Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
EPISÓDIO 01: TRIUNFO DOS DESCARNADOS
É muito bom ser phyrexiano.
É muito bom ser Elesh Norn.
Isso sempre foi verdade, mas nunca tanto quanto agora. Três vermes – Kaya, Kaito e Tyvar, como os outros os chamavam – estão diante dela implorando por misericórdia. Ah, eles não estão fazendo isso em voz alta, mas Norn vê. Norn entende. O medo assombra seus olhos e enrijece seus corpos. Armas tremem nas mãos pálidas. Como eles estão desorientados. Se eles se submetessem, ela poderia acabar com todos os seus defeitos, mas ela sabe que eles recusariam uma oferta tão magnânima, um ato de benevolência. Não valia a pena perguntar.
Assim como os esforços deles não valem a pena.
Todos serão um. E agora não vai demorar muito.
“Fiquem do nosso lado,” ela diz a eles. “Contemplem a glória de Nova Phyrexia.”
“Vá para o inferno,” diz o menor deles. O maior se move na direção dela, mas o outro o puxa de volta. Típico. A discórdia vive no coração dos incrédulos. Mesmo quando são tão poucos, eles nunca estão realmente unidos.
Se eles conseguissem enxergar pelo menos isso.
Um mero movimento do pulso de Norn é suficiente para invocar os portais – tudo neste lugar está ligado à sua vontade. Metal clica e desliza e se reorganiza em torno deles. Cinco íris se abrem em cinco Planos alternativos. Não importa como seus céus começaram – violeta quente, cinza ardósia ou preto como carvão – agora eles pulsavam com uma luz vermelha. Símbolos phyrexianos brilhavam entre as nuvens. É por esses portais que agora ela assiste às invasões. Os enormes galhos pontiagudos da Destruidora de Reinos explodem, ancorando-se onde quiserem. Rios de óleo abençoado deságuam sobre a terra. Cápsulas voam das farpas presas, voando em todas as direções, porém sempre em perfeita sincronia. Alguns centuriões e golems procriadores e outros que aguardariam as almas perdidas que logo chegariam.
Para as três criaturas perdidas diante dela, um nascer do sol é algo belo. Phyrexia sabe melhor das coisas. Milhares de bocas falando a uma só voz; milhares de olhos com uma única visão; milhares de mentes com apenas um pensamento. Isso sim é beleza.
E eles o criaram com suas próprias mãos numerosas.
“Você já conheceu alguma unidade semelhante?” ela pergunta.
A menor abre a boca. Antes que as palavras saiam, outra voz muito mais agradável a interrompe. “Fizemos como você pediu.”
Lukka – esse é o nome dele, não é? Um dos humanos vomita ao vê-lo, mas para Phyrexia, ele é um exemplo brilhante do futuro que os espera. Ah, então ele era um pouco rústico nas extremidades. Eles suavizariam aquilo em breve. A carne treme ao ver sua própria destruição; é natural.
Norn se volta para seus evangelistas sagrados. Jace sai de fininho – ele sabe o que Norn quer, é claro, sabe antes que ela tenha que dizer alguma coisa. Mais três chegam em sincronia: Lukka, Atraxa e Ajani. Nahiri segue atrás, a membra mais nova enviada para buscar seus companheiros. Carregada como uma oferenda amarrada entre eles está a outrora poderosa Sheoldred. Fora de sua armadura, ela é patética e pequena – uma salamandra crescida que um dia sonhou com o pretorado. Toda Phyrexia sabia que ela era apenas uma pretendente ao título. Agora estava finalmente exposta.
Lukka e Ajani apresentam sua presa. Sheoldred cospe, sua saliva escura caindo bem longe do alvo. Amarrada como estava, sua tendência natural era tentar se desvencilhar. Que satisfação vê-la reduzida a isso.
“O que faremos com ela?” pergunta Ajani. Seus olhos se voltam para os prisioneiros. “Ou precisamos lidar primeiro com eles?”
