Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
EPISÓDIO 04: NO REINO DOS DEMÔNIOS
Pela primeira vez em seu tempo em Kaldheim, Kaya não precisava se preocupar com o frio. Do outro lado do Caminho do Presságio de Tyvar, uma rajada de ar quente e nocivo a recebera. O céu foi a primeira coisa que ela notou: nuvens escuras rolando sem a memória de um sol. A única luz encontrada vinha dos raios vermelhos que ocasionalmente dividiam o céu e do brilho alaranjado que surgia de algum lugar abaixo deles.
Kaya estava com Tyvar no topo de uma cordilheira de rocha negra e irregular. Acima da borda, ela podia ver um pântano alcatrão coberto de teias de aranha fumegantes, uma grande extensão de lava cuja superfície havia parcialmente endurecido em grandes pedaços de pedra-pomes negra flutuando na rocha derretida. De vez em quando, um bolsão de lava explodia em um gêiser derretido, enviando pedaços brilhantes de lava para o ar. Era difícil imaginar um lugar menos hospitaleiro para a vida – e, no entanto, Tyvar parecia olhar para a paisagem apocalíptica com nada menos que admiração.
“Chegamos,” ele disse. “Eu não tinha certeza se conseguiríamos.”
“O que isso quer dizer?” perguntou Kaya.
“Os deuses selaram este lugar há muito tempo, depois que Varragoth escapou pela primeira vez, com poderosas runas de proteção. Eu nunca abri um Caminho dos Presságios para aqui – nenhum elfo o fez. Mas Tibalt deve ter de alguma forma danificado as proteções.”
Aquela espada. Não era nenhum tipo de mágica que ela havia visto antes, nada como o portal que Alrund abriu. “Temos que tirar aquela espada dele. Se ele pode abrir as portas deste lugar, quem sabe o que mais ele consegue fazer com ela?”
Tyvar apontou para trás dela. Ela se virou, a mão automaticamente alcançando sua adaga – e, ela lembrou um instante depois, não encontrou nada. Não era para uma ameaça que ele estava apontando, de qualquer maneira.
Na superfície parcialmente resfriada do lago de magma, algumas linhas estranhamente retas foram esculpidas na teia de rupturas vulcânicas. Depois de um momento, seus olhos se ajustaram à luz baixa e ela viu o que havia sido esculpido no basalto, esperando por sua chegada: uma flecha laranja derretida.
“Bem, entre as muitas coisas das quais Tibalt foi acusado, sutileza não é uma delas,” murmurou Kaya.
Num movimento fácil, quase experiente, Tyvar saltou sobre a borda do cume. Ele chutou um pináculo de pedra, então deslizou por uma encosta de cascalho vítreo. Seu ímpeto parou bem na frente das planícies de magma, de onde ele olhou para ela. “Vai vir?”
Por mais divertido que fosse pular entre os blocos de pedra resfriada, Kaya não tinha vontade de mergulhar na lava se errasse o salto. Aparentemente, Tyvar também não; assim que ela chegou à beira do lago, ele pressionou a ponta dos dedos na margem enegrecida e fechou os olhos.
“Espere,” ele disse. “Eu quero tentar uma coisa.”
Através do magma, a costa de basalto começou a se espalhar. A pedra não apenas se expandiu ou se dobrou sobre si mesma – ela parecia crescer, gavinhas de rocha se entrelaçando, trançando-se em uma ponte. Quando abriu os olhos, Tyvar parecia tão surpreso quanto ela.
Ela pisou cautelosamente nela. Era sutilmente estriada, entrelaçada em alguns lugares de uma forma que ela não achava que a pedra fosse naturalmente capaz de fazer. Era, ela se pegou pensando, estranhamente bonito.
Primeiro, ele transforma aqueles trolls em pedra, agora isso. O garoto é um transmutador. Mas isso não era tudo o que ele era. De alguma forma, Tyvar ascendeu sem perceber – foi até Zendikar, apenas pensando que era outro dos reinos de Kaldheim.
De volta a Gnottvold, quando abriu aquele Caminho de Presságio, Tyvar deixou claro que entraria, quer ela viesse ou não com ele. Se ele fosse apenas mais um herói obstinado com a intenção de uma morte gloriosa, Kaya teria deixado ele ir – afinal, Kaldheim tinha muitos deles, e ela tinha trabalho a fazer. Mas Tyvar era um planinauta e alguém que não sabia o que isso realmente significava. De alguma forma, parecia um desperdício deixar Tibalt matá-lo antes que ele visse mais do Multiverso. Ela tentou contar a ele um pouco sobre tudo enquanto caminhavam.
“Esses Planos são como os reinos, então? E conectando todos eles uma Árvore-mundo ainda maior?” ele disse.
“Bem, sem os galhos literais. E sem animais gigantes nos espaços intermediários.” Pelo menos até onde ela sabia. “Mais importante, eles não estão conectados da mesma maneira. Os portais não aparecem simplesmente, e não há feitiços para cruzar entre eles. A única maneira de passar de um para o outro é ser um de nós. “
“Um planinauta,” disse Tyvar, chutando um pedaço de pedra-pomes escura para a lava. “Uma boa oferta. Mas acho que vou passar. Há glória em abundância para mim em Kaldheim, e mais reinos do que eu poderia explorar em uma vida. Além disso, como as pessoas saberiam contar histórias sobre mim se eu deixasse a Árvore do Mundo completamente? Eu teria que começar de novo a cada vez.”
