Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

EPISÓDIO 02: AREIA NA AMPULHETA

Arte de Julian Kok Joon Wen

O tempo passava mais devagar do que os grãos de areia se acomodando entre as rochas. As partículas finas eram peneiradas nas articulações de Karn. Ele não sabia quanto tempo tinha ficado ali, preso no escuro. Passaram-se dias ou semanas? E se os meses tivessem voado, como um pássaro pequeno e assustado? E se fosse mais tempo? Anos, décadas, eras—

Não, ele não conseguia pensar nisso.

Ninguém sentiria falta dele. Ninguém sabia para onde ele tinha ido. Ele deveria ter contado a alguém. Ele deveria pelo menos ter contado a Jhoira. Ou Jaya. Se ele tivesse dito a elas, elas saberiam onde procurar e o libertariam ou teriam visto os próprios phyrexianos.

E se fossem os phyrexianos que o encontrassem? Seria pior se ninguém o encontrasse? Ele poderia esperar sozinho, eternamente na escuridão. No silêncio.

A areia escorria. Um barulho de arranhado. Talvez garras raspando pedra bruta.

Um peso foi retirado de sua mão, expondo-a às correntes de ar frio. Ele podia mover os dedos. Alívio passou por ele, uma pontada mais poderosa que as Eternidades Cegas. Ele esticou os dedos, maravilhado com a liberdade desse pequeno movimento, a capacidade de fazer qualquer movimento. Algo quente e macio tocou seus dedos. Orgânico, impenetrável aos seus sentidos. Não-phyrexiano. Gentil. Preocupado.

Ele foi encontrado.

O calor deixou seus dedos. Seu salvador havia ido embora?

O coçar acelerou. Rochas rangeram. Seixos cascatearam. Barulhos de grandes pedras sendo jogadas para longe. O peso sobre ele diminuiu. Karn se esticou. A matéria ao redor dele se alterou, mudando com a pressão de sua enorme força. Karn exercitou os poderosos mecanismos em seu torso, empurrando-se para cima. Rochas se espalharam. Ele se ergueu lentamente. Ele queria tomar cuidado para não ferir seu salvador com pedras perdidas.

À medida que seus esforços aumentavam, o ruído dos arranhões cessava. Passos recuaram quando seu salvador se afastou. Karn teria que confiar que eles haviam se movido para uma distância segura.

Karn se levantou. Pedras se soltaram dele, e ele estava livre. O ar quente acariciava seu corpo. Ele revirou os ombros, deleitando-se com o movimento deles. A queda da rocha levantou uma névoa cinzenta. Ele sacudiu as partículas finas de seu corpo e enxugou os olhos.

Ajani estava no túnel, seu pelo de um branco impressionante à luz das tochas. A pupila de seu olho azul-claro sem cicatrizes brilhava com o brilho notívago de um predador da noite. Seus ombros estavam orgulhosos, como se estivesse satisfeito por ter encontrado Karn. Ele concedeu a Karn um sorriso amigável de lábios fechados.

Karn assentiu, hesitante. Ele só havia encontrado Ajani algumas vezes. Para a espécie de Ajani, mostrar os dentes era uma ação hostil, então esse pequeno sorriso era mais amigável do que um largo sorriso humano.

“Como você me encontrou?” Karn limpou a garganta. Também parecia empoeirada. O mecanismo dentro dela clicou desconfortavelmente. “Eu não disse a ninguém que estava aqui.”

Ajani tossiu, desajeitado, grave no peito. “Depois que você não respondeu as cartas, Jhoira ficou… preocupada com você. Ela pediu a Raff para colocar um feitiço de rastreamento nas cartas, um que só seria ativado quando você – e somente você – abrisse o envelope. Foi assim que eu localizei seu acampamento.”

Karn se acalmou, envergonhado. Jhoira sabia todas as vezes que ele lia uma carta e a deixava sem resposta? Cada vez que ele afastava as pilhas de papel em sua bancada para abrir espaço para um novo projeto? Ajani tinha visto a desordem caótica que povoava seu espaço de trabalho? Karn nunca teria deixado seu acampamento descer a tal estado se esperasse um visitante.

Ele evitou o olhar de Ajani e investigou as articulações de seu corpo em busca de danos. Ah, a ponta de lança. Ele tinha esquecido que tinha deixado aquilo alojado nele.

“Toda vez que você movia as cartas, Jhoira sabia que você estava vivo,” Ajani disse, “e não queria conversar. Ela estava determinada a dar o tempo que você precisasse, e não te pressionar. Ela sabe o quanto você fica distante quando está… chateado.”

Karn tentou resolver a ponta da lança, tentando removê-la de seu corpo. A queda das rochas a havia enfiado ainda mais fundo nele.

“Mas quando você parou de mexer nas cartas,” Ajani continuou, “ela ficou preocupada. E aqui estou eu.”

Karn grunhiu. Ele balançou a ponta da lança para frente e para trás, tentando soltá-la das placas do torso. Seus dedos contusos, embora aptos para os trabalhos mais detalhado, não conseguiam cavar fundo o suficiente. Ele ainda não conseguia acreditar que Jhoira sabia com que frequência ele olhava aquelas cartas, pensava em responder e depois as colocava de lado. Muitas vezes. “Jhoira está bem?”

“Ela está na oficina dela, na Plataforma de Mana.” Ajani deu de ombros.

“E a Bons Ventos?”

“Ela devolveu a Bons Ventos à sua legítima proprietária,” Ajani disse. “Shanna é a capitã.”

“Ah, bom. Shanna estará à altura da tarefa.” Karn havia servido com Sisay e ficou satisfeito ao ver a embarcação nas mãos de sua descendente. “Você se importa se eu…?” Ajani acenou com a cabeça para a ponta da lança.

Karn deu de ombros.

Ajani não era tão alto quanto Karn, mas era alto o suficiente para ter que curvar a cabeça para inspecionar a ponta da lança. Ele inseriu suas garras nas articulações de Karn com uma delicadeza surpreendente. “Sabe, todo planinauta passa por fases como essa. Nós nos retiramos, especialmente se tivermos desempenhado um papel na mudança do destino de um Plano. Já vi isso acontecer uma e outra vez. Depois de uma grande caçada, você come e dorme. É natural, e não há vergonha nisso.”

“Eu não como e nem durmo,” Karn disse.

