Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

Emonberry Vermelha

Texto original
por Clayton Kroh

Não havia necessidade de incomodar o Agente por causa disso; isso requeria apenas as tesouras de Adrastéia. Que vergonha, ela pensou, e suspirou pesadamente. As duas irmãs, uma na extremidade da enorme e antiga mesa de carvalho, a outra no meio do caminho entre as duas, pararam o trabalho em uma grande tapeçaria espalhada entre elas e olharam para cima.

Dois fios, um azul, o outro dourado, que haviam começado seu caminho pela tapeçaria paralelamente, tinham se entrelaçado. Isso acontecia o tempo todo, e cada vez era um novo emaranhamento, às vezes bonito, às vezes trágico, às vezes ambos. Tal beleza podia ser encontrada na tragédia, entretanto Adrastéia não se deixou influenciar por aquilo que testemunhara entre os fios da tapeçaria. Ela devia considerar o bem-estar do todo. Esses dois fios em particular haviam, de fato, criado um belo padrão ao enrolarem-se um no outro, cercados por todos os lados por fios de tons mais escuros, em padrões que pareciam ter a intenção de separar o azul do dourado.

A trama formada por esses dois era pouco convencional, tão singular em sua expressão que até mesmo Adrastéia, cuja indiferença e eficiência eram renomadas, permitiu-se um momento mais longo de apreciação. O momento passou, e era hora de começar a trabalhar com suas tesouras no emaranhado de fios que tinha se formado.

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Pavios ficou acordado em seu quarto escuro. Heliode havia há muito tempo cavalgado para baixo do horizonte. Apesar de um dia cansativo caminhando pelo que certamente devia ter sido cada avenida e beco da pólis de Ácros atrás de seu pai – que insistiu em apresentá-lo a uma lista interminável de oficiais do governo e diplomatas, banqueiros e empresários – Pavios não conseguia dormir. Ele pensava apenas em Thanasis, que estava do outro lado da parede atrás de sua cabeça. Perguntou-se se Thanasis tinha lido a nota que Pavios deixara para ele, e se havia encontrado o presente que ocultara mais cedo, atrás de suas casas adjacentes, debaixo da pilha de carvão que o pai de Thanasis usava em sua forja.

 

Templo da Iluminação | Arte de Svetlin Velinov

 

Um nó apertava a garganta de Pavios quanto mais ele pensava em não ver Thanasis novamente. Em apenas dois dias, o pai de Pavios planejava enviá-lo de volta a Meletis para se casar com a filha de um oficial proeminente – uma menina doce, mas desinteressante, cujo rosto suave brilhava perpetuamente limpo e rosado, como se ela o esfregasse a cada hora. O pai da menina tinha presenteado Pavios com uma fina espada curta para selar o contrato entre as duas famílias. Ele permanecera imóvel, incapaz de se mover para pegar a espada. Seus braços pareciam pesados demais. A espada poderia muito bem ser uma algema vinculando-o a esta menina e os projetos políticos de seus pais. Seu pai avançou rapidamente e aceitou o presente em nome de Pavios. Estava feito.

Em dois dias, ele nunca veria Thanasis novamente, e esse pensamento fez com que dormir parecesse um desperdício do precioso tempo.

Tornou-se muito difícil se comunicar com Thanasis, e fazê-lo saber onde procurar o presente não tinha sido fácil. Embora vivessem próximos um ao outro, separados por aquela simples parede de alvenaria, seus pais não eram amigos, e eles também poderiam ter vivido em lados opostos de Ácros. Os pais das duas famílias evitavam qualquer interação um com o outro. O pai de Pavios era um embaixador de Meletis, e os dois tinham se mudado para Ácros seis meses antes. Não era uma nomeação que o pai de Pavios desejava, e mudar-se para ocupar um posto em Ácros era para ele um rebaixamento que o deixou em um mau humor contínuo. Depois de se mudarem para esta casa ao lado do ferreiro, não demorou muito para os dois pais discutirem, e assim Pavios ficou proibido de se associar ao quieto e bonito filho do ferreiro.

