Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

EPISÓDIO 02: MENTIRAS, PROMESSAS E CHAMAS DE NEON

Dez anos se passaram desde que Kaito deixou os muros de Eiganjo, mas alguns hábitos eram difíceis de mudar.

A chuva dançava pelas telhas como uma música. Kaito se inclinou para frente, sobrancelhas franzidas enquanto procurava nas ruas abaixo.

Towashi estava ainda mais colorida do que o normal. Um desfile de guarda-chuvas modificados parecia flutuar pela calçada, cada um deles brilhando com um escudo de energia neon que mantinha as pessoas secas embaixo deles. Um painel de vidro crepitava com vida enquanto o menu noturno de uma casa de chá passava pela tela. Acima, um par de koi laranjas enormes e ardentes agitavam suas caudas sedosas enquanto nadavam em direção a um oceano de céu e luz das estrelas.

Normalmente, Kaito adorava a vibração de Towashi à noite, mas não tinha tempo para nostalgia. Ele estava procurando por alguém.

Kaito Shizuki | Arte de Yongjae Choi

Kaito pressionou um dedo em sua têmpora, e a transmissão de seu drone apareceu em seu campo de visão. O dispositivo estava pairando acima de um beco escuro, e Kaito conduziu o drone em forma de tanuki em direção à movimentada rua em tons de arco-íris.

Uma década de avanços tecnológicos significava muito mais sofisticação do que o drone de origami da infância de Kaito. A garça era fácil de reciclar. Mas Kaito não tinha certeza se seria capaz de substituir seu drone atual, não importa o quão desatualizado ela se tornasse.

O tanuki e Kaito tinham muita história.

Tameshi o avisou para não se apegar a uma única peça de tecnologia. “Tudo o que é novo um dia fica velho,” dissera o amigo.

Na maioria das vezes Kaito ficava feliz em ouvir a sabedoria de Tameshi. Ele tinha sido um amigo e um mentor ao longo dos anos. Mas Tameshi também passou a vida tentando não se apegar a ninguém, nem a nada.

Kaito era o oposto. Ele se sentia preso às pessoas com quem mais se importava e faria qualquer coisa para proteger esses laços.

O drone tanuki, Himoto, era mais do que apenas uma peça de tecnologia – ela representava a kami que mudou a vida de Kaito para sempre.

Era também um lembrete de que sua amiga ainda estava desaparecida.

O drone parou perto de uma esquina antes de seguir por uma fileira de vendedores ambulantes, todos abrigados por copas brilhantes cercadas por lanternas penduradas.

Um Kami de Vendedores Ambulantes estava sentado mal-humorado na beira de um balcão, seu rosto massudo e franzido estava emburrado. Três gyoza pairavam ao redor dele como se estivessem no limite da esperança.

O vendedor mais próximo colocou uma porção generosa de ramen em uma tigela antes de adicionar um brilhante bolo de peixe rosa e branco, fatias de ovo cozido e uma pitada de cebola verde no topo – tudo cozido com perfeição. Ele passou a refeição para um cliente que estava esperando, e o kami soltou um gemido desapontado.

Mesmo através da câmera do drone, Kaito percebeu a preocupação nos olhos do vendedor. Kami estavam por toda parte em Kamigawa, mas nem todos queriam comer uma refeição ao lado de um espírito temperamental. Às vezes era melhor mantê-los felizes.

Com um suspiro, o homem estendeu a mão atrás do balcão para pegar sua própria tigela de macarrão cozido que estava em caldo quente há muito tempo. O rosto gorducho do kami se transformou em puro deleite, e o prato mal tocou o balcão antes de ele jogar o rosto no ramen e sorver furiosamente.

O vendedor revirou os olhos e se virou para o próximo cliente.

Kaito empurrou o drone para o céu em direção à altura dos prédios próximos. Com uma visão panorâmica, eles vasculharam a cidade, procurando nos becos um por um até que avistaram um grupo de samurais imperiais parados do lado de fora de um apartamento. A maioria das janelas superiores estava fechada com as cortinas baixas, mas uma tinha sido deixada entreaberta. A diferença era tão pequena que mal era perceptível para uma pessoa comum.

Kaito abriu um meio sorriso. Ele não viu o impossível — ele viu um convite.

Ele bateu na têmpora novamente, desligando a imagem do drone, e deslizou pelas telhas até a sacada abaixo. Seguindo o parapeito até a esquina do prédio, Kaito escorregou pelas barras e escalou a parede de volta para a calçada, perdendo-se na multidão próxima.