Norn contempla os pequenos vermes, tão amedrontados. Eles já estavam deslizando para trás. Seus planos são tão óbvios quanto seu terror: fugir de Nova Phyrexia, contar aos outros, reunir suas escassas forças e montar um contra-ataque. Era assim que os esforços costumavam ser com os presos à carne. Aonde toda essa dificuldade os levou? Aqui no santuário interno, desesperadamente em menor número, eles ainda acham que há uma saída para isso.
É divertido — da mesma forma que a morte é divertida quando você a transcende. “Vocês não querem ir embora, não é? Phyrexia permite. Com uma condição,” ela diz. “Nahiri — algemas.”
Pedra brota do chão, envolvendo os três planinautas imperfeitos. Apenas suas cabeças permanecem livres. Não vai funcionar para sempre, Norn está bem ciente disse – ela viu a menor atravessar matéria sólida anteriormente – mas servirá ao seu propósito. E se eles cuspirem em sua benevolência, então eles mereceram seus destinos.
“Vocês serão os profetas da nossa chegada,” ela diz. “Vocês devem contar a seus irmãos incrédulos o que vocês viram: um futuro unificado.”
“Que piada,” sussurra Sheoldred. Falar força seu peito contra suas amarras. “Toda essa arrogância não vai mudar a verdade: você está apenas cuidando de si mesma, Norn. Phyrexia não significa nada para você, a menos que esteja de acordo com seus delírios ensandecidos. Você nunca se importou com a unidade, você só se importa consigo mesma.”
“Então é assim?” Norn repete. Ela bate no braço de seu trono. “As preocupações de Elesh Norn são as preocupações de Phyrexia. Os Entalhes do Argento exigem que espalhemos a glória de Nova Phyrexia, Sheoldred. Há muito tempo você tenta apodrecer nosso ensinamento sagrado por dentro – mas agora já chega. Nosso futuro é brilhante e perfeito, livre de sua mácula. Phyrexia não tem mais lugar para aqueles que almejam o poder sobre a unidade. Ajani – execute-a.”
Pela primeira vez, Sheoldred fez algo além do que sussurrar. Qualquer que fosse seu grito de protesto, ele se perdeu na rápida descida do machado. A cabeça de Sheoldred quicou até parar a seus pés, espalhando icor preto no chão de porcelana. Norn presta apenas um instante de atenção; seus servos removerão o cadáver para processamento. Não se deve desperdiçar peças perfeitamente úteis – elas servirão a Phyrexia já que Sheoldred não poderia mais. Os músculos se contraem contra a pedra quando o maior dos prisioneiros tenta se libertar. Com tempo suficiente, ele conseguirá.
Elesh Norn conta com a fuga deles. Deve haver aqueles que espalham o evangelho, afinal, e eles não podem fazê-lo daqui. Assim que eles entenderem como é inútil lutar contra o inevitável, eles podem partir.
Porém, novamente ao trabalho, de volta à invasão.
“Alegrem-se, evangelistas sagrados,” ela começa. “Nosso símbolo brilha através dos planos, nossas palavras sagradas em sua sombra. Em breve, despertaremos o Multiverso de seu sono. A gloriosa luz da completação – de Nova Phyrexia! – está próxima. Com a barreira de sua pele removida e suas mentes unidos às nossas, os outros logo conhecerão o êxtase de Phyrexia como vocês conheceram.”
Uivos agudos ressoam dentro do santuário, vindos das entranhas de Nova Phyrexia. O quão lindamente eles entoam aquilo não pode ser colocado em palavras!
Os evangelistas tentam juntar suas vozes às massas — mas são novos, suas gargantas são muito delicadas. Uma adição sem muito brilho. Um coro só é um coro se cada voz trabalhar em harmonia com as outras. A dissonância que eles causam é irritante… e decepcionante.
“Silêncio na congregação!” ela grita.
E eis que há silêncio.