Enquanto Pavios se agitava no escuro, ocorreu-lhe que ele não sabia se Thanasis sabia ler. Ele a assumira que sim quando, cedo naquela manhã, roubara um pedaço de pergaminho, um pote de tinta e uma pena do escritório de seu pai antes de ele levá-lo em seu tour político pela pólis. O trajeto levou-os perto o suficiente de sua nova casa para justificar uma parada lá para um almoço rápido. Pavios entrou em seu quarto e rapidamente escreveu uma nota dizendo a Thanasis que procurasse na pilha de carvão. Enfiou a nota na camisa e se reuniu ao pai na mesa. Comeu um biscoito rapidamente, mas manteve-se vigiando pela janela a forja do outro lado da rua.

Thanasis era aprendiz de seu pai, treinando para ser um ferreiro. Pavios podia ver pai e filho trabalhando. A fuligem borrava o rosto de Thanasis. Seu rosto estava sempre manchado de fuligem, o que o fazia parecer duro e sério, até que sorria ou falava. Enquanto trabalhava com o pai, não fazia nenhuma das duas coisas, seu rosto corado como o metal brilhante que mergulhava na água, endurecido e reluzente.

O pai de Thanasis desapareceu de vista. Pavios desculpou-se e saiu da mesa antes que seu pai pudesse perguntar para onde estava indo.

Levou apenas um momento para os seus olhos se encontrarem. Thanasis aparentemente o tinha visto voltar para casa com seu pai e tinha estado esperando-o sair. A carranca no rosto de Thanasis transformou-se em um sorriso reconhecido. Pavios tirou a nota da camisa para que ele a visse. Enrolou-a e colocou-a debaixo de uma pedra perto da porta da casa de Thanasis. Quando se virou, Thanasis não estava mais observando. Seu cenho franzido tinha voltado, junto com o pai de Thanasis. Ele tinha visto onde Pavios tinha escondido o bilhete? Não era possível verificar, então seu próprio pai saiu da casa, bengala na mão, e pediu-lhe para acompanhá-lo.

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Thanasis estava infeliz, Pavios descobriu, assim como ele estava. Ele não queria se tornar um ferreiro.

“Eu quero ser um Lukos”, Thanasis lhe dissera na primeira vez em que eles se encontraram, naqueles dias maravilhosos antes da briga de seus pais, quando eles não estavam impedidos de ver um ao outro. Thanasis mostrou-lhe um local secreto, fora de Ácros, um amplo e afastado afloramento próximo à estreita trilha que levava através das montanhas pelo lado externo das muralhas da pólis. Embora não muito longe de Ácros, de lá não podiam nem ver as ameias da pólis, nem ouvir o ruído de suas ruas. Um único pé de emonberry crescia perto da borda do afloramento, seus ramos baixos e pesados cheios da fruta branca e azeda. Coelhos de uma criação próxima frequentavam o lugar, roendo os poucos brotos verdes e punhados de grama que cresciam em tufos em torno da base da árvore.

 

Montanha | Arte de Raoul Vitale

 

“Um Lukos?”

“Um lobo do exército acrosano”, Thanasis respondeu. “Eles são os melhores guerreiros de toda Theros.”

Thanasis contou a Pavios as histórias épicas de Ácros. Eles sentavam um ao lado do outro, as costas contra uma enorme pedra aquecida pelo sol, as pernas esticadas, suas sandálias poeirentas jogadas de lado. Thanasis ficava animado quando contava as histórias, e seus pés relavam nos de Pavios. Pavios não pôde evitar ser levado pela poderosa corrente de entusiasmo de Thanasis enquanto este falava do Exército. Ele permitiu que ela o carregasse, seu coração arrastado como uma folha flutuando.