Ninguém notou o drone se aproximando, ou como Kaito pegou o dispositivo do ar em um movimento fluido. Em suas mãos, o metal se moveu como papel, dobrando e redobrando novamente até que ela se tornou uma máscara.

A personificação da kami em forma de tanuki que fez a centelha de Kaito acender.

Ele se tornou um planinauta naquele dia. Alguém destinado à grandeza mesmo além das fronteiras de Kamigawa.

Kaito roçou um dedo na borda do dispositivo. Ele seguiu a Kami da Centelha até Boseiju na esperança de encontrar a imperatriz. Mas não era sua amiga que estava esperando por ele no distrito florestal — era seu destino.

Ele encolheu os ombros contra a chuva, pressionou a máscara no rosto e endireitou o capuz. Kaito não se importava com grandeza; ele só queria sua amiga de volta.

Kaito deixou as ruas para as sombras como um espectro indetectável. Virando esquina após esquina, ele seguiu os becos em direção ao coração de Towashi. Quando chegou ao prédio de apartamentos, começou a subir.

Os samurais imperiais estavam posicionados na porta. Ele podia ouvir o som de suas armaduras de metal toda vez que eles se moviam. Armadura feita para a batalha, não para furtividade.

Tanto barulho desnecessário, Kaito pensou consigo mesmo antes de balançar sobre a borda e plantar os pés na pequena varanda.

O tempo o havia mudado. Ele não era mais uma criança, ou um imperial.

Mas ele ainda era o Kaito que escalava telhados e se esgueirava pelas janelas que não deveria.

Empurrando o vidro com a mão enluvada, Kaito entrou na sala sem fazer barulho.

O quarto crepitava com a luz do fogo. Kaito sentiu o movimento, o olhar estalando em direção à lareira. Ele esperava encontrar um kami aninhado dentro da chama, mas não havia ninguém lá. Apenas um brilho âmbar que fazia sombras tremeluzirem pela parede.

“Não se preocupe,” disse uma voz familiar. “Estamos sozinhos.”

Kaito ergueu uma sobrancelha, mas não se virou. “Foi atencioso da sua parte deixar a janela aberta.”

Houve um hmpf irritado. “Nós dois sabemos que você não estava planejando usar a porta da frente. Se suas viagens interplanares não lhe ensinaram nada sobre etiqueta, tenho certeza de que é inútil pressupor.”

“Se eu realmente quisesse aprender sobre etiqueta,” Kaito começou, virando-se para sua irmã, “eu teria vindo direto até você.”

Os lábios de Eiko se curvaram em um sorriso. “É bom te ver.”

Kaito empurrou sua máscara de tanuki para trás de sua cabeça. “É bom te ver também.” Ele hesitou, tentando se equilibrar com a alegria de ver sua irmã com a realidade do que ela estava se tornando. Ele não odiava que ela fosse uma Imperial, mas odiava a distância que vinha com isso. “Eu sei que você não sai muito do palácio esses dias.”

“É difícil,” admitiu Eiko. “Risona tem apoiadores em toda Kamigawa – não apenas os Insurgentes Asari nas montanhas Sokenzan, mas espiões em Towashi e no Submundo. Nem sempre é seguro para alguém como eu viajar sem proteção.”

“Eu me lembro de você ser bem capaz de cuidar de si mesma,” Kaito rebateu.

“Eu sou uma conselheira imperial agora. Há mais a considerar do que apenas eu mesma,” ela disse calmamente.

Kaito torceu a boca. Suas palavras o lembravam de alguém. Alguém com quem ele não falava desde o dia em que fugiu de Eiganjo. “Patas-Leves está aqui com você?”

Seus caminhos não se cruzavam há uma década. Kaito não estava evitando intencionalmente sua ex-professora, mas também não estava procurando por um reencontro. Porque quando se tratava de Patas-Leves, Kaito ainda sentia a mágoa como uma contusão sob a superfície.

Eiko balançou a cabeça. “Patas-Leves não tem tempo para reuniões diplomáticas. Ela está muito ocupada tentando evitar uma rebelião e impedir que o resto da corte se volte um contra o outro em sua tentativa de ganhar mais poder.” Havia uma ponta de frustração em sua voz. “Os Insurgentes Asari ficam mais ousados a cada dia. Quanto mais tempo o trono continuar vazio, mais Risona é capaz de ganhar apoiadores que acreditam que o império deveria ser abolido.”