“Nosso trabalho ainda não terminou. Estamos diante da glória imaculada da completação eterna; precisamos apenas dar nossos passos finais na direção dela. Por seu zeloso serviço e devoção, decidimos conceder a vocês a honra de unificar suas terras natais. Conte-nos —Nahiri, onde você nasceu?”
A kor ainda tinha muita carne, mas eles se contentaram com o que puderam fazer com o pouco tempo que tiveram. “Zendikar,” ela diz. “Muitas vidas atrás, eu nasci em Zendikar.”
Norn acena com a cabeça. “Nissa,” ela chama. “Mostre-nos este lugar.”
Nissa é o melhor presente que os planinautas deram para Phyrexia. Mesmo estando ao lado de Norn, ela pode atrair a atenção da Destruidora de Reinos. Isso sem mencionar suas habilidades de combate. Se as coisas continuassem nesse ritmo, ela poderia ultrapassar Tamiyo como a nova serva favorita de Norn – mas ainda há tempo para isso. E, na verdade, todos servem a Phyrexia do seu jeito.
Os portais mudam, juntando-se em uma longa forma oval. Imagens díspares ondulam e se transformam em algo novo, algo inteiro, algo completo. Diante deles: uma floresta ancestral, as árvores grossas como torres. O pouco que podia ser visto do céu é tão verdejante quanto as copas das árvores. Elfos se movem entre os galhos como formigas em uma colmeia, cada um deles armado, olhando para cima, esperando por algo.
Eles não percebem em quanto tempo ela os encontrará. Os galhos que eles percorrem se dobram em formas phyrexianas; buracos dentro de árvores e pedras anunciam as formas que seus corpos terão. O portal de Norn está longe de ser o único: os mil olhos de Phyrexia os encaram enquanto eles olham para cima. Nahiri rosna para Nissa. “A Mãe das Máquinas não liga para essas ninharias. Mostre a ela um dos Enclaves Celestes.” Mais uma vez, a imagem ondula. Desta vez, a copa das árvores emoldura a vista de uma cidade flutuante. Edros a cercam como as penas de um pássaro acuado. Totalmente branca contra o céu, suas bordas recortadas e precisas, Norn a acha imediatamente bonita. Talvez a curto prazo pudesse ter alguma utilidade, pelo menos.
“Você tem planos para isso?” Norn pergunta.
Nahiri assente. “Sim, Grande Pretora. Esta é uma relíquia do meu povo – uma arma antiga que usamos uma vez para dominar o Plano. Posso despertá-la novamente para decretar nossa vontade.”
Um sorriso curvou os lábios de Norn. “Você veste seu novo propósito tão bem quanto seu traje. Vá até este lugar; nossas forças a encontrarão lá.”
Nahiri não precisa de mais instruções. Em três etapas, ela desaparece da existência, o santuário ressoando com um estrondo. Norn olha para os prisioneiros novamente. Já partiram; eles devem ter cronometrado sua saída com a de Nahiri para esconder o som. Que criaturas lamentáveis, afastando-se de tamanha beleza.
“Lukka. Como você levará a glória de Phyrexia para o seu lar?”
O sangue de Sheoldred ainda manchando seu rosto e carapaça. “Ó Reverenda Mãe, eu vou levar com força total.”
“Especificamente, Lukka,” ela diz. “Que você levará com força total é um dado.”
Ele emite um grunhido; ele muda de posição de um lado para o outro. “Os monstros,” ele responde, finalmente. “Assim que eles se juntarem ao grupo, os outros se acovardarão diante de nós.”
Ela não gosta dessa resposta – ela implica que os humanos ainda não se acovardaram diante deles. Ela também não gosta da raiva latente sob a superfície, raiva que se presta a erros. A sede de sangue é muito boa em uma besta, mas em um tenente? Os planinautas iriam explorá-la. Armar uma armadilha para ele que ele não poderia ignorar. Se confrontado com a escolha de ficar para garantir a completação do Plano ou fugir para resolver uma queixa pessoal, Lukka sempre escolheria a queixa pessoal.