Pavios sabia muito pouco sobre sua nova casa e a cultura guerreira do povo acrosano. A princípio, ele ficou ressentido, culpando-os pela mudança de sua casa na bela cidade de Meletis para estas montanhas isoladas. Deixando Meletis, ele tinha sido forçado a abandonar seus estudos em Dekatia – não havia taumaturgos em Ácros com quem ele pudesse continuar seus estudos mágicos e magia era uma das poucas coisas de que Pavios gostava. Era a promessa de um caminho longe das ambições que o pai tinha para ele. Em Ácros, as expectativas opressivas de seu pai e seu comando sobre sua vida eram inescapáveis. Era tudo culpa desses rudes e agressivos acrosanos.

Porém, Pavios não conseguiu alimentar esse ressentimento por muito tempo depois de conhecer Thanasis. Ele nunca ouvira Thanasis falar com alguém rudemente, nem mesmo com seu próprio pai, que se colocara contra seus sonhos de treinar como guerreiro no grande Kolophon, o indestrutível coração de pedra da pólis acrosana. Em vez disso, Thanasis fora forçado a aprender a profissão de seu pai. Ele parecia suportar bem esse desapontamento, muito melhor do que Pavios achava que aguentaria. Thanasis parecia feito para suportar qualquer coisa, alto e bronzeado, os ombros largos e sólidos, como os arcos que reforçavam as maciças paredes de alguns dos magníficos edifícios de pedra em Meletis. Ele manteve seu cabelo preto cortado curto do jeito dos novos recrutas do Exército. Thanasis poderia ser um grande guerreiro, ele tinha certeza disso.

Durante os dois primeiros meses em que se conheceram, encontravam-se sempre que podiam no afloramento. Pavios começou a compartilhar algumas de suas próprias histórias, e entreteve Thanasis com enigmas e truques simples que tinha aprendido durante seu tempo em Dekatia. Ele era lento para se abrir com histórias mais pessoais, no entanto, ele não falou sobre seu noivado com a garota de Meletis. 

Os dias nas montanhas tornaram-se mais curtos e o ar mais frio, mas os dois ainda se encontravam para contar histórias um ao outro. Em um dia especialmente frio, na pressa de fugir dos planejamentos incessantes do pai sobre o que eles fariam quando voltassem a Meletis e Pavios estivesse casado, Pavios saiu de casa sem seu manto. Ele não se deu conta do erro até que já tivesse saído das muralhas protetoras de Ácros e sentido a brisa fria das montanhas. Voltar para casa para pegar o manto o atrasaria para o encontro com Thanasis e poderia levar seu pai a fazer perguntas, então ele seguiu em frente.

Os dois sentaram-se juntos, como de costume, embora a grande rocha estivesse fria contra as costas de Pavios e o sol mergulhasse muitas vezes atrás das nuvens, fazendo-o tremer. No meio uma história sobre a Passagem Caolha e os heróis acrosanos que lutaram contra os ciclopes que lá moravam, Thanasis removeu seu próprio manto e envolveu Pavios nele sem perder o ritmo no clímax de sua narrativa. O manto simples era revestido com pele de coelho, e o couro era macio pelos muitos anos de uso. Ele carregava o cheiro de fumaça e bronze martelado, e do próprio Thanasis. Quando Pavios puxou o manto sobre si e o colarinho de peles fechou-se ao redor de seu pescoço, ele respirou o cheiro familiar e reconfortante de seu amigo.

 

Ciclope da Passagem Caolha | Arte de Kev Walker

 

Quando Heliode tocou o horizonte, eles se levantaram para caminhar de volta à pólis. Pavios começou a abrir o manto, mas Thanasis colocou uma mão em seu ombro. “Pode ficar com ele”, disse. A partir de então, Pavios usou o manto todos os dias durante aquela estação fria.

Thanasis compartilhara histórias dolorosas também. Ele olhou para o chão enquanto contava a história de sua mãe, e como ela havia morrido apenas três meses antes de Pavios chegar em Ácros. Embora fosse uma artesã ferozmente independente que viajava com frequência para vender a cerâmica e as joias que produzia, ela sempre mantivera com sua família um cronograma confiável sobre quando voltaria para casa de suas viagens. Um dia, ela não voltou. Thanasis e seu pai procuraram por ela até que encontraram sua bolsa nas montanhas, longe da estrada, rasgada e manchada de sangue, as jóias que produzira esparramavam-se a partir dela. Ela tinha sido pega por uma besta, isso era óbvio, embora eles nunca tenham encontrado seus restos mortais. Não muito tempo depois, a reticência de seu pai sobre Thanasis unir-se ao exército acrosano transformou-se em proibição indiscutível.