Por mais que Kaito acreditasse que os Imperiais eram limitadores, ele nunca quis um fim completo do aconselhamento Imperial. Eles desempenhavam um papel importante quando se tratava de negociar com os kami. E a última coisa que Kaito queria era que Kamigawa explodisse em violência.

“A imperatriz vai voltar para casa.” A garganta de Kaito se apertou com a memória do que ele perdeu. O que Kamigawa perdeu.

Ele viajou pelo Multiverso para encontrá-la, mas não estava mais perto do que quando sua centelha acendeu. Tudo que Kaito sabia era que o homem com o braço de metal era um planinauta.

O que significava que a imperatriz poderia estar em qualquer lugar.

Eiko assentiu solenemente. “Espero que você esteja certo. Pelo bem de Kamigawa e do seu.”

Kaito desviou o olhar. Às vezes, quando os dias eram longos e as noites calmas, a dor em seu coração parecia tão forte quanto quando ele estava no quarto de Kyodai e percebeu que sua amiga havia desaparecido.

Mas agora não era o momento para corações doloridos. Fazia meses desde que ele viu sua irmã — ele não queria perder seu tempo juntos sendo triste.

“Você sempre gostou de se preocupar comigo.” Ele se virou, levantando uma sobrancelha como se estivesse provocando ela. “É por isso que você arriscou enviar um drone imperial até Towashi?”

Eiko franziu os lábios. A dinâmica deles era familiar — era fácil o retorno aos velhos hábitos. E ironia sempre foi uma das favoritas. “Você não é o único com olhos nesta cidade, Kaito. Se você estivesse em apuros, eu saberia.”

As palavras saíram da boca de Kaito com muita facilidade. “Eu não sabia que teria que deixar este Plano para ter um pouco de privacidade.”

Eiko piscou. “Você não iria embora de novo sem dizer adeus.” Não era uma pergunta; era um lembrete da promessa de Kaito.

Ele não se arrependeu de ter saído do palácio, mas se arrependeu de ter deixado Eiko sem nenhum aviso.

Eles percorreram um longo caminho desde então. Eiko estava em Boseiju com Kaito quando eles estavam rastreando a Kami da Centelha. Ela era a única imperial em Kamigawa que acreditava que ele estava certo sobre o homem com o braço de metal ter algo a ver com o desaparecimento da imperatriz.

Mas algumas lembranças deixavam suas marcas. E às vezes essas marcas doíam.

Kaito ergueu os ombros, envergonhado. “Ah, vamos lá. Você já deve ter me perdoado. Eu basicamente salvei sua vida no distrito florestal. Duas vezes.”

“Isso não é nem perto do que aconteceu. Você estava atravessando o território kami sem nenhum sentido. Você tem sorte de ter sobrevivido o suficiente para acender essa sua centelha.”

“Você sempre foi minha diplomata kami favorita.”

“Eu diria que a bajulação não vai te levar a lugar nenhum, mas nós dois sabemos que essa é praticamente a única carta que você tem.”

Sua risada ecoou pelo espaço. “Você me machuca.”

Fogo cintilou no olhar reluzente de Eiko. “Ouvi dizer que os Futuristas estão investigando bio-aprimoramentos ilegais que podem mexer com a física da realidade. Talvez você possa pedir a seus amigos para ajudá-lo a deixar sua pele mais grossa.”

O sorriso de Kaito desapareceu ligeiramente. Outra memória que carregava uma picada. “Nós não somos os vilões, você sabe. Acreditamos que experimentações com tecnologia é o caminho a seguir – não para ferir as pessoas ou iniciar guerras, mas para ajudar. Para curar.”

“Já temos tecnologia para isso.”

“Sim, mas quem tem acesso a ela? Quem não pode pagar licenças ou placas-mãe atualizadas tem que esperar pela bênção de um kami para ter algum tipo de poder. E nós dois sabemos como isso é raro.”

“Você já parou para pensar que talvez nem todos deveriam ter acesso ao poder?” Eiko rebateu. “Os Imperiais não estão tentando ser regressivos. Mas nós temos portões de integração para construir e proteger, e kami que veem nossas cidades em expansão como ameaças a seus lares. O que acontece se eles começarem a ver nossas invenções como uma ameaça à sua existência?” Ela balançou a cabeça. “Para o bem do reino mortal e do reino espiritual, é preciso haver equilíbrio.”

“Dar poder a alguns sempre criará uma divisão. A tecnologia nivela o campo de jogo. Não apenas para os ricos e a elite, mas para todos. Não precisamos mais depender da magia kami – podemos nos proteger.”