“Isso não significa que você não precisa se recuperar.” Ajani tirou a ponta da lança do corpo de Karn.

Karn nunca teve permissão para se “recuperar” quando Urza o soltava como uma máquina de guerra. Urza dizia que era desnecessário e, indiferente ao cansaço de Karn, voltava sua atenção para outros projetos mais interessantes.

Ajani examinou a ponta da lança. Seu metal brilhava em um verde doentio na penumbra. “Você enfrentou mais do que um desmoronamento. O que aconteceu aqui, meu amigo?”

Karn não queria responder à pergunta — não até saber se podia confiar em Ajani. A visão que ele teve ao tocar Sheoldred ainda vibrava dentro dele – agentes phyrexianos em todos os lugares, escondidos em Dominária. Esperando. “Há quanto tempo estou enterrado?”

“Alguns meses,” Ajani admitiu. “Levou tempo para localizar você.”

Meses perdidos. Meses que poderiam ter sido usados na preparação.

As partes segmentadas de Sheoldred deslizaram por seus braços paralisados, desceram por suas costas; como aranhas, elas se derramaram sobre ele. Ela teria tido tempo suficiente para se recompor. Rona também, com certeza.

“Você se feriu.” Karn acenou para Ajani, cuja garra havia rasgado a cutícula, um ferimento que provavelmente ocorreu quando ele tirou Karn do deslizamento de rochas. “Vamos voltar ao meu acampamento para pegar suprimentos. Também preciso checar um equipamento melindroso que está lá para verificar se ainda está funcionando.”

Karn não vocalizou o que mais temia: será que ele ainda tinha o sílex e a tábua de barro?

Nos meses em que Karn esteve soterrado, seu acampamento permaneceu intacto, mas não inalterado; as pequenas tendas estavam sujas de mofo.

Ajani encolheu os ombros. Ele tinha a aversão dos planinautas a essas cavernas. Mesmo que não se pudesse sentir diretamente as tecnologias interplanares, sua maneira de deformar o tempo tornava o espaço claustrofóbico. Karn também podia sentir a pressão.

Karn conduziu Ajani por seu acampamento desordenado, depois entrou em sua tenda principal. A caixa contendo o sílex e a tábua permaneceu onde ele deixou e parecia estar trancada. Karn os ignorou, consciente dos olhos de Ajani sobre ele.

Karn localizou um barril com água — potável, embora normalmente a usasse para fins de limpeza — e um tecido. Ele entregou o retalho para Ajani, para lavar e enrolar seu ferimento.

“Por que você estava aqui, Karn?” Ajani lavou a mão, tirando a areia que se alojou em seu ferimento.

Karn fez um inventário de danos em seu equipamento enquanto respondia. “Procurando artefatos. Devido às propriedades peculiares das Cavernas de Koilos, nem mesmo os arqueólogos mais empreendedores ou pesquisadores entusiasmados as saquearam.” Ele fez o seu caminho em um circuito ao redor da tenda, em direção à caixa onde havia escondido o sílex e sua tábua. Casualmente. A caixa parecia intacta, mas não ousou abri-la. Ele estendeu a mão com seus sentidos especiais. A tábua parecia simples argila, uma combinação de alumínio, silício, magnésio, sódio e outros oligoelementos. O sílex zumbiu para ele: presente, mas indecifrável devido à sua poderosa magia.

Karn colocou a caixa de lado. Ele encarou Ajani e relatou tudo o que tinha visto.

“Sheoldred escapou?” Ajani andava de um lado para o outro nos limites da tenda. “Karn, devemos avisar-”

“Eu tentei,” Karn disse. “Muitas vezes.”

“Então você viu Sheoldred.”

Karn desejou poder confiar em Ajani, mas balançou a cabeça. “As cavernas onde descobri a base phyrexiana não são mais acessíveis. Não tenho provas de que os phyrexianos voltaram para Dominária.”

“Não temos?” Ajani estendeu a ponta de lança. “Karn, há uma cúpula de paz entre os keldonianos e os benalianos. Se alguma nação vai levar a sério o retorno phyrexiano, são essas duas. Proponho que falemos com seus líderes.”

Ajani estava certo. De todas as nações em Dominária, Keld e Nova Benália eram as mais propensas a ouvir o aviso de Karn. Radha, a líder dos keldonianos, havia reforjado aquela nação robusta de guerreiros em uma força militar devastadora. Aron Capasheno liderou os cavaleiros de Nova Benália, cuja paixão pela justiça fazia cada um valer por uma dúzia de guerreiros. “Deixe-me reunir meus achados e equipamentos antes de irmos.”

Ajani bateu em um amuleto pendurado em seu cinto. “Jhoira me deu um dispositivo de convocação para a Bons Ventos antes de me enviar. Shanna vai honrá-lo.”

“A Bons Ventos pode ser um navio veloz, mas não é rápido o suficiente.” Karn empilhou vários dispositivos no baú que continha o sílex e a tábua e carregou tudo em uma mochila. “Eu proponho que transplanemos.”

Karn não sabia como os outros planinautas percebiam as Eternidades Cegas, mas para ele o espaço interminável parecia veludo amassado, seu formigamento às vezes beirando a dor. A vertigem que atravessava Karn contrastava com a sensação de que ele não estava se movendo, o que estava em desacordo com a sensação de que ele se puxava por uma corda para um destino desconhecido. Ele irrompeu por um corte sedoso no ar frio.

Karn estava até os joelhos na grama selvagem, papoulas alaranjadas e cardos de flores roxas. No interior, as fazendas pareciam jovens, terras recentemente desmatadas com campos amarelos com canola em flor. As fazendas sangravam para as montanhas, as florestas temperadas enevoadas pontuadas com prados alpinos cor de esmeralda.

Se ele fosse humano, ele teria dado uma única respiração trêmula.

Do outro lado, uma grande estátua de pedra protegia um porto marítimo cujos prédios e ruas eram esculpidos em penhascos de gesso branco. Eras atrás, uma nave portal phyrexiana deve ter decapitado a estátua, e o decrépito hulk jazia no pescoço da estátua. Coberto de madressilvas, sombreava os coloridos toldos da cidade. No centro da baía, uma ilha desgastada se projetava da água – a cabeça da estátua, agora lar de aves marinhas.