Quando Thanasis terminou a história, voltou a olhar para cima. Seus olhos estavam vermelhos. Não havia lágrimas neles, mas um esforço que lutava para conter uma enorme maré de tristeza e perda. Pavios viu algo mais lá, pensou ele: o afastamento da solidão, e um amor crescente por seu amigo. Ou será que estava vendo apenas um reflexo de si mesmo? Não, estava lá, ele tinha certeza.

Pavios puxou-o para perto, abraçando-o, e então beijou sua bochecha. Thanasis encolheu-se de repente, como se estivesse surpreso com a aproximação de Pavios, seus ombros tornaram-se uma parede entre eles. Ele não abraçou Pavios de volta. O momento terminou abruptamente e Pavios o soltou. Eles vestiram as sandálias e caminharam para a casa de Ácros em silêncio.

No dia seguinte, o desentendimento entre seus pais irrompeu e não houve mais encontros sobre o afloramento. Então, três dias antes de Pavios deixar a nota para Thanasis, seu pai anunciou que partiria para Meletis no fim da semana com o propósito de se preparar para casamento vindouro de seu filho.

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Pavios adormeceu, mas acordou quando algo bateu em sua testa. Passou uma mão pelo rosto e encontrou uma pedra no cabelo. Ele se sentou e rolou a pedra entre os dedos na escuridão. Enquanto pensava em se levantar para acender uma vela e examiná-la, outro seixo pousou em sua cabeça. Ele ouviu um sussurro. Parecia seu nome.

“Pavios.” O som vinha de cima. Pavios permaneceu na cama e ficou quieto, ouvindo.

“Pavios, sou eu, Thanasis.”

O som vinha da parede, mas soava como se Thanasis estivesse no quarto com ele. Pavios passou a mão pela parede e descobriu uma pequena rachadura. Ele espiou pela fenda, mas não pôde ver nada na escuridão. Ele se aproximou. “Thanasis?”

“Pavios!” A voz de Thanasis ficou mais alta. “Você dorme como se estivesse morto.”

Pavios ouviu um soco. “Estou tão feliz em ouvir sua voz”, disse ele. Naquele momento, a falta que sentira do amigo o dominou. “Estou tão feliz em ouvir sua voz”, ele repetiu em voz alta, sentindo-se tolo de repente.

“Shhh! Você vai acordar nossos pais.”

“Meu pai não me deixará vê-lo. Ele me arrasta por toda a pólis todos os dias enquanto trabalha.”

“O meu também não me deixará vê-lo”, Thanasis respondeu. Houve uma longa pausa. “Pavios?”

“Sim”, Pavios respondeu num sussuro. “Eu estou aqui.”

“Eu quero vê-lo.”

Pavios achava que, se abrisse a boca para falar, não conseguiria evitar gritar de excitação. Ou pior, ele poderia acordar e isso não passaria de um sonho. Ele queria responder: “Sim, eu também quero ver você!”, e então bater na parede entre eles até que ela caísse em escombros, mas ele não podia nem mesmo respirar naquele momento, muito menos levantar os braços para tal tarefa.

 

Paixão Predestinada | Arte de Winona Nelson

 

“Nós podemos nos encontrar de novo?” A voz de Thanasis estava mais baixa.

Pavios encontrou a própria respiração e se apoiou contra a parede. “Eu não tinha certeza”, começou ele hesitante, “depois da última vez, quero dizer…”, balbuciou. “Sim”, ele disse, finalmente.

“Você pode me encontrar amanhã ao meio-dia?”

“Eu vou dar um jeito.”

“Eu vou esperar por você”, Thanasis disse. “Boa noite, Pavios.”