“De quem você precisa tanto se proteger? Porque da última vez que verifiquei, as únicas pessoas tentando começar uma guerra são aquelas que querem a mesma coisa que você,” Eiko acentuou friamente.

“Eu não apoio os Insurgentes,” Kaito disse claramente. “Mas Kyodai não é ela mesma desde que a imperatriz desapareceu. O que acontece se algo der errado com os portões de integração e kami destrutivos forem liberados? Pode levar milênios para os reinos mortal e espiritual se tornarem um. Isso são mil anos de incerteza. As Guerras Kami podem ser uma lenda, mas você pode garantir honestamente que não veremos uma ameaça como essa novamente?”

Eiko se firmou. “Os kami não são nossos inimigos.”

“Nós nem sabemos quem é nosso inimigo.” Kaito acalmou, engolindo o nó na garganta. “A imperatriz foi tirado do templo de Kyodai e ninguém viu isso acontecer.”

Ele não foi capaz de parar. Ele chegou muito tarde, muito fraco e muito despreparado.

Todos.

O rosto de Eiko endureceu. “Não havia nada que você pudesse ter feito naquela noite.”

“Se tivéssemos tecnologia melhor-”

“Tecnologia desregulada pode muito bem ter sido o motivo pelo qual a imperatriz foi levada, pra começo de conversa!” Eiko interrompeu, as bochechas ficando rosadas.

Kaito fez uma careta. “Os imperiais já culparam os Futuristas – e os Insurgentes – sem um pingo de evidência. Eles quase causaram uma guerra.”

Eiko ficou em silêncio por muitos segundos.

Kaito viu a hesitação nos olhos de sua irmã. Ela estava escondendo algo. “O que você ouviu?” Ele piscou, a esperança batendo contra sua caixa torácica como um maremoto. “Você sabe onde a imperatriz está?”

“Não,” Eiko disse. “Mas eu recebi uma informação.” Mesmo à luz do fogo, Kaito podia ver a tensão atrás dos olhos dela.

O que quer que ela soubesse, ela não deveria contar a Kaito.

Ele deu um passo à frente, urgente. “Se isso é sobre a imperatriz-”

“É sobre Tameshi,” Eiko interrompeu.

Os pensamentos de Kaito pararam. Ele não tinha certeza se tinha ouvido direito. “O que Tameshi tem a ver com isso?”

Arte de Scott M. Fischer

Os olhos de Eiko travaram na porta. Kaito nunca a tinha visto tão nervosa. Ela enfiou a mão dentro de suas vestes e tirou um pequeno dispositivo em forma de leque de papel. Com um roçar de seu polegar, as bordas se expandiram em uma pequena cúpula. Energia irradiava para fora, criando um casulo de luz branca ao redor dos irmãos.

“Um supressor de ruído?” Kaito cruzou os braços sobre o peito. “Isso deve ser sério se você não confia em seus guardas.”

Eiko respirou devagar. “Minhas fontes têm observado Tameshi por algum tempo. Ele está envolvido na negociação de estudos de fusão ilegal envolvendo kami, e-”

“Se você acha que eu vou fornecer informações sobre meu melhor amigo para os Imperiais, você está muito enganada.” Kaito cerrou os dentes. “Eiko, você é minha irmã, e eu te amo. Mas se você está me pedindo para ser seu espião…”

“Eu não estou te dizendo isso porque eu quero sua ajuda. Eu não deveria dizer nada isso a você. Mas-” Eiko beliscou a ponte de seu nariz. “Não são apenas os estudos de fusão. É com quem ele estava.” Ela suspirou, soltando a mão. “Tameshi foi visto se encontrando com um homem no Submundo. Um homem com um braço de metal.”

O fogo estalou atrás dele, mas Kaito podia sentir brasas queimando em seu próprio peito. Uma chama de afronta. “O que quer que suas fontes pensem que viram, estão erradas.”

Tameshi conheceu os dois no distrito florestal. Ele sabia sobre a imperatriz, a kami, e o homem que Kaito estava procurando. Não havia um único segredo que Kaito escondesse de seu amigo – nem naquela época, nem agora.

Não fazia sentido que Tameshi escondesse algo tão importante. Não era possível.

“Acredite em mim, eu nunca compartilharia informações com você se não estivesse absolutamente certa de que é verdade.” Os ombros de Eiko caíram. “Especialmente sobre isso.”

A voz de Kaito era oca. “Tameshi não me trairia.”