Ajani conduziu Karn por caminhos estreitos, passando por casas modestas esculpidas no gesso. Elas pareciam pequenas e bem gastas em contraste com a prefeitura recém-esculpida, que tinha dimensões grandes, mas entroncadas, janelas amplas e varandas emolduradas com colunas ornamentadas.

“Você sabe onde as negociações de paz estão ocorrendo?” Karn perguntou.

Ajani fez uma pausa e inclinou a cabeça. “Seguindo o som da discussão, suponho.”

Karn não conseguia ouvir nada. Os sentidos do leonino tinham que ser espetaculares.

Ajani conduziu Karn por uma grande, mas vazia, área de recepção, depois subiu uma escada estreita. Os corredores que ligavam os quartos pareciam claustrofóbicos, iluminados apenas por tochas. Eles empurraram portas duplas de latão para chegar em uma sala cheia de luz dominada por uma longa mesa de granito. Uma ampla varanda com vista para o mar, e um tordo-variegado macho – peito laranja com gola preta, máscara preta e gorro preto, uma bela criatura – empoleirado em sua grade.

De um lado estavam os representantes da Casa Capashena de Benália. O nobre à mesa – Aron Capasheno, um homem de meia-idade com pele ocre clara – tinha uma torre orgulhosa com sete janelas coloridas bordadas em suas sedas. Os cavaleiros dispostos atrás dele, suas armaduras de prata entalhadas com ouro, seus escudos de vitrais prontos, possuíam o mesmo motivo dourado em suas couraças.

Do outro lado estavam os grandes guerreiros keldonianos, de pele cinza com suas pesadas armaduras de couro e suas armas ainda mais pesadas. Sua senhora de guerra – Radha – sentava-se em frente ao nobre capasheno. Ela tinha a pele cor de cinza de um keldoniano, juba negra e músculos volumosos, mas as orelhas pontudas e as marcas azuis de uma elfa de Skyshroud.

Outros oficiais, liderados por um homem de Nova Argivo de pele clara e cavanhaque preto, se alinhavam nas laterais da mesa de granito de negociação entre as duas partes em conflito.

Ajani e Karn devem ter chegado quando as negociações começaram, porque apenas um momento depois, Jodah e Jaya chegaram. Jodah entrou por um portal, atravessando uma porta que sua magia cortou no ar. Seu escritório, cheio de livros e bugigangas, desapareceu quando o portal se fechou. Jaya entrou na sala, aparecendo com um flash e o cheiro de carvão.

“Já faz um tempo, idoso.” Jaya deu um abraço amigável em Jodah.

Com suas feições de menino e cabelos castanhos desgrenhados, Jodah poderia ser o neto de Jaya, mesmo sendo milhares de anos mais velho que ela. “Veio buscar a prata da família?”

“Ah, não há nada de prata aqui que eu goste o suficiente para manter – exceto meu cabelo. Eu já verifiquei seus bolsos. Pensou em começar a cultivar fiapos?”

Jodah sorriu. “Não estou preocupado. Sua língua é mais rápida que seus dedos.”

O olhar de Jaya parou sobre Karn e Ajani. “Bem, isso é uma surpresa. Vocês dois estão aqui para trabalhar nas negociações também?”

Ajani olhou para Jaya, solenemente. “Devemos falar com você sobre o que Karn viu nas Cavernas de Koilos. Os phyrexianos voltaram para Dominária.”

A conversa fiada na mesa de negociação se transformou em um silêncio estupefato. Jodah e Jaya trocaram olhares, então voltaram sua atenção para Karn. Os keldonianos, benalianos e argivianos começaram a discutir, os dialetos e sotaques sobrepostos transformando seus medos em murmúrios. Apenas os cavaleiros benalianos permaneceram em seus postos, sua postura rígida era uma prova de sua disciplina.

Jaya empalideceu. “Não consigo acreditar.”

“Andei neste Plano por milênios,” Jodah disse, “e li as histórias, examinei as histórias. Visitei as ruínas: te digo isso não para me gabar, mas para que você saiba que falo a verdade – os phyrexianos não podem atravessar as Eternidades Cegas.”

“Sheoldred viajou entre os Planos-” Karn disse.

“Apenas planinautas podem fazer isso agora.” Jodah beliscou a ponte do nariz. “Se eu me lembro bem, Karn, essa é uma realidade que você ajudou a introduzir.” Sua idade — semelhante à de Urza, quando Urza criou Karn — substituiu suas feições jovens com exaustão. Karn não podia acreditar que Jodah duvidaria da verdade, não depois de Karn ter visto Sheoldred. Talvez a maioria dos phyrexianos não pudesse sobreviver à jornada pelas Eternidades Cegas, mas Sheoldred sim: mesmo que ela tivesse queimado seus materiais orgânicos, mesmo que a tivesse danificado e enfraquecido, de alguma forma ela conseguiu.

Aron Capasheno se levantou e começou a andar. Ele parecia agitado. “Os phyrexianos são antigas histórias. Não consigo ver o que você teria a ganhar afirmando isso.”

“Eu localizei uma base para uma nova invasão”, Karn disse, “liderada por um dos líderes de Nova Phyrexia, uma pretora chamada Sheoldred. A Sociedade de Mishra a serve, e os phyrexianos estão completando dezenas de cidadãos comuns. Não temos como saber quantos phyrexianos estão estacionados pelas nações de Dominária. Eles podem inclusive estar entre nós.”

“Eu não avisei a vocês sobre isso?” O jovem nobre de Nova Argivo levantou-se. Considerando sua elegância bordada a ouro e forrada de pele, ele tinha que ser um oficial importante. “Agentes adormecidos phyrexianos irão permear todas as camadas da sociedade se não agirmos agora. Pelo que sabemos, eles já agiram!”

Arte de Mila Pesic

“Stenn, suas tendências alarmistas não estão ajudando,” Jodah disse. “Karn, onde estão os phyrexianos agora?”

O tordo-variegado fixou um olho brilhante nele como se estivesse curioso sobre sua resposta.

Karn não teve uma resposta. “Eles evacuaram enquanto eu estava incapacitado. Eu não sei.”

Jodah suspirou. “A situação diplomática está muito sensível para interromper as negociações agora. Se você soubesse onde eles estavam, isso seria um assunto diferente, mas sem informações mais fortes, como uma localização, como poderíamos agir para erradicá-los?”