Sim, pensou Kaya. Essa é a parte complicada. Novos amigos, novos inimigos, novas regras para todos os Planos. Sempre a estranha, a recém-chegada. Cair repetidamente nas brigas de outras pessoas, nas guerras de outras pessoas. Foi emocionante, no começo. Então, depois de um tempo, ficou cansativo. Mas, goste ou não, não foi uma escolha.
Kaya o agarrou pelo ombro e o girou. “Você não pode deixar passar, garoto. Não é assim que isso funciona. Você é um planinauta, goste ou não, e da próxima vez você acabará em algum lugar cheio de magia, monstros e pessoas que você não entende, você vai precisar” – ela procurou as palavras – “você vai precisar de algum tipo de código de conduta. Um conjunto de regras.” O código de conduta de Kaya era simples: não faça mal… a menos que eles merecessem e alguém estivesse pagando a você pelo privilégio. Claro, uma ou duas vezes ela se envolveu em confusões das quais deveria ter ficado de fora; de vez em quando, se ela estava se sentindo caridosa, ela libertava um fantasma particularmente problemático pro bono. Mas o código era importante — era a única coisa que a seguia de Plano em Plano, a única coisa com a qual ela podia contar. Com o que Tyvar poderia contar quando um dia saísse de Kaldheim? Que glória ou contos heróicos importariam?
Tyvar libertou seu braço, seu aborrecimento claro como o dia naqueles traços esculpidos, mas de alguma forma infantis. “Eu tenho um código de conduta – o mesmo transmitido pelos guerreiros de Skemfar por incontáveis gerações. Não preciso da educação de um estranho nessas coisas.”
“Só estou tentando te ajudar!” ela disse. Ninguém nunca tinha feito isso por ela e olha como ela acabou. Mercenária, ladra, assassina. Tibalt não estava em posição de acusá-la de nada, mas ele estava certo.
“Eu não sou uma criança e não preciso de sua ajuda. Como demonstrei, sou mais do que capaz de cuidar de mim mesma.” Com isso, ele saiu furioso, descendo o caminho da rocha negra.
Tolo teimoso. Por quê ela ainda estava aqui? Afinal, ela tinha outro trabalho remunerado em Kaldheim. Um monstro que ela deveria estar rastreando.
Ela ainda estava decidindo se deveria se virar quando o primeiro arpão estalou no chão escuro, a centímetros do pé de Tyvar. Era uma arma rudimentar, ferro bruto cercado de farpas e pesado o suficiente para afundar direto na rocha. Por um instante, Tyvar pareceu atordoado demais para se mover — e não percebeu o segundo gritando em sua direção.
Kaya o alcançou bem a tempo, transformando seu torso em uma luz fantasmagórica no momento em que o arpão de ferro assobiou através dele. Ele cambaleou para trás, plantou uma das mãos no chão e tornou seus braços pretos como carvão.
“À nossa direita!” disparou Kaya.
Cortando um caminho na direção deles, através dos pedaços de magma resfriado, estava – o que era improvável – um navio. Isso a lembrou dos dracares que os Pressageiros haviam pilotado, mas enquanto aqueles eram elegantes e estreitos, destinados a entrar em canais estreitos e explorar enseadas remotas, este navio foi feito para apenas uma coisa. Espinhos circundavam a borda externa, cruéis e afiados; a proa era uma cunha de ferro com uma borda lascada e dura. No lugar das velas, uma camada de chamas parecia aumentar e pegar qualquer corrente sobrenatural que os empurrasse para mais perto.
“Demônios,” disse Tyvar. “Prepare-se.”
À medida que o navio se aproximava, Kaya pôde distinguir três figuras a bordo. Em um deles, um elmo de ferro adicionava fileiras de chifres aos dois que naturalmente se curvavam em sua testa; uma viseira preta escondia seus olhos. Outro teve uma mão substituída por uma enorme maça flangeada, as beiradas cobertas de sangue. Perto da proa, em uma plataforma elevada, estava o maior — um brutamontes robusto com o lado direito coberto por placas de ferro preto. As membranas de suas grandes asas foram rasgadas e arrancadas em conflitos passados. Com a mão esquerda, ele ergueu outro arpão, inclinando-se para trás para o lançamento.
Para este, Tyvar estava preparado. Com o ritmo de um dançarino, ele passou o braço enegrecido no caminho do arpão, jogando-o no magma. “Precisamos diminuir a distância,” ele disse.
Kaya fez uma careta. “Na verdade, não acho que seja problema nosso.”
O navio estava apenas ganhando velocidade, as velas flamejantes alimentadas por rajadas de calor de fornalha. Dois dos demônios, os menores, abriram suas asas e se arrastaram no ar com grandes e ansiosas batidas. Eles não pretendiam apenas parar ao lado deles.