“Muito bem,” ela disse. “Vá para Ikoria. Adicione esses monstros às nossas fileiras. Mas entenda qual é o preço do fracasso, Lukka, e não se esqueça de seu verdadeiro lar. Você foi ungido com o óleo sagrado de Nova Phyrexia – você não é mais uma criatura de instinto primitivo, você pertence a um todo maior.”
“Para sempre reinará,” ele diz.
Sua partida é tão rápida quanto a de Nahiri e seus efeitos são palpáveis. Norn se pergunta o quão rápido tudo isso teria acontecido se Phyrexia tivesse tido a mesma habilidade.
Não, é bom que Phyrexia tenha tido que esculpir sua vitória da espinha de um Plano indiferente. Qualquer coisa menos que isso os teria feito inadequados para o trabalho.
“Grande Pretora,” diz Tamiyo.
Norn é sacudida de seus pensamentos. “Sim?”
“Ele certamente morrerá em Ikoria,” ela diz. “Um homem teimoso geralmente toma decisões precipitadas – creio que você pretenda que seja assim?”
“Se ele falhar, ele seguirá o caminho de Sheoldred, e um de vocês trará o julgamento sobre ele,” responde Norn. “Se ele for bem-sucedido, o Plano será nosso, e ele cumprirá penitência por quaisquer erros cometidos para nossa satisfação. De qualquer maneira, Phyrexia será servida.”
Tamiyo assente. “Como eu pensei. Bem pensado, como sempre.”
“A Grande Cenobita não comete erros,” diz Atraxa. Os outros não estão acostumados com a voz dela – eles a acham áspera e dolorosa, como um caco de vidro em seus tímpanos delicados. Até Ajani vacila.
Norn não erra. “De fato. Tamiyo – era Kamigawa que você chamava de lar?”
“Anteriormente, antes de eu entender a verdade das coisas,” ela diz.
“Nissa,” Norn ordena. Uma palavra é tudo o que é necessário. Mais uma vez, os portais ondulam e mudam. O Plano que os recebe brilha sob o céu noturno. Luzes artificiais iluminam uma cidade brilhante. A vista se aproxima, como se estivesse na ponta de uma flecha, e logo eles estão dentro da própria cidade, estruturas em camadas surgindo perto da costa, alcançando a escuridão acima. As pessoas que andam pelas ruas são fracas e dóceis.
Ela percebe que ninguém está em pânico. Talvez eles tenham percebido que a completação não é nada a temer – mas é mais provável que eles não saibam que ela está chegando, apesar dos portais acima. Aqui, nos momentos antes das farpas ancorarem, essas pessoas vivem suas vidas inúteis. Um homem ingerindo algum tipo de comida. Ele fala com outra pessoa situada em uma pequena barraca oferecendo mais do mesmo, fazendo-lhe uma pergunta cuja resposta logo será irrelevante. Uma mulher caminhando com dois de seus filhos. Eles estão implorando por uma porção extra do doce em sua mão. Ela arranca pedaços de cada um, ficando sem nada – um sacrifício do qual ninguém se lembrará diante do que está prestes a acontecer.
Tamiyo também assiste. Seu aperto aumenta em torno de um pergaminho enrolado em ferro. Entre os evangelistas ela é a única que não está coberta de sangue.
“Você amava Kamigawa?” Norn pergunta.
“Amava,” Tamiyo responde. “Uma terra de heróis e bandidos, traidores e campeões. Parecia haver mil possibilidades de como a vida poderia mudar no futuro. Eu queria ver todas elas. E queria descobrir, com minha família, qual era a verdadeira. Agora eu amo o que ela se tornará.”
“Sua família,” Norn repete. Ajani cruza os braços – ele está ouvindo atentamente, sabendo que também haverá perguntas para ele. “Você ainda se preocupa com sua família?”