“Estou lhe dizendo o que sei,” Eiko disse. “Dez anos atrás, você jurou que nunca pararia de procurar a imperatriz. Se Tameshi conhece o homem com o braço de metal e nunca lhe disse, você não quer descobrir por quê?”

“Eu não vou te dar informações,” Kaito disse seriamente. “E não vou entregar meu amigo para ser usado como bode expiatório.”

“Eu não estou pedindo para você fazer isso. Queremos a mesma coisa – encontrar a imperatriz, o mais rápido possível. Estou simplesmente dando a você a informação que você precisa para fazer a coisa certa. Para descobrir a verdade.”

Kaito desviou o olhar amargamente. Deve ter outra explicação. Tameshi nunca mentiria para ele. Ele nunca o trairia.

Trairia?

“Kamigawa precisa de um governante,” Eiko disse com cuidado. “Alguém para restaurar o equilíbrio entre nosso povo.”

Kaito inclinou o queixo, encarando sua irmã. “Não acredito que um trono seja a chave para restaurar o equilíbrio. Mas farei o que for preciso para encontrar a imperatriz.”

Ele confiava em Tameshi há um longo tempo.

Mas ele confiava em Eiko há muito mais.

Se sua informação estava certa ou errada, Kaito acreditava em sua irmã o suficiente para seguir a trilha. E se espionar seu melhor amigo era a única maneira de provar sua inocência, então Tameshi teria que perdoá-lo.

Kaito moveu-se para a janela, deixando a proteção da cúpula para trás.

Eiko fechou o leque de metal antes de colocá-lo de volta em suas vestes. “Desculpe, Kaito.” Ele parou perto da borda, ouvindo a voz sombria dela. “Eu sei o que ele significa para você.”

Kaito não queria acreditar. Mas se Tameshi realmente estivesse trabalhando com o homem com o braço de metal, e se ele tinha conhecimento do que aconteceu com a imperatriz todo esse tempo…

Então talvez a amizade deles nunca tenha sido o que Kaito pensou.

Kaito estava na beira do beco, as costas pressionadas contra a parede de pedra. Otawara estava no alto das nuvens, e às vezes Kaito se convencia de que a cidade flutuante tinha menos sombras por causa disso, e muito menos lugares para se esconder.

Seu drone tanuki era muito reconhecível para ser útil nos arredores de Tameshi, então Kaito teve que segui-lo à moda antiga – com seus olhos, ouvidos e pura determinação. À medida que as semanas passavam e ele continuava a reunir informações, Kaito se viu odiando a nova máscara que usava.

A máscara de um mentiroso.

Doía estar à beira de trair seu amigo. Mais de uma vez, Kaito quase se convenceu de que era tudo um mal-entendido. Que Eiko estava errada, e que não poderia ter sido o mesmo planinauta que ele viu no templo de Kyodai.

Mas cada parte de informação que Kaito descobria apenas confirmava o que sua irmã lhe disse.

Tameshi estava escondendo algo. Não apenas de Kaito, mas de outros futuristas também.

Arte de Alayna Danner

Kaito o observava dia após dia, trabalhando no departamento Futurista como se suas crenças estivessem alinhadas com o resto de Otawara. E então o sol se punha, e quando todos os outros voltavam para casa, Tameshi ficava dentro de seu laboratório, dando continuidade a um projeto que ninguém mais no complexo parecia saber.

Kaito tinha visto Tameshi acordando com apertos de mão em becos escuros para conseguir ampliadores energéticos roubados. Ele viu seu amigo esconder caixas de mercadoria em seu local de trabalho secreto na calada da noite. E ele viu os drones não regulamentados deixarem o complexo e seguirem direto para o Submundo de Towashi.

Era evidência de que Tameshi estava fazendo algo ilegal. Mas Kaito precisava de provas de sua traição.

Tameshi apareceu na entrada principal do complexo, o drone já desdobrado em sua mão. Com um empurrão suave, ele soltou o dragão em forma de fita no ar, observando enquanto ele se arqueava além das árvores em busca do solo abaixo. Ele verificou o painel em sua manga, observando a hora, e em um passo gracioso, flutuou e desapareceu em direção ao horizonte.

Kaito não esperou muito. Não havia mais ninguém por perto; os colegas de Tameshi tinham ido para casa horas antes. Ele tirou um dispositivo do cinto – uma pequena estrela que brilhava azul nas bordas – e apontou para a câmera de segurança mais próxima. Ele movimentou o pulso com força e a estrela girou no ar antes de se prender na lateral da câmera. Ela piscou uma vez. Duas vezes.