“E mesmo se os phyrexianos estivessem em Dominária,” Jaya disse, “historicamente eles se dividiram antes de conquistarem. Se deixarmos este conflito entre Benália e os keldonianos sem solução, nós estaríamos jogando o jogo deles.”

O tordo saltitou ao longo do parapeito.

“Karn, você está me ouvindo?” Jodah perguntou.

Karn voltou sua atenção para Jodah. Ele colocou a ponta da lança sobre a mesa. “Estou.”

“Eu já vi armas da Sociedade de Mishra antes,” Jodah disse, suavemente.

“Quando foi que Karn mentiu?” Ajani rosnou. “Se ele diz que viu Sheoldred completando pessoas, então estamos em perigo.”

“Eu acredito em você,” Aron disse. “Mas eu não posso mandar meus soldados perseguir sussurros e rumores por Dominária. Entre as hostilidades com os keldonianos e lutar contra o ressurgimento da Cabala, eu não tenho combatentes.”

“As tropas dele têm os mesmos objetivos que as minhas.” Radha riu, um latido curto. “Acho que encontramos algo em comum em relação a isso.”

Jodah olhou entre Radha e Aron. “Os phyrexianos não são uma ameaça há séculos. Eu sei que sua memória é longa, Karn. Assim como a minha. Se abordarmos a questão de hoje – o conflito entre os capashenos e os keldonianos – podemos discutir a redistribuição desses mesmos soldados para lutar contra os phyrexianos.”

Tantas pessoas gritaram no covil de Sheoldred, suas vozes finas e sua dor aguda sob as orações extasiantes para sua glória. “E as vidas que Sheoldred está tirando agora?”

Jodah colocou a mão no ombro de Karn. “Talvez não estamos falando de algo tão grandioso quanto uma invasão interplanar, mas vidas estão sendo perdidas nesse conflito. Elas também importam.”

“Nós iremos com você, Karn,” Jaya disse. “Vamos procurá-los. Mas agora? Vamos nos concentrar na tarefa que temos em mãos.”

Karn podia sentir a atenção da sala voltando para a mesa e as negociações.

O tordo voou para longe.

“Stenn,” Jaya disse, “peça a alguém que mostre a Karn e Ajani os aposentos dos hóspedes.”

O quarto de Karn era simples, com móveis básicos, mas bem trabalhados: uma cama, uma mesa grande com duas cadeiras e um lavatório com uma bacia de porcelana. Karn empurrou a cama para um lado e moveu a mesa para o centro do quarto. Ele descarregou sua mochila, tomando cuidado para garantir que o sílex, ainda em sua caixa, estivesse seguro.

“O argumento mais coerente que Jodah e Jaya tiveram contra nos ajudar,” Karn disse, “foi que não sabemos onde estão os phyrexianos. Se pudermos determinar sua localização, poderemos persuadir Jodah e Jaya a ajudar.”

“E talvez os outros também.” Ajani fez uma pausa, seu corpo poderoso enrolado. “Como?”

“Um dispositivo de clarividência.” Karn levantou a mão acima do tampo da mesa. Ele gerou primeiro o plano de visão, uma folha de cobre coberta de cristal. Ele encheu a estreita camada entre os dois materiais com líquido. O resto do dispositivo, uma complexa montagem de peças mecânicas, exigia sua concentração. Seu corpo zumbiu com a magia que o percorreu.

Ajani o observou, o azul pálido de seu olho sem cicatrizes atento. “O que é isso?”

“É para visualizar locais remotos.” Karn deixou o orgulho penetrar em sua voz. Ele mesmo havia desenvolvido o design daquilo e não conhecia nenhum outro dispositivo que pudesse funcionar de forma semelhante. Karn se concentrou em Jhoira. Não no rosto dela. Nem em sua presença física, mas em sua essência, as qualidades que a tornavam Jhoira. Como ela sempre via através das circunstâncias de uma pessoa a sua essência. Como ela estava disposta a dar a todos o benefício da dúvida.

A Plataforma de Mana ficou à mostra dentro do cristal. A princípio difusa, a imagem se encheu de profundidade, depois de cor. Encostada na beira de um penhasco no deserto brutal de Shiv, a estrutura metálica tinha o tamanho e a complexidade de uma pequena cidade. A imagem se comprimiu em um único local, uma oficina com Jhoira dentro. Ela estava sentada em uma bancada de trabalho, com a cabeça baixa, cabelos cor de bronze presos e caindo pelas costas. Ela girou um botão desconectado para frente e para trás como se estivesse pensando.

“Você consegue enxergar Sheoldred?” Ajani perguntou.

Muito facilmente Karn podia visualizar Sheoldred: seu torso humanoide saindo de seu corpo de escorpião; a voz dela, íntima e ressonante dentro de sua cabeça. Karntantos planos.

A imagem clarividente se dissolveu em névoa. Karn se inclinou sobre os calcanhares. Ajani olhou para Karn. “Eles devem ter proteções para nos impedir de observá-los.”

“Uma precaução sensata.” Infelizmente.

Ajani tirou do cinto o amuleto que poderia invocar a Bons Ventos. Ele o colocou na palma da mão de Karn. “Você vai precisar disso.”

Karn examinou o amuleto. Parecia um dispositivo simples. “Eu consigo duplicar isso.”

Ajani sorriu, os lábios fechados. “Melhor ainda.”

Karn estendeu seus sentidos para o amuleto. Ele o reproduziu, o metal se enrolando na ponta dos dedos para formar um amuleto idêntico. Ajani prendeu o original em seu cinto enquanto Karn fabricava uma corrente para sua cópia. Karn pendurou o amuleto em seu pescoço, sentindo-se estranho com o adorno. Normalmente ele evitava essas coisas.

Um tordo-variegado empoleirou-se no parapeito da janela de Karn, atrás do ombro de Ajani.

Se Karn pudesse atrair os phyrexianos, não precisaria encontrá-los. Ele saberia onde eles estavam. Os phyrexianos queriam neutralizar as armas mais poderosas de Dominária. Isso incluía o sílex. Ele usaria as notícias de sua presença para atraí-los para o campo aberto. Mas primeiro ele teria que esconder o sílex em algum lugar seguro.

“Talvez se pudéssemos falar com Jaya a sós,” Ajani sugeriu, “poderíamos convencê-la. Ela não é apaixonada por diplomacia.”