“Boa noite, Thanasis.” Pavios rastejou de volta para baixo das cobertas.

“E obrigado pelo presente, Pavios.”

Pavios sorriu e mal podia esperar para adormecer. Ele puxou até o queixo o manto de pelo de coelho que estava espalhado por sua cama, respirou profundamente e mergulhou no sono.

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O emaranhado de fios estava se mostrando difícil. Adrastéia massageou as linhas entre seus dedos macios e enrugados, testou-as com um gancho na tentativa de separar os fios. Talvez um poderia ser salvo para continuar sua viagem sinuosa? Infelizmente, a técnica inteligente que sua irmã tinha empregado ao tecer esses dois juntos uniu seus destinos tão de perto que as tentativas de acabar com um só eram imprudentes. Um era a urdidura, o outro, a trama, e um sem o outro poderia enfraquecer a tapeçaria, deixando-a propensa a danos irreparáveis. Embora Adrastéia e suas irmãs controlassem muitas coisas nos destinos de todos em Theros – às vezes até mesmo nos destinos dos próprios deuses – havia regras que não deveriam ser transpostas, e algumas poucas que nunca, de modo algum, deveriam ser quebradas.

Desmanchadora de Destino | Arte de David Palumbo

De debaixo da mesa, ela retirou uma caixa negra esculpida rusticamente, feita a partir da madeira antiga e nodosa de uma árvore que nunca cresceu no mundo. As dobradiças de prata não fizeram nenhum ruído quando Adrastéia a abriu. O interior era coberto por veludo da cor de ameixas maduras, e três instrumentos estavam ordenadamente alinhados no fundo: um dedal de madeira; um longo e delicado passador de osso; e uma tesoura de ébano torta. Adrastéia pegou a tesoura e colocou a caixa novamente debaixo da mesa.

A tesoura era negra como o céu noturno, não refletindo a luz das velas que brilhavam em âmbar nem o onipresente reino de Nyx. As lâminas começavam nos anéis, retas e afiadas, deslizando juntas com precisão, mas à medida que se fechavam ficavam visivelmente desalinhadas, dobrando-se ligeiramente e depois impossivelmente para dentro e então uma sobre a outra até travar. A tesoura nunca podia ser totalmente fechada. Púrforo tinha se oferecido para lhe forjar um novo conjunto há muito tempo, uma oferta sobre a qual ela e suas irmãs tinham discutido continuamente por bons 33 anos.

Adrastéia voltou ao emaranhado de fios. Alguém poderia olhar criticamente para o estado das linhas, pensou ela, excluindo o valor artístico daquilo que mortais e deuses chamariam de falhas. Uma falha implica em julgamento, que exige critérios baseados em um conjunto de exclusões, e espera-se que estas permaneçam as mesmas de um momento para outro. Tais coisas são ilusões nesta sala. O destino não tem defeitos, nem uma estética duradoura. A única verdadeira beleza é uma plenitude imparcial.

Ainda assim, em momentos fugazes, Adrastéia encontrou beleza nos fios, apreciou e, algumas vezes, sentiu admiração. Mas esses momentos passaram, e o trabalho permaneceu, aguardando sua conclusão.

Ali. Ela arrematou o emaranhado no avesso. Estava pronto. Adrastéia segurava-o entre o polegar e o indicador, calosos e endurecidos por uma eternidade de picadas de agulha e de contato com as linhas infinitas. Ela abriu as tesouras tortas e posicionou o vértice das lâminas junto ao emaranhado de fios.

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Pavios chegou ao afloramento primeiro. O céu estava nublado e o tempo estava bastante frio. Debaixo do manto, pendurado nas costas, ele carregava um pacote de comida, roupas, sua faca, o manual de treinamento que o mestre taumaturgo lhe dera quando deixara Dekatia, em Meletis, sílex e aço, e vários outros itens necessários para uma longa viagem. Ao acordar no início da manhã, antes de seu pai, ele tinha tomado uma decisão. Não voltaria para Meletis. A ideia de deixar Thanasis e casar-se com outra lhe deixou com um nó no estômago, encheu-o de pânico. Ele não sabia para onde iriam, mas se Thanasis aceitasse, eles iriam descobrir.

