todos os tipos de truques, mas isso é algo diferente. A maneira como estavam se movendo parece intencional demais para ser aleatória, imperfeita demais para ser artificial. A luz que brilhava dentro lembrava mais um kami do que qualquer uma das maravilhas técnicas de Towashi.

“Entendo que você pode estar desconfiado de mim, mas não quero fazer mal a você,” Tamiyo diz.

“O que é você?” Kaito pergunta.

“Não é um fantasma, com certeza,” Kaya responde – ela está na beirada do galho. “O que você quer?”

A silhueta se vira para cada um deles e acena com a cabeça. “Eu sou o que resta de Tamiyo – sua história sem fim. Você pode pensar em mim como sua memória. Muitos anos atrás, ela me criou em antecipação à sua morte e me selou dentro de um pergaminho até que eu fosse necessária, presa com um anel de ferro.” A memória de Tamiyo – sua história – fez uma pausa. “Eu esperava que nunca fosse necessário.”

“Como sabemos que você não é-” Kaito começa.

Mas Nashi já estava se afastando dele, em direção ao estranho conglomerado de símbolos. Quando ele os encontra, eles se aglomeram, acomodando-se em seus braços.

Kaito se move na direção do menino, mas a imperatriz gesticula para que ele pare. A imperatriz se vira – em direção ao corpo, em direção a Kamigawa, em direção às ruínas da noite. “Ela está dizendo a verdade.”

“Como você sabe?” Kaito pergunta. “Como você sabe que este não é outro esquema phyrexiano?”

“Você estava prestação atenção? Antes de eu atacar, Tamiyo murmurou alguma coisa.”

“Eu vi isso, mas ela poderia estar preparando qualquer coisa. Achei que ela estava lançando uma maldição.”

“Não estava,” a Errante disse. “Todos os fragmentos que ela jogou em mim eram muito grandes para causar qualquer tipo de dano – você não percebeu?” Ela coloca a mão em uma das muitas máscaras de Kyodai, e o kami toca a dela por sua vez. Um momento de ternura duramente conquistado em um campo de batalha como este. “Tamiyo estava fazendo um pedido, da única maneira que conseguia.”

Kaito olha para trás por cima do ombro. Nashi ainda está cercado pelos caracteres – pela história sem fim. Não era uma vitória limpa, nem mesmo muito boa. Kaito olha para a cidade em chamas abaixo do dossel ferido de Boseiju. Tantos estão mortos, tantos estão morrendo, tantos mais que vão morrer.

À distância, ele vê formas se movendo em meio à estranha fumaça — mecas gigantes avançando pesadamente em direção à farpa de impacto. Forças imperiais se reunindo para combater o ataque phyrexiano.

O quanto eles podem fazer? Quantos eles podem salvar?

Tamiyo caiu – mas Nashi sobreviveu.

Considerando o trabalho que resta a ser feito, ele aceita essa vitória.

Há uma história.

Era uma vez um grande mal, que ameaçava engolir todos os planos do Multiverso. Insensível e indiferente, infectou os corações daqueles que encontrou.

Houve alguém que lutou contra aquilo.

Houve uma protetora de branco.

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