Karn olhou para o tordo-variegado, tão quieto, tão atento. “Talvez.”

Arte de Allen Williams

Karn deixou-se envolver nas negociações. Stenn estava colocando um tinteiro na mesa de granito enquanto Jodah e Jaya davam canetas de pena para Radha e Aron Capasheno. Ele não quis interromper antes que eles assinassem. A brisa do mar derramou-se sobre a varanda, fresca com a chegada da primavera.

“Você é uma líder impressionante,” Aron disse. “Estou orgulhoso de entrar nesta nova era com você.”

Radha sorriu. “Você gosta de falar bonito.”

“E você gosta de ser confundida com uma brutamonte,” Aron Capashen disse. “Qualquer um que supor que você é uma simples guerreira deve se arrepender em breve.”

Jodah sorriu. “Radha, Aron levará este acordo para as outras casas para ser ratificado. Vou acompanhá-lo para garantir que este processo seja concluído nos próximos meses, durante os quais todas as hostilidades nas Colinas Gélidas cessarão.”

Radha levantou as mãos, concedendo. “Sim, sim. Não pode mais ter guerra nos locais sagrados, não importa quais artefatos possam conter.”

Uma brisa agitou o quarto quando uma gota de luz azul-clara se formou no ar. A luz estendeu-se em um disco que iluminou em azul quando Teferi passou pelo vórtice. Ele envelheceu bem: seus ombros se alargaram com a meia-idade, fios de cabelos grisalhos em seu cabelo, e sua pele amarronzada tinha o rubor quente da saúde.

“Outro planinauta?” Aron recostou-se na cadeira, exasperado.

“Deve ser um sinal de tempos interessantes,” Radha disse.

Jodah se levantou. “O que aconteceu?”

“São os phyrexianos – eles estavam em Kamigawa.” Teferi fechou os olhos e balançou a cabeça. “Considerando o que Kaya me contou sobre o que ela viu em Kaldheim-”

“Eles podem viajar entre os Planos,” Jaya disse, os lábios apertados.

Depois de um momento, Jodah disse: “Isso é no mínimo alarmante.”

Karn não havia explicado isso para Jaya e para Jodah? Ele tinha visto isso, com seus próprios olhos. Ele sentiu o toque de Sheoldred em seu corpo, em sua mente. No entanto, Teferi havia chegado, trazendo notícias de segunda mão, e Jodah e Jaya acreditaram em suas afirmações? Onde estavam os pedidos de “prova de localização” agora?

Karn poderia muito bem ter sido uma estátua por toda a consideração que lhe deram. E a ameaça sobre a qual Teferi os havia alertado não estava nem em Dominária.

Mas nada disso importava. Apenas um fato permanecia relevante: “Se os Phyrexianos viajaram entre vários planos, então seus planos de invasão são muito mais difundidos e bem coordenados do que prevíamos.”

Radha ficou tensa. “Então temos que lutar.”

Aron balançou a cabeça. Seus cavaleiros pareciam inquietos, as mãos se movendo em direção às espadas como se esperassem entrar em ação. “Eu nunca pensei que viveria para ver outra invasão phyrexiana.”

“O verdadeiro Crepúsculo chegou,” um dos guerreiros de Radha assobiou. “Como podemos lutar contra essas criaturas?”

“Por pior que seja,” Stenn disse, “o que virá é pior.”

Jodah deu a Jaya sua expressão mais calma de “me ajude”. Jaya agitou a mão para Karn e Ajani, como se estivesse pedindo que removessem Teferi, a origem dessa interrupção. Radha e Aron não assinaram — e isso fez parecer que não assinariam. Jodah parecia ter mordido um pedaço de alumínio carregado.

“Tenho a sensação de que meu timing foi menos que perfeito,” Teferi disse.

“Não diga,” Jaya disse, e deu-lhes um olhar sério.

“Eu não tenho certeza sobre esta cláusula de proteção mútua-” Aron começou.

“Deve ser melhor para cuidar de nossas praias, dos nossos povos-” Radha disse.

Karn conduziu Teferi até a porta. Teferi o deixou.

Como transplanar havia esgotado Teferi; Karn e Ajani o levaram para a suíte adjacente à deles.

Lá fora, a chuva da primavera batia contra o penhasco. O alecrim que crescia nas rachaduras da pedra perfumava o ar que flutuava pelas janelas sem vidro. O cheiro de alecrim agradou a Karn porque ele gostou? Ou porque Urza o projetou para gostar? Karn nunca saberia.

Teferi sempre fez Karn considerar suas origens. Nem sempre confortavelmente.

“Como está Niambi?” Karn perguntou.

“Ela está prestando assistência médica às tribos nômades de Jamuraa.” O orgulho de Teferi por sua filha irradiava dele. “E Jhoira?”

“Eu não falo com Jhoira há algum tempo.” Karn desejou que Urza tivesse feito seu rosto com a mobilidade de um humano e sua sutileza em microexpressões para que fosse mais fácil para ele sinalizar para Teferi que ele não queria falar sobre isso.

Ajani olhou entre Teferi e Karn como se o silêncio constrangedor que se estendeu entre eles fosse visível, um pedaço de corda apertado o suficiente para vibrar. “Algo mais está incomodando vocês.”

“Eu não queria dizer isso na frente dos keldonianos e benalianos,” Teferi admitiu, “mas eles levaram Tamiyo. Até mesmo planinautas podem ser vulneráveis a eles agora… Nós esperamos demais, Ajani.”

Ajani congelou, evidente choque em seu rosto. “Tamiyo?”

Teferi assentiu cansado. “Nós podemos discutir isso depois que eu descansar um pouco.”

Karn observou as mãos de Ajani se fecharem em punhos apertados, raiva e tristeza cruzando o rosto de seu amigo. Ele não sabia que eles eram próximos.

“Eu deveria descansar também,” disse o leonino depois de um momento.

Karn aceitou isso como sua deixa para partir. De volta ao seu quarto, ele abriu a caixa com o sílex e a tábua. Ele removeu a tábua, trancou a caixa e a colocou sobre a mesa. Ele manteria isso aqui, para pesquisá-lo. Mas o sílex – aquilo ele precisava para realocar.

Em algum lugar seguro. E ele sabia exatamente o lugar.