Ele esperava que Thanasis trouxesse o presente que lhe dera: a espada curta presenteada a ele em Meletis para concluir o arranjo matrimonial. Se ele e Thanasis estavam fadados a ficar juntos, a espada seria essencial em seu destino.

Se Thanasis se recusasse, Pavios resolveu que iria sozinho. Talvez ele morresse; viver sem Thanasis seria uma vida que ele não suportaria. O pensamento o deixou nervoso. Thanasis poderia se recusar – será que ele estava sendo demasiado presunçoso novamente, como naquele dia em que estiveram juntos da última vez? Ele começou a suar. Tirou a capa e a mochila e as colocou no chão. O frio o atingiu, e ele sorveu de seu odre para se aquecer.

Pavios ouviu um rosnado, mais profundo e mais aterrorizante do que qualquer outro que já ouvira de qualquer animal que já encontrara. Do outro lado do afloramento largo e um pouco abaixo da trilha, ele viu um borrão de movimento. Uma besta que exibia uma grossa juba de lã da cor da neve rasgou um coelho. Pavios não se moveu, mas observou como o coelho foi morto, despedaçado, e consumido em algumas mordidas rápidas. O sangue e a pele pingavam das mandíbulas do assassino.

 

Leão da Juba Lanosa | Arte de Slawomir Maniak

 

Ela ergueu os olhos, cheirou o ar, e então viu Pavios.

Em pânico, Pavios correu na direção oposta, passando o pé de emonberry e subindo pela trilha estreita. Em todas as vezes que viera aqui com Thanasis, nunca havia explorado além do afloramento e do caminho que seguiam até lá. Ele não sabia aonde a trilha conduzia além do local de encontro, mas não teve tempo para pensar a respeito.

Ele não olhou para trás. A trilha tornou-se mais estreita e traiçoeira, e ele não poderia se arriscar a tropeçar. E se a besta estivesse logo atrás dele, se estivesse prestes a aparecer e derrubá-lo, ele não queria saber. Melhor que isso acontecesse de forma rápida, como tinha sido com o coelho.

Pavios chegou ao fundo do desfiladeiro e mesmo assim não parou nem olhou para trás. À frente, ele viu uma pequena abertura na parede de rocha, uma pequena caverna. Ele a alcançou e entrou. Tentou acalmar a respiração, tentou não ofegar e denunciar seu esconderijo.

Pavios não sabia por quanto tempo ou até onde tinha corrido. Sua respiração ofegante se acalmou, mas ele começou a tremer de medo e frio. Ficou imóvel por um longo tempo, esperando pela besta. Ela não apareceu.

Um novo medo o dominou. Thanasis estaria vindo ao seu encontro. Ele caminharia direto para as garras da besta.

Pavios saiu de seu esconderijo. A besta não estava em nenhum lugar à vista. Ele se apressou até a trilha, mas não conseguiu manter a velocidade no desfiladeiro íngreme.

A noite estava caindo quando finalmente se aproximou do afloramento, mas ele pôde ver que a criatura tinha fuçado sua mochila. Ela tinha espalhado seus suprimentos. O pacote estava na beirada do afloramento, rasgado. Havia sangue manchando-o. Ele esperava que fosse o sangue do coelho que a besta tinha tornado sua refeição.

Pavios subiu para o afloramento. “Thanasis?”, ele chamou. “Você está se escondendo?”

Ele ouviu uma respiração irregular. Pavios olhou ao redor sob a luz que diminuía. Lá, encostado ao pé de emonberry, estava Thanasis. O sangue encharcava sua túnica. Em seu peito estava a espada curta que Pavios tinha lhe dado. Estendida em seu colo estava a capa que ele havia dado a Pavios. Ela estava rasgada e ensanguentada; o forro de pele de coelho em farrapos.