E então as bordas brilhantes ficaram verdes.

Ocultado com o capuz apertado, Kaito saiu do beco e caminhou direto pelas portas da frente do complexo de Tameshi. Nenhuma câmera o veria agora – não com o dispositivo congelando a filmagem.

Mas ele precisava ser rápido. Não havia como saber quando Tameshi voltaria.

O piso de porcelanato ecoava, frio e vazio. Kaito lutou contra o calafrio que o percorria. Não era sua primeira vez dentro do complexo, mas era a primeira vez que ele se sentia um intruso.

Como um traidor, sua mente murmurou e ele tentou afastá-la.

Se Kaito estivesse errado sobre Tameshi, ele aceitaria as consequências que poderiam vir em seu caminho. Mas se Tameshi tivesse mentido para ele todo esse tempo…

Kaito não estava pronto para enfrentar a verdade, mas pelo bem da imperatriz, ele faria isso assim mesmo.

Ele passou pela porta de metal que levava ao laboratório de Tameshi sem olhar duas vezes. Não fazia sentido tentar invadi-lo — não sem um cartão-chave ou um meca gigante.

E Kaito achava que explodir o laboratório em pedaços não ajudaria muito do ponto de vista das evidências.

Em vez disso, Kaito foi direto para o escritório de Tameshi. Uma mesa enorme estava no centro, coberta com uma combinação de chips de dados e papelada. Uma lanterna redonda estava no canto, e Kaito pressionou um dedo na lateral para trazê-la à vida. Usando sua telecinesia, Kaito ergueu a lanterna no ar até que ela pairou firmemente ao lado dele.

Ele vasculhou todas as gavetas e armários da sala e revisou cada pedaço de papel na mesa de Tameshi. A maior parte não era importante, mas havia uma mensagem codificada que Kaito encontrou debaixo de uma pasta. Não demorou muito para Kaito decifrá-lo — ele aprendeu todos os truques que Tameshi se dispôs a ensiná-lo.

Era vago no que dizia respeito às mensagens, mas parecia ser um pedido de encontro no Submundo. Era um longo caminho para uma reunião; o Submundo ficava na superfície, enfiado entre as sombras de Boseiju — a maior e mais antiga árvore viva de Kamigawa — e os arranha-céus de Towashi. Certamente não era um local prático para negócios comuns.

Ir tão longe de Otawara… implicava uma necessidade de sigilo ainda maior do que o futurista médio exigia.

Kaito tamborilou os dedos ao longo da borda da mesa, franzindo a testa para a mensagem enquanto verificava a data e a hora. A reunião estava acontecendo hoje à noite, e em breve – deve ter sido para onde Tameshi foi.

Mas quem ele ia encontrar? E porque?

Quando Kaito começou a se levantar, ele viu um chip de dados escondido atrás de alguns papéis. Ele o conectou com sua máscara tanuki, levou alguns momentos para contornar a criptografia e viu a imagem aparecer no painel interno.

Era um projeto de um dispositivo estranho, fino e quadrado, com braços semelhantes a fios saindo dele como uma água-viva. Kaito nunca tinha visto nada parecido antes.

Arte de Campbell White

Mas ainda não provava que Tameshi conhecia o homem com o braço de metal.

Para isso, Kaito teria que inavdir uma reunião no Submundo.

Kaito removeu o chip de dados de sua máscara de tanuki e o colocou sob as páginas. Ele se afastou da mesa e flexionou os dedos, devolvendo a lanterna ao seu suporte, e correu para fora.

Quando estava seguro através das portas, Kaito estalou os dedos, e a estrela se desbloqueou da câmera e flutuou de volta para ele. Ele a pegou do ar, enfiou-a no cinto e se dirigiu para a balsa do céu.

Kaito contornou os arredores do Submundo com facilidade. Mesmo que não estivesse no meio da noite, nenhuma luz do sol chegava à superfície, e as luzes de néon da cidade não pareciam alcançar as ruas mais estreitas. Os canais aquáticos turvos estavam cobertas de flores de cerejeira, mas mesmo a estética encantadora não conseguia mascarar o fedor de suor e esgoto no ar.

Não demorou muito para rastrear Tameshi – o cidadão-da-lua não costumava se aventurar no Submundo, e mais de um estranho estava satisfeito em trocar informações por uma pequena taxa.

Kaito seguiu o rastro do amigo até as docas. As fontes de luz eram escassas nos limites da cidade, e a água do canal estava tão escura quanto carvão. Kaito podia sentir um gosto amargo em seus lábios – a nódoa química que vinha de estar tão perto dos esgotos do Submundo.