Karn pressionou as palmas das mãos no cobre coberto do cristal de clarividência. A imagem de Jhoira apareceu. Ela não estava mais em sua oficina, mas dormindo, seu rosto apertado em seu travesseiro, seu cabelo castanho avermelhado em uma trança bagunçada sobre uma bochecha. Karn deixou sua imagem desaparecer.

Fugir dos guardas da Baía das Ostras foi simples: as pessoas ali podem ter sido grandes piratas, mas não adotaram a banalidade do serviço de guarda. Karn, grande nas sombras, evitou qualquer luz que brilhasse em seu corpo. Ele deslizou pelas ruas entalhadas da cidade, mantendo-se na escuridão, subindo e descendo até o topo do penhasco.

Ele caminhou ao longo da espinha dorsal da nave portal phyrexiana, o metal degradado suavizado com flores silvestres como ásteres roxas e varas-de-ouro, em direção a uma colina coberta de jovens bordos de videira. Samambaias farfalharam nos tornozelos de Karn, e o ar úmido se condensou em seu corpo.

Agora a uma distância suficiente para evitar mexer nos sentidos de Jaya e Jodah, Karn atravessou as Eternidades Cegas, rasgando uma ferida nela. As bordas vibraram contra seu corpo. Ele passou por ela para Shiv e a Plataforma de Mana, direto para a oficina de Jhoira. Estava um silêncio sufocante, como se todos os instrumentos nela estivessem esperando que Jhoira acordasse.

Karn localizou um armário de suprimentos. Ele guardou o sílex e sua caixa na prateleira mais baixa atrás de canos cuja poeira informava que Jhoira não precisou deles recentemente. Ele gerou dois dispositivos: um alarme que registraria se os canos se movessem e outro alarme sensível ao peso que o informaria se alguém movesse a caixa. Pronto. O sílex estava seguro. Ou tão seguro quanto poderia estar. Karn voltou para as Eternidades Cegas.

Arte de Adam Paquette

De volta à floresta, Karn desceu a colina em direção à Baía das Ostras. Uma luz cintilou entre os finos troncos dos eucaliptos. A silhueta de uma pessoa segurava uma lâmpada no alto. Karn fez uma pausa, mas a lâmpada brilhou em seu corpo. Ele fora avistado. A figura se aproximou. Stenn, o nobre de Nova Argivo da mesa de negociação.

Um noitibó cantou, seu gorjeio baixo viajando entre as árvores.

E se suas precauções não tivessem sido suficientes?

“Saiu para uma caminhada?” Stenn iniciou.

“Sim,” Karn disse. “Eu não durmo. Você está acordado até tarde?”

“Não, acordo cedo.” À medida que Stenn se aproximava, suas feições ficaram mais claras. A barba estava aparada e o cabelo arrumado. “A madrugada é a única hora em que me sinto realmente seguro. Em paz. Com o cheiro de pão assando flutuando sobre a cidade, com os cidadãos começando a acordar, posso imaginar que não estamos em guerra.”

A manhã começara a clarear o céu. O ar tinha gosto de orvalho e canela.

“Eu ouvi os outros planinautas dizerem que você é imune à influência phyrexiana?”

“Sim.”

“Isso significa que você pode ser o único planinauta em quem se pode confiar.” O manto de zibelina de Stenn com gotas de orvalho. “Você não é o único que pode ler os sinais de invasão. O rei Darien me encarregou de descobrir os agentes phyrexianos. Obviamente, isso não é de conhecimento geral.”

“O que você vai fazer depois de descobrir os agentes?” Karin perguntou.

“O que deve ser feito,” Stenn disse. “A única coisa que pode ser feita. Assim que alguém está completado – eles estão perdidos, não importa se eles saibam ou não.”

“Eles não se reconhecem?”

“Não,” Stenn disse. “Acho que eles são mais úteis para os phyrexianos – e mais difíceis de serem descobertos – se eles mesmos não souberem.”

Fazia sentido que aqueles forçados a agir contra seus próprios interesses, suas famílias e seu próprio Plano fossem mantidos indiferentes às suas próprias ações. Os phyrexianos deviam ter inserido esses agentes adormecidos desconhecidos em todos os lugares. No entanto, matar essas pessoas, pessoas que já haviam sido tão injustiçadas… O Rei Darien deve ter escolhido Stenn por sua crueldade.

“Você já capturou algum agente assim?” Karn perguntou.

“Não, ainda não.” Stenn olhou para o mar de vidro ao amanhecer. Barcos de pesca deslizavam ao longo das ondas, velas marrons rufando. “As notícias de Teferi os assustaram.”

Karin assentiu. “Eles deveriam estar assustados. Você acha que Benália e Keld vão se unir?”

“Não sei,” Stenn admitiu, “mas posso te prometer uma coisa: Novo Argivo se mobilizará. Estaremos com você na defesa de Dominária.”

Karn assentiu, aliviado por alguém o ter considerado uma fonte confiável. Ele havia encontrado seu primeiro aliado disposto a fornecer apoio militar. “Podemos discutir os detalhes mais tarde.”

Na cidade, poucos pareciam acordados – apenas padeiros colocando pães fermentados em fornos e crianças ordenhando cabras e alimentando galinhas. Às vezes, Karn imaginava suas dores: perder um galo de estimação na mesa de jantar, derramar um balde de leite muito necessário. Muito depois dessas pessoas morrerem, Karn continuaria a refletir sobre suas vidas.

Ele se sentia velho. Velho e cansado. E a bela brevidade das crianças parecia uma tragédia insuportável nesta manhã calma.

Quando Karn chegou à prefeitura, Ajani estava acordado, andando de um lado para o outro entre as fileiras de videiras de glicínias. Ajani fez uma pausa, seu corpo tremendo de tensão, e sua cauda chicoteou uma vez. Karn suspeitou que isso não fosse um gesto voluntário. Ele tinha visto como o leonino parecia sufocar seus maneirismos não humanos quando estava perto de humanos. O olho azul de Ajani captou a luz na penumbra, a pupila brilhando com o verde de um predador.

“Karn. Você acha que os humanos já estão acordados?” Ajani perguntou. “Jodah e Jaya vão se sentar com os representantes na mesa de negociação mais uma vez hoje.”