Tamiyo observa a mulher e sua prole enquanto caminham pela rua. No alto, os primeiros fragmentos de branco aparecem. A mulher continua. Ela balança as mãos de seus filhos, ou eles balançam as dela.
Então, como se lembrasse que havia uma pergunta, ela se vira. “Quero que eles entendam o que aprendi sobre o mundo – sobre unidade. Se todos estivermos completados, nunca mais precisaremos nos separar,” ela diz.
“Você compreende,” Norn diz. “Nossa família é maior do que qualquer outra que você já conheceu. Receba a velha para a nova de braços abertos, Tamiyo.”
Não há silêncio completo no coração de metal pulsante de Phyrexia. Metal desliza sobre metal enquanto seus habitantes realizam seu grande trabalho sagrado; pistões animam seres além da compreensão humana; lâminas cortam o que é impuro. Aqui, também, eles ainda podem ouvir os sons distantes das contribuições finais de Sheoldred: o estalo da quitina, o rompimento do tendão.
No entanto, o silêncio que segue as palavras de Norn está lá do mesmo jeito. Tamiyo observa a tela e não dá nenhum sinal de ter ouvido a ordem abençoada de Norn.
A Destruidora de Reinos perfura a terra. Prédios escalonados estremecem e perdem suas camadas – andares inteiros desabam. Ao redor, os ladrilhos estão caindo como neve de porcelana recortada. Em apenas um instante, a pequena barraca de comida é esmagada. Um vermelho se derrama por baixo, juntando-se à água borbulhante.
A mãe pega os filhos, um na dobra de cada braço, e corre.
“Tamiyo,” Norn repete. Essa hesitação fica entre os dentes pontiagudos de Norn.
Um homem de preto cruza sua visão. Em uma tempestade de cortes brilhantes, os ladrilhos que caem são partidos, direcionados para longe da família.
Eles não veem mais o que acontece – Atraxa levanta vôo, bloqueando a visão com suas asas. Quando ela fala, sua voz é mais afiada do que a espada, mais afiada do que as facas invisíveis trabalhando não muito longe.
“Insolência não é tolerada aqui. Você recebeu uma ordem.”
Tamiyo começa; Ajani se encolhe. Ela se vira, piscando. “Desculpe, não faço ideia do que deu em mim…”
“Certifique-se de erradicá-lo, seja o que for,” Norn diz. “Não pode haver espaço para isso. Retorne com Kamigawa sob seu controle ou seja reciclada em algo mais adequado.”
“Como você quiser,” ela diz. A consciência deve ter voltado para ela – ela não hesita mais em sair e não olha para a imagem nem uma vez mais.
Há apenas quatro deles na sala depois que Tamiyo se foi. Nissa, de pé ao seu lado, com os olhos enevoados de verde. Ajani, que assistiu Tamiyo partir, espera por suas próximas ordens. Atraxa permanece no ar. A cada batida de suas asas, seu entusiasmo é palpável.
Mas a paciência é uma lição valiosa a ser aprendida.
“Ajani,” ela diz, e ele inclina a cabeça. “O que eu vou te pedir?”
“Para te mostrar o lugar onde nasci,” ele responde.
“Não. Seu destino é maior do que isso. Acreditamos que você sabe onde ele está.”
Não é o silêncio que se interpõe entre eles, mas a compreensão. Quando ele se volta para os espelhos, é com confiança. “Você quer voltar a Theros.”
“Certo.”
O preto cobre a superfície dos espelhos, o preto brilha, o preto reflete algo novo.
Uma cidade os encara de volta – diferente da anterior. Ondas cor de vinho batem em praias douradas; casas brancas pontilham uma paisagem verdejante. Onde Kamigawa estava envolto na noite, este lugar é brilhante sob a luz do sol. Navios flutuam sob as espadas estendidas de duas estátuas guardiãs. Em seus conveses, os pescadores se perguntam por que suas capturas se contorciam de formas estranhas. Nas encostas, astrônomos debatem o significado das aparições do portal.