Ele fez uma careta, mantendo as mãos soltas ao lado do corpo, pronto para pegar sua espada ao primeiro sinal de problema. Ele não sabia o que encontraria, mas se visse o homem com o braço de metal novamente, não planejava deixá-lo escapar.

O vapor das aberturas próximas ajudou a mascarar os passos de Kaito enquanto ele vagava pela beirada das docas. Contêineres de metal estavam empilhados em fileiras uniformes, oferecendo muitos lugares para se esconder. Mas a atenção de Kaito estava fixada no armazém à frente, onde a luz saía de duas portas largas.

Kaito removeu sua máscara, deixando Himoto se transformar novamente em um drone de quatro patas. Silenciosamente, ela voou em direção ao armazém. Ao mesmo tempo, Kaito alcançou a espada em suas costas. Com um movimento da empunhadura, as bordas se expandiram em duas fileiras de lâminas afiadas e irregulares.

Aumentando a pressão na espada, Kaito rastejou atrás do drone e pressionou um dedo em sua têmpora.

Dentro do armazém, o drone tanuki flutuou em direção a um espaço escuro acima das vigas. Caixotes de metal enchiam a maior parte da sala, mas no outro extremo havia uma área aberta cheia de mesas e equipamentos de laboratório. Béqueres brilhantes estavam contorcidos um ao redor do outro como um labirinto de vidro. Alguns deles borbulhavam com líquido neon, e outros brilhavam com energia. Instrumentos cirúrgicos cobriam a superfície — havia facas de formato estranho que pareciam triângulos largos, e outras que eram finas como galhos. Béqueres menores cheios de soros estranhos em tons metálicos estavam dispostos em uma mesa de trabalho, e fragmentos de metal e fios desgastados cercavam uns aos outros como peças de quebra-cabeça que não se encaixavam.

Um desconforto percorreu os ossos de Kaito. Esses experimentos… não se pareciam em nada com o trabalho dos futuristas que ele vira em Otawara. Ou em qualquer lugar em Kamigawa.

Kaito conduziu Himoto para mais perto do equipamento de laboratório quando uma sombra enorme o fez parar. Ele podia ouvir vozes da porta. Uma discussão que estava acontecendo há muito tempo.

Mesmo com a câmera do drone, tudo que Kaito podia ver abaixo era uma sombra muito grande. Quando ela se virou, Kaito ouviu um tremor sobrenatural na voz do vulto, como metal raspando contra metal.

“A utilidade anterior do carnídeo é irrelevante. Dúvida e fraqueza devem ser extirpadas do todo.”

Arte de Joshua Raphael

Houve um arrastar de passos perto de um dos contêineres, e uma voz rouca murmurou algo que Kaito não conseguiu ouvir.

A enorme figura se mexeu mais uma vez, avançando para a luz. Kaito prendeu a respiração quando um monstro estranho apareceu. Seu corpo era feito de cromo, tinha braços com garras e coluna curvada. Costelas expostas e vértebras pontiagudas estavam exibidas e pareciam ser de metal. Seu rosto e boca eram monstruosos e passeriformes, com muitas pontas afiadas e dentes longos e chatos que fizeram Kaito tropeçar para trás, mesmo fora do armazém.

Este não era o homem com o braço de metal que Kaito tinha visto no templo de Kyodai. Isso era algo completamente diferente.

A criatura se moveu pelo lugar com um andar sobrenatural, e Kaito puxou seu drone ainda mais para as sombras para se proteger.

“Finalize a coleta dos materiais necessários e transfira os espécimes adquiridos.” O monstro se virou, as mandíbulas se abrindo quando o chocalho metálico de sua voz fez o estômago de Kaito ficar vazio. “Não retarde o progresso. É inevitável que os objetos recuperarão um estado totalmente consciente.”

Um grupo de capangas apareceu na câmera do drone. Justiceiros, pela aparência de suas roupas. Havia quase uma dúzia deles, arrastando apressadamente o equipamento da mesa para um veículo que estava esperando. Eles deixaram os béqueres para trás, ainda borbulhando com corante, e começaram a deslocar um dos contêineres maiores em direção ao veículo.

O tamanho perfeito para guardar algum tipo de arma, Kaito pensou insipidamente. No que Tameshi se envolveu?

O capanga estava com a carga parcialmente carregada no veículo quando um grito soou de dentro. O coração de Kaito apertou com o pensamento da imperatriz em uma jaula, mas os ruídos dentro da carga eram mais animais do que humanos.