Karn não tinha paciência sobre Jodah continuar a priorizar esse pequeno conflito humano diante da ameaça phyrexiana. “Alguns já. Encontrei Stenn esta manhã, e ele se comprometeu com as forças de Novo Argivo.”

“Então vamos falar com Jaya,” Ajani disse, “antes das negociações recomeçarem.”

“Vocês dois seriam muito mais solidários comigo se tivessem ouvido falar dessa substância chamada ‘cafeína,’” Jaya murmurou.

“Já ouvi falar dela,” Karn disse.

“É perversa,” Ajani disse.

Teferi entrou no quarto e abriu as portas da varanda. A brisa fria do mar refrescou o quarto, trazendo consigo o canto dos pássaros da primavera. Uma gaivota pousou na varanda e inclinou a cabeça, olhando para o pão de Teferi de forma interessada. Um tordo-variegado pousou na grade, depois pulou ao longo dela. Será que era o mesmo pássaro de ontem? Como poderia um pássaro tão tímido da floresta, com seu peito laranja, tolerar uma gaivota?

“Não é importante quem pode cobrar quais impostos em qual fronteira,” Ajani disse. “Devemos priorizar a luta contra os phyrexianos.”

“Correto.” Karn olhou para o tordo. “E manter o sílex longe das mãos dos phyrexianos.”

“O sílex?” Ajani começou. “Você está com isso?”

“Eu tinha,” Karn disse, “já que planejava usá-lo em Nova Phyrexia e erradicar a ameaça phyrexiana em sua fonte assim que determinasse seu funcionamento.”

“Karn, nós concordamos em lidar com isso juntos. Você não pode ir lá sozinho,” disse Teferi, sério.

“Você mesmo disse que esperamos demais. Todos vocês me prometeram ajuda, e então me disseram para ser paciente. Não vou esperar mais,” disse Karn.

O tordo nem fingia bicar migalhas invisíveis.

Karn agarrou o pássaro. “Eu sei o que você é.”

“Karn—” Jaya disse.

O peito do pássaro se abriu e os fios se soltaram. Cabos, escorregadios pelo sangue e lodo, enrolaram-se na cabeça de Karn. Gosma escorregou por sua pele e uma boca no centro do tentáculo vasculhou a bochecha de Karn procurando por algo, seus dentes raspando o metal liso. Karn reajustou seu aperto ao redor do corpo escorregadio da criatura, tentando puxá-lo de seu rosto. Mas seus fios estavam enrolados em volta de sua cabeça, prendendo-se em um emaranhado espesso na nuca. Os dentes da criatura prenderam-se no lábio de Karn. Ela espetou protuberâncias como agulhas nele, como se quisesse injetar alguma substância nele, e as agulhas se partiram.

“Está muito perto de Karn,” Jaya gritou. “Eu não posso explodi-lo.”

“Deixe que eu…” Ajani disse.

Lodo se desprendeu da criatura e chiou na pele de Karn, corroendo seu metal. Doeu. A criatura serpenteou seus tentáculos entre as articulações do pescoço de Karn e ao redor de seu colarinho, como se tentasse separá-lo. Karn grunhiu e apertou os dedos entre o corpo escorregadio da criatura e seu rosto. Ele a forçou para longe dele, arremessando-a através da sala até bater contra a parede oposta e deslizar. A criatura rastejou em direção à porta.

Teferi ergueu as mãos, desacelerando a criatura dentro de um campo nebuloso para evitar sua fuga rápida. Ajani avançou e perfurou a criatura com suas garras, prendendo-a no chão. Ela gritou e se contorceu. Ácido jorrou da ferida.

Karn, com o rosto ainda fumegante pelo lodo corrosivo da criatura, estendeu as duas mãos, uma sobre a outra. Ele gerou uma gaiola de pássaros, construindo-a para cima até que as barras se unissem em uma cúpula. Ajani arrancou a monstruosidade do chão e a jogou na jaula.

Ela sacudiu as barras, guinchando.

Jaya cruzou os braços. “Parece que Jodah tem coisas maiores com que se preocupar do que impostos.”

Karn colocou o pássaro phyrexiano na mesa de negociação de granito. Jodah se inclinou em direção a ela, seus olhos se arregalando. A criatura na jaula sibilou para ele. Aron Capasheno parecia enojado. Seus cavaleiros de Benália não haviam se movido, sua disciplina era rígida. Radha olhou para ele, os olhos brilhando. Seus guerreiros começaram a murmurar orações. Os lábios de Stenn se contraíram de satisfação pois seu ponto estava definido.

“Eles estão aqui,” Jodah murmurou. “Entre nós.”

“Eu te disse…” Stenn disse.

Três dos cavaleiros de Benália estouraram de suas armaduras. Seus olhos se explodiram em uma chuva de óleo preto brilhante e suas mandíbulas se distenderam, dentes de metal emergindo de sua carne para cravar suas mandíbulas escancaradas. Fibras metálicas se contorciam por entre as aberturas de sua armadura. Uma das criaturas girou em direção à mesa de granito, suas mãos com garras unidas em um punho duplo. Ela bateu as mãos na mesa de granito, partindo-a em duas.

“As negociações estão encerradas,” disse.

Seu companheiro agarrou Aron com seus tentáculos contorcidos, envolvendo-o como uma aranha faria com uma mosca.

Karn avançou, Teferi e Ajani flanqueando-o. Jaya ergueu as mãos, convocando fogo em suas palmas. Jodah reuniu energia, distorcendo o ar ao seu redor com fitas coloridas, e então as solidificou em um campo de força para proteger os soldados benalianos inalterados dos phyrexianos.

Arte de Dominik Mayer

“Por Gerrard,” uma mulher gritou, levantando sua espada. Ela se esquivou da barreira de Jodah para atacar seus ex-companheiros. O cavaleiro phyrexiano evitou seu golpe dividindo-se em dois: separou-se em dois pedaços carnosos, pernas brotando do que antes eram órgãos internos. Ambas as metades atacaram.

“O primeiro vento da ascensão é o Forjador,” Radha chamou, voltando as costas para a porta. Ela – assim como Aron – veio para a mesa de negociação desarmada.

“Queimem a impureza!” Seus guerreiros gritaram, formando-se ao redor dela para protegê-la. Eles lutaram contra os tentáculos que chegavam para agarrá-la, cortando os membros dos phyrexianos. Mas qualquer apêndice que atingisse o chão parecia ganhar vida própria, criando pernas e dentes, contorcendo-se em direção aos keldonianos em retirada.