É uma visão tão pacífica quanto qualquer um pode imaginar, se não olhar de perto.
O coração de Norn transborda de entusiasmo. Eles estão tão perto da perfeição, tão perto de um profundo entendimento. E ela sabe que não vai demorar: Theros está entre a primeira onda de alvos.
E parece que eles teriam uma boa perspectiva das festividades.
Começa da mesma forma que em Kamigawa: grandes galhos brancos saindo dos portais. Nenhuma árvore pode ser vista aqui, mas as raízes encontram raízes do mesmo jeito. Os casulos se desdobram antes que a árvore termine seu trabalho, tão ansiosa está Phyrexia para reivindicar este lugar. Alguns explodiram no ar, dando origem a um enxame de conversores insetoides. O vento carrega a tempestade de lâminas para o mercado. O metal brilha nos céus acima, pedaços de porcelana branca caindo na terra, cascos formando crateras nos prédios em que pousam. Mármore desmorona como areia; manchas de óleo preto escorrem sobre a brancura. Os templos trancam suas portas apenas para as máquinas de guerra de Phyrexia derrubá-las. Construtos alados devoram gado e humanos do mesmo jeito, alguns descendo nos navios para encontrar suas refeições. As redes pouco fazem para detê-los; lanças ricocheteiam em suas orgulhosas carapaças.
Phyrexia está faminta. Elesh Norn está faminta. Cada aperto de suas mandíbulas traz o gosto de sangue para sua língua – uma oferta do coro para ela. Ela está com eles, e eles estão com ela, e logo este lugar será um.
“Parece que nossas forças estão indo bem sem mim,” Ajani diz.
“Ao massacrar os fracos e capturar os úteis,” Norn diz. “Eles serão muito mais eficientes quando você estiver lá para liderá-los.”
“Você não me enviaria para lá por motivos tão triviais.”
Então ele viu mais do que deveria. Os comandantes são melhores quando são espertos, mas também quando são mais perigosos. Ser esperto é ser individual, e em Phyrexia todos são um.
Elesh Norn terá que lembrá-lo disso. Possivelmente com novas modificações.
“Theros é importante para o futuro de Nova Phyrexia.”
Como se para ajudar a deter mais perguntas, a batalha do outro lado do portal aumenta. Nissa mudou a visão para alguém parado na praia. Parcialmente submerso na água está um templo. No topo desse templo está uma mão envolta na escuridão inconstante do céu noturno, derramando rios em seus degraus. Somente quando seu observador invisível olha para cima, a imagem completa se torna clara: há algo guardando o lugar. Parte mulher e parte outra coisa. O mais estranho – e tentador – é a maneira como partes dela aparecem e desaparecem.
Uma criatura daquele tamanho poderia conquistar planos inteiros sozinha quando completada. Ainda assim, se o tamanho fosse a única coisa que interessasse a Phyrexia, Norn teria enviado alguém mais confiável para Ikoria.
Não, seja lá o que fosse aquilo, é mais do que algo enorme: é algo que Elesh Norn deseja.
“Aquilo,” ela diz, apontando com um dedo de porcelana. “Você deve trazer aquilo para dentro do abraço de Phyrexia.”
Ajani estuda a criatura. Assentindo uma vez, ele olha para Norn. Há algo como um sorriso em seu focinho quando o plano se torna aparente para ele. “Ah, agora eu entendo, são os deuses que você procura.”
Aquele é um dos deuses deles? Norn esperava mais de divindades. Não que haja alguém que possa esperar desafiar Phyrexia agora que ela tomou seu devido lugar. Embora esta criatura seja majestosa de certa forma, está longe de ser pura. A mente de Norn já pensava nas possibilidades.
“Leve sacerdotes com você,” ela diz. “Leve os Entalhes do Argento. Vamos derrotar esses deuses em todos os campos de batalha possíveis. Para aqueles sábios o suficiente para perceber a verdade do Multiverso, empreste-lhes o poder de iluminar seus antigos amigos.”