Eles soavam como kami.

Ele queria investigar. Ele sabia que o que estava dentro do contêiner poderia fornecer respostas sobre o que estava acontecendo no armazém.

Mas não havia tempo, e Kaito não poderia enfrentar uma dúzia de Justiceiros e um monstro sozinho.

“O que fazemos com os béqueres?” um dos capangas perguntou.

A criatura caminhou em direção ao veículo sem olhar para trás. “Todas as evidências devem ser erradicadas. A expansão do trabalho continuará em um local mais ideal, cortesia do carnídeo.”

Com um sorriso de escárnio, o Justiceiro virou-se, pegou um dos béqueres individuais e jogou-o contra o resto da vidraria com força.

A explosão fez Kaito pular alarmado, apertando sua espada. Ele piscou rapidamente, pressionando sua têmpora para chamar seu drone de volta, e ouviu o ronco do veículo enquanto se afastava.

O estalo furioso e o silvo do fogo foram um aviso.

Mas também havia evidências lá dentro. Evidências que estavam sendo destruídas.

Kaito correu para o armazém sem pensar duas vezes, correndo em direção às chamas coloridas que já subiam pela lateral do armazém. Em mais alguns minutos, todo o edifício seria engolido.

Seus olhos vasculharam as mesas em busca de algo para agarrar – algo que pudesse ajudá-lo – mas tudo o que foi deixado para trás já estava queimando, muito brilhante e ferozmente para parar.

Os ombros de Kaito caíram, assim que um gemido soou em algum lugar atrás dele.

Ele girou, espada levantada, e viu Tameshi caído no canto ao lado de um dos contêineres. O tecido de suas vestes tinha sido cortado ao meio, arranhado por um braço de metal. Seu rosto empalideceu para um tom que Kaito nunca tinha visto em seu amigo antes. E ao redor dele, o sangue começou a se acumular.

Tameshi foi mortalmente ferido.

Empurrando sua espada de volta ao punho, Kaito correu para o lado de seu amigo e caiu de joelhos. Havia tantas coisas que ele queria dizer. Tantas coisas que ele queria perguntar.

Mas naquele momento, seu coração parecia tão despedaçado quanto o vidro queimando atrás dele, e ele não tinha nenhuma palavra.

Tameshi levantou a cabeça, os olhos lutando para permanecer abertos. “Kaito…”

Kaito balançou a cabeça várias vezes. Isso não podia estar acontecendo. Ele não perderia outro amigo.

Mas a morte tinha outros planos.

A voz de Tameshi era tão fraca quanto cinzas. “Eu… eu cometi tantos erros. Mas mentir para você foi o pior deles.”

Kaito sentiu o fogo rugir atrás dele. Ele não podia mover Tameshi – só aceleraria o inevitável. E se segundos era tudo o que lhe restava…

Ele queria falar para ele não se preocupar. Para lhe dar paz e perdão naqueles momentos finais. Para dar a ele tudo que um amigo merecia.

Mas ele também tinha outra amiga. E ainda havia tempo para ajudá-la.

“Diga-me o que você sabe sobre a imperatriz,” Kaito implorou, lutando contra a ardência em seus olhos. “Como você conhece o homem com o braço de metal?”

Os olhos de Tameshi tremularam.

“Não!” Kaito agarrou as vestes de seu amigo e puxou. “Não vá ainda. Não sem me dizer a verdade.”

O último suspiro de Tameshi foi como o último sussurro de uma luta. Ele olhou para Kaito cheio de arrependimento irreparável.

Ele estava sem tempo.

“Tezzeret,” Tameshi sussurrou como se estivesse quebrando um feitiço. E então ele se foi.

O grito de Kaito se tornou um suspiro sufocado, e as lágrimas escorrendo por suas bochechas pareciam queimar sua pele. Ele sentiu o calor atingir suas costas, o fogo chegando perigosamente perto.

Apertando os dentes, Kaito pressionou a mão nos olhos de Tameshi e murmurou um adeus silencioso. Mesmo que parecesse errado, ele enfiou a mão no bolso do amigo e tirou o cartão-chave de seu laboratório.

Tameshi pode estar morto, mas Kaito tinha mais o que fazer.

Seu drone tanuki apareceu ao seu lado, dobrando-se de volta em uma máscara. Kaito cobriu o rosto e ficou de pé sobre o corpo do amigo, lutando contra a angústia que balançava seus ombros, e foi embora.

Atrás dele, o armazém ardia.

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