Os argivianos recuaram, juntando-se aos keldonianos, lutando com seus floretes, as armas de nobres que nunca tinham visto uma batalha e nunca esperavam ver. O próprio Stenn empunhava apenas uma adaga. Separado de seu povo, ele recuou entre os cacos da mesa quebrada até alcançar a coroa de chamas protetoras de Jaya. Karn quase alcançou Aron.

O phyrexiano que o segurava soltou uma risada baixa como uma válvula de vapor se abrindo. Ele rolou seu corpo em torno de Aron e saltou para uma varanda vizinha. Ajani rosnou de frustração e se lançou atrás dele.

Ajani! Karn não podia segui-los — as sacadas quebrariam sob seu peso se ele tentasse pular atrás dos pés leves de Ajani. Karn emitiu um barulho, baixo em seu peito, com frustração, e deu um passo para trás. Teferi xingou.

“Eu não consigo pular essa distância,” Teferi disse.

Os keldonianos chegaram à porta.

“Eu não quero deixá-lo, Arquimago,” Radha gritou. “Keld está ao lado de Dominária – pelos dominarianos. Vamos combater essa blasfêmia ao seu lado, para defender todos os povos.”

“Vá,” Jodah gritou. “Vamos lutar juntos outro dia!”

“Há muitos deles,” Karn disse. “Prenda-os neste quarto!”

Radha assentiu.

As portas duplas de latão se fecharam, trancando os planinautas e o mago na sala com os phyrexianos.

Jaya girou suas mãos para cima e ao redor, bloqueando os phyrexianos de Jodah, protegendo-o. Sua chama queimava branca com um calor violento. Karn não tinha dúvidas de que a magia de Jaya poderia derrotar até mesmo isso. Ele empurrou-se através do calor. Queimou os tentáculos que tentavam se retorcer nas articulações de seu corpo, acabando com eles.

“Por mais que eu amaria fazer isso o dia todo,” Jaya disse, jogando uma bola de fogo em um pedaço de metal e carne se contorcendo, “Jodah?”

“Eu convoquei a energia.” Os olhos de Jodah estavam brilhando com ela, sua pele incandescente. “Mas eu preciso saber para onde direcioná-lo para criar o portal. Um local seguro.”

“Argivia,” Stenn ofegou. Ele tirou um pedaço de tentáculo dele com sua lâmina e pisou nele. Sangue e óleo jorraram sob sua bota, e ele se virou para o próximo tentáculo invasor e o atravessou. “Torre de vigia de Novo Argivo.”

“É um lugar tão seguro quanto qualquer outro.” Karn recuou em direção a Jodah, Teferi ao seu lado.

O portal de Jodah surgiu atrás dele. Abriu-se como uma porta cortada no próprio ar, revelando uma pequena sala circular.

Jodah recuou através dele para sustentá-lo do outro lado.

“Eu vou segurá-los,” Jaya disse, queimando os cabos retorcidos com seu fogo. “Se você conseguir passar pelo portal, vou explodir esta sala com tanto fogo que não restará nem um único pedaço phyrexiano. Vão!””

“Meus agradecimentos,” Stenn disse. Ele retrocedeu pelo portal também.

“Os meus também,” Teferi disse, e desapareceu através do vórtice rodopiante.

Jaya sorriu em triunfo enquanto levantava as mãos em uma labareda de fogo e incendiava todo o quarto. Os gritos dos phyrexianos, úmidos e sobrenaturais, assobiaram.

Karn atravessou o portal. A magia formigou em sua pele e o engoliu, depositando-o do outro lado. Uma forma, aérea, passou por ele. Karn virou-se para procurá-la. Ele não podia ver nenhum movimento na pequena sala, exceto daqueles que chegaram com ele: Stenn, Jodah, Jaya, Teferi e ele mesmo.

Jaya, a última a atravessar o portal, juntou-se a Karn ao seu lado.

Jodah fechou o portal e desabou, caindo no chão. Transportar tantas pessoas não era tarefa fácil – mesmo para Jodah.

Todos os humanos estavam sentados no chão, suando, ofegantes e sangrando, enquanto Karn permanecia de pé. Ele procurou no quarto pela sombra bruxuleante. A sala da torre tinha pequenas janelas em arco circundando-a e estava vazia, exceto por um pedestal no centro, que parecia ter um painel de controle. Acima, uma luz dourada brilhava através de um cristal – não, não era um cristal: uma pedra de energia.

Uma sombra passou pelo rosto da pedra de energia.

“Um deles nos seguiu,” Karn disse.

“Não devemos deixá-lo escapar. Pode causar estragos na cidade.” Stenn acionou um botão no painel de controle central. A torre de vigia batia quando as engrenagens ganhavam vida. O interior das paredes ecoava com o barulho de correntes em movimento. Persianas de aço e portas blindadas se fecharam, bloqueando toda a luz. A sala instantaneamente parecia mais abafada, mais claustrofóbica. Stenn entregou a chave a Karn.

“Você é o único que é incorruptível, então é justo que você a tenha.”

Jaya bateu seu ombro no de Jodah. “Você nunca se cansa de estar certo, não é?”

“Os milênios podem passar, mas não. Não, eu não me canso.” O sorriso de Jodah desapareceu e ele se virou para Karn.

“Nada e ninguém pode sair enquanto a torre estiver trancada,” Stenn disse.

Teferi olhou para as venezianas de aço. “Devemos capturar e destruir o Phyrexian preso aqui. E devemos determinar se algum de nós foi comprometido. Precisamos saber em quem podemos confiar antes de planejar como derrotá-los.”

“Concordo,” Jodah disse.

O grupo verificou o quarto. A pequena coisa phyrexiana que veio com eles escapou da câmara. Karn supôs que deve ter se esquivado por alguma rachadura na pedra. Ele prendeu a chave na mesma corrente que usou para pendurar o clarividente e o amuleto para chamar a Bons Ventos e se virou para seus companheiros. Um frisson de desconforto percorreu seu corpo, como se uma corrente elétrica o percorresse. Jodah, Jaya, Teferi, Stenn… Como ele poderia determinar em quem poderia confiar?

Se os phyrexianos já estavam em Dominária, quem poderia ser confiável?

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