“As gravuras tornarão isso mais fácil. É a crença que cria os deuses em Theros, e não o contrário,” ele diz. “Assim que as pessoas entenderem a verdade, os deuses seguirão.” Ele olha mais uma vez por cima do ombro. A criatura – o deus – conduzia um bidente através de uma de suas naves de ataque. Na praia, os marinheiros que restam se abraçam em comemoração. Sorrisos largos irrompiam em seus rostos, contradizendo o medo que se apegava a seus olhos.
No fundo, eles sabem que não será suficiente.
E isso traz a Norn uma alegria indizível e inefável.
“Vá,” ela ordena.
Ele obedece. Ajani, sempre leal, faz como lhe foi ordenado. Enquanto ele desaparece, ela se permite um momento de orgulho por seu recrutamento e criação.
E orgulho também por ele não ter descoberto o verdadeiro motivo pelo qual ela o enviara para Theros. Aquilo era suficiente. Mesmo ignorando seu objetivo, ele o cumpriria.
Apenas Atraxa e Nissa permanecem no santuário com ela.
“Mãe das Máquinas, a maior e mais sagrada das autoridades, eu vivo para servir,” Atraxa se dispõe.
“Você não precisa perder tempo com tais ineficiências,” Norn diz. “Você está bem ciente de que há uma razão para sua missão ser a última.”
Uma leve hesitação pela represália, visível apenas para a mulher que moldou o corpo de Atraxa com as próprias mãos. Os outros poderiam reivindicar quaisquer partes que desejassem – mas Norn conhecia melhor Atraxa, e Norn tinha o seu coração. Nada restou de sua vida anterior, exceto o que a fazia perfeita. “Qualquer coisa que Nova Phyrexia me pedir será feito.”
“Nissa, anteriormente nossos missionários encalharam em um lugar chamado Capenna. Mostre-nos o que aconteceu com ele.”
Leva mais tempo para as visões diante deles mudarem. Frustrante, mas não inesperado; este não era um lugar que Nissa conhecia bem. Quando finalmente a imagem entrou em foco, eles estão olhando para um portão dourado cercado por mármore branco. Inscrições cercam a borda. Norn não consegue ler o idioma e não se importa. Não que ela fosse ler, mesmo se estivesse familiarizada com aquilo: uma névoa dourada brilhante torna todos os detalhes confusos.
Atraxa não diz nada, mas olha para Norn. Como uma salamandra escorregadia, recém-nascida.
“Nossos predecessores encontraram este plano por métodos antigos,” ela diz. “Embora estivesse espesso com um fedor sagrado, eles viram dentro dele algo valioso – algo que valia o risco que seus guardiões representavam. Por quase um ano eles vagaram, pegando o que desejavam, conduzindo pesquisas vitais sobre a população, espalhando corrupção abençoada onde quer que eles pisassem.”
“Até que algo os selou,” oferece Atraxa. Bom; ela está começando a entender por que foi escolhida para isso.
“De fato. Anjos. Falsos profetas apedrejados por sua insolência,” Norn diz. Aquelas palavras deviam ter algum peso para Atraxa. Ela as deixa ressoar antes de continuar. “Temendo a verdade que traríamos para seu povo – uma unidade que eles nunca poderiam prometer – eles ficaram desesperados. Eles desistiram de suas formas físicas para suprimir a influência de nossa embarcação. Por anos estivemos aqui, e por anos não conseguimos nada. Isso acaba agora.”
“Será feito,” diz Atraxa. “Vou libertar a embarcação—”
“A embarcação em si não nos interessa. Se eles tivessem sido fiéis, teriam triunfado. Se você descobri-la ou sua tripulação, você deve recuperá-los em busca de peças. A completação é um presente que eles não merecem mais.””
“Como quiser,” Atraxa diz.