Pavios gritou e correu para o amigo. “O que o que aconteceu?”, estendeu a mão para ajudá-lo, mas parou. O que ele poderia fazer? Ele deveria puxar a espada? Poderia mover Thanasis? Havia tempo para pedir ajuda em Ácros? Sua mente estava cheia de pensamentos confusos. Segurou a cabeça de Thanasis nas mãos, afastou os cabelos do rosto. Seus olhos se abriram ligeiramente. Sua pele estava pálida e fria. 

“Pavios”, Thanasis tentou balbuciar o nome, mas nenhum som saiu de seus lábios. Com um grande esforço, ele respirou fundo e forçou sua voz. “Eu pensei que aquilo tinha lhe matado…” Sua voz sumiu.

“Não”, disse Pavios. Seus olhos se encheram de lágrimas. Estava se tornando terrivelmente claro para ele o que tinha acontecido. “Estou vivo, estou a salvo.” Ele pegou o manto rasgado e ensanguentado e tentou colocá-lo em torno de Thanasis para aquecê-lo. Tufos de pelo de coelho caíam dele e ficaram em suas mãos, misturando-se ao sangue escorrendo dos lábios de Thanasis. Ele devia ter visto o manto e a mochila e pensado que o sangue era de Pavios, em uma cena que lembrava horrivelmente a morte de sua mãe. Seria possível então que, naquele momento de desespero, Thanasis tirara a própria vida cravando a espada no próprio coração? 

As respirações fracas de Thanasis cessaram. A noite caíra eles. Pavios mal conseguia ver o rosto do amigo através da escuridão e das lágrimas. Ele colocou sua testa na de Thanasis. “Não vá”, ele disse suavemente.

Pavios não orava com frequência. Ele conhecia os deuses, mas dispunha de pouco tempo ou propósito para oração. Agora, porém, ele orou a Érebo, o deus dos mortos. “Poderoso Érebo”, ele suplicou, “eu o amo. Não…” Pavios engoliu em seco. Embora não estivesse acostumado a orar, tinha certeza de que, quando o fizesse, seria sábio não fazer exigências aos deuses. “Por favor, Érebo… Eu não posso viver sem ele.”

Érebo, Deus dos Mortos | Arte de Peter Mohrbacher

A espada.

Não era uma voz, mas ele a ouviu assim mesmo.

  Você pode ficar ao lado dele novamente, mas apenas em   meu reino. Use a espada antes que o calor da vida deixe o   corpo dele, e eu permitirei que você se junte a ele.

Érebo havia respondido a ele. “Érebo”, Pavios disse. “Eu estou com medo.”

Eu aliviarei sua passagem. Não haverá dor.

Pavios pegou o punho da espada e a deslizou suavemente do peito do amigo. O metal estava quente do corpo de Thanasis. Levantou-se e virou a lâmina em direção a seu próprio coração. Ele não achava que teria força para empurrá-la entre as costelas, então virou-se para Thanasis e deixou-se cair para frente. O punho bateu no chão, e a lâmina perfurou seu coração. Ele sentiu um choque, mas não era dor. Na verdade, por um instante, sentiu-se feliz, e conforme a lâmina traçava seu caminho através de seu corpo, ele riu em voz alta. A sensação passou rapidamente e ele fechou os olhos, a cabeça em repouso no colo de Thanasis.

Sob eles, o sangue molhava as raízes do pé de emonberry.

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Talvez fosse uma distração momentânea que a fizera calcular mal o corte pela distância de um fio de cabelo quando ela fechou a tesoura sobre os fios. A tesoura cortou o emaranhado, e junto com ele a ponta de seu polegar. Adrastéia ofegou por entre os dentes. Chupou a ferida, sentindo o gosto pesado do cobre. Sentimental velha tola, ela repreendeu a si mesma, que essa seja uma lição para você e seu coração estúpido para que você não seja seduzida pelas dores dos mortais.

Ela se debruçou sobre a tapeçaria, apertando os olhos, e viu que uma pequena gota de sangue a tinha manchado.

Adrastéia recolocou suas tesouras tortas e o emaranhado de fios na caixa e fechou a tampa.




Traduzido por:
Alysteran

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