“Olhe!” gritou Kaya.
Ela desviou para um lado da ponte que Tyvar havia construído; ele desviou para o outro. Então a borda de impacto ao longo da proa se chocou contra a ponte, espalhando basalto e cinzas no ar.
Kaya rolou para ficar de pé a tempo de ver aquele com a mão de maça descendo do céu em sua direção. Ele baixou a arma em um golpe colossal que abriu uma buraco na massa vulcânica onde Kaya estava parada instantes antes.
Antes que ele pudesse puxar o braço de volta, ela pisou nas flanges e tirou de fase parcialmente para dentro da rocha. Ele berrou e tentou agarrá-la, mas ela escapou de suas mãos como fumaça, pulando de volta para o arpão que ainda estava cravado na rocha.
Não era difícil para ela se ver livre – mudar de fase aqui e ali era suficiente – mas o peso daquilo quase a derrubou no lago de magma. Enquanto ela lutava com ambas as mãos para erguer o pesado poste de ferro, o demônio batia suas asas furiosamente, levantando e puxando a rocha vulcânica que envolvia seu braço. Com um pouco de concentração, Kaya virou o arpão totalmente imaterial, então jogou.
Quando saiu de sua mão, passou de leve, insubstancial, para de repente tão pesado e letal quanto antes – e viajando a uma velocidade muito maior. Perfurou o peitoral amassado do demônio e saiu pelo outro lado. O demônio se debateu por um momento, a maça em seu braço ainda fundida com o chão, antes de desmoronar.
Kaya se permitiu um momento para expirar, então começou a avançar. Plantando um pé na armadura envolvendo as costas do demônio, ela saltou para o convés do navio. Do outro lado, ela podia ver Tyvar flanqueado. O demônio com o elmo com chifres estava cortando-o furiosamente com um par de cutelos curtos alinhados de dentes perversos e serrilhados, e o grandalhão que ela tinha visto com seu corpo meio envolto em metal o mantinha encurralado com grandes golpes de um martelo cheio de espetos. Apenas um golpe parecia suficiente para arrancar a cabeça do elfo – mas até agora, Tyvar conseguiu ficar um pouco à frente de cada golpe. Seus braços, ela notou, não eram mais o preto áspero do basalto. Agora eram um laranja derretido e brilhante, como se ele os tivesse aquecido em uma fornalha. Cada vez que ele desferia um soco, as brasas se espalhavam e piscavam no ar.
Ele era rápido, forte e habilidoso, não havia dúvida sobre isso. Mas ele não poderia manter isso para sempre.
Ela se abaixou sob a vela de chamas, protegendo o rosto do calor com uma mão, e deu um pulo para o lado, caindo com um salto nada gracioso nas costas do grande demônio. Ele tinha o dobro da altura dela, provavelmente mais que o dobro do peso dela, e mal se inclinou para frente com o impacto, mas ela conseguiu segurá-lo pelo pescoço.
Com um pensamento, ela enrolou a mão naquela luz misteriosa e endireitou os dedos em uma lança. Golpe rápido no coração. Piscar para fora de fase e extrair. Não será confortável, mas vai fazer o serviço.
Enquanto o demônio tateava desajeitadamente em suas costas tentando alcançá-la, Kaya deu um golpe com a mão logo à esquerda da coluna, rematerializando-se por um instante…
E quase desmaiou de dor. Estava queimando dentro do demônio, como enfiar a mão em uma fornalha. Ela soltou o pescoço do demônio e caiu sobre a áspera pedra negra abaixo.
O demônio estremeceu, caiu de joelhos – então se levantou usando o cabo daquele enorme martelo de guerra como suporte. Ele se virou para ela, olhinhos vermelhos ardendo de raiva. De sua boca escorria uma espessa bile negra que borbulhava e fumegava. Ela o feriu, mas não o suficiente.
Sua mão só tinha sido material por uma fração de segundo, mas ela ainda podia sentir a dor, quente e absoluta. Mas a dor, como tantas coisas, era uma ferramenta. Uma ferramenta que Kaya sabia usar. Concentre-se nisso. Use-a. De algum lugar dentro dela, Kaya sentiu um calafrio subindo.
O demônio ergueu o martelo, os grandes músculos trabalhando para erguer a coisa maciça, sangue fervente ainda saindo de sua boca. Foi quando Kaya transmutou o caminho rochoso abaixo dele para o ar vazio.
As asas do demônio se abriram por reflexo, tentando se reequilibrar, para se manter no ar. Poderia ter funcionado, se não fossem os buracos e rasgos que marcavam sua superfície de couro, ou o grande martelo pendurado acima dele. Ele começou a rugir no momento em que suas pernas afundaram na lava – ele caiu para frente, deixando cair o martelo, agarrando-se à áspera pedra preta que ainda compunha a parte do caminho em que Kaya estava. Com um chute certeiro, ela o mandou para trás na rocha derretida e permitiu que o caminho se rematerializasse sobre ele.
Do outro lado do caminho, a batalha de Tyvar com o demônio sobressalente ainda continuava; com apenas um oponente