“Nissa, mostre-nos a atrocidade que eles construíram.”
A visão muda para outro céu noturno e para a cidade brilhando abaixo dele. Não – Norn se recusa a pensar naquilo como uma cidade. A agulha imponente que alcança as estrelas é uma afronta em todos os sentidos. Mesmo sem uma névoa de ouro, fede a decadência. Onde quer que o olho alcance, há algo que assusta: conchas douradas montadas em lançadeiras verticais, uma adoração doentia de pele evidente em seus casacos e roupas, o barulho desagradável que eles chamavam de música tocada pelos indignos tubos de carne. Seu ápice é arrogância, e arrogância é o seu ápice. Tudo isso construído em corpos phyrexianos. Tudo isso para afastá-los.
“Grave isso em sua memória. Nunca esqueça o que eles fizeram conosco, o que eles construíram aqui. Os infiéis se consideram divinos, Atraxa, mas a divindade existe apenas na unidade.”
“Tudo deve ser um,” Atraxa ecoa. Pelo jeito que segura sua arma, ela tem pouco amor pela vista. “O que você quer que eu faça?”
“Ensine a essas pessoas o preço da insolência. Eles poderiam ter se juntado às nossas fileiras, anteriormente, mas não encontrarão mais nossa misericórdia. Você ceifará todos eles.”
“Assim será feito,” diz Atraxa. Com um bater de asas, ela se aproxima da ponte para a árvore, mas Norn levanta a mão para detê-la.
“Há uma outra tarefa para você,” ela diz.
Atraxa espera no ar.
Norn aponta. “Os anjos que emprestaram a este lugar sua proteção ainda o guardam até hoje – mesmo que de uma nova maneira. A névoa que vemos aqui é o que resta de suas formas etéreas. Os infiéis o chamam de Halo, e será um anátema para você. Até que você leve a torre abaixo e acorde os anjos de seu descanso, você será incapaz de escapar de sua influência. Seu dever mais sagrado neste plano é encontrar sua fonte e destruí-la.”
O queixo de Atraxa abaixa. Ela olha para os espelhos, depois para Norn. “Mãe das Máquinas, não cabe a mim questioná-la…”
“É verdade, não é,” Norn diz. “Mas sua pergunta será permitida. Fale.”
Qualquer que fosse a pergunta, Norn responderia. Atraxa já está ligada à vontade de Nova Phyrexia – em última análise, não importa qual seja a resposta de Norn, desde que haja uma.
“Se a nave está perdida há anos incontáveis e a atmosfera é venenosa, por que não deixar este lugar para os centuriões? Por que estou recebendo a tarefa?”
“As razões são três. Primeiro: é uma tarefa gloriosa, e completá-la proclama o seu valor para todos. Segundo: sua vida anterior pode lhe dar alguma proteção a este ‘Halo’.”
Não há verdadeiros silêncios dentro do santuário – mas há algo parecido enquanto Atraxa espera pelo terceiro item e Norn pensa em como expressá-lo.
“Terceiro: existe um perigo para Nova Phyrexia. Ao matar Nova Capenna, nós atingimos seu coração.”
As asas de Atraxa batem uma vez. “Este perigo – é por isso que você enviou Ajani para Theros também?”
“Astuto da sua parte,” Norn diz. “Sim. Este perigo não pode triunfar. Você e Ajani selarão nossa vitória.”
“Então tudo é para a glória dos fiéis,” Atraxa diz.
Ela sai, então. Apenas Nissa permanece – mas ela é uma companhia silenciosa. A tenente de Norn está muito preocupada em controlar o crescimento da árvore para falar com ela.
O ar não é muito silencioso no santuário.
Norn odeia isso.
Com um gesto, ela chama seus criados. Eles chegam para recitar seus próprios pensamentos e ensinamentos para ela. Em suas vozes estridentes, Elesh Norn esquece seus pesadelos – e a mulher que os espreita, vestida de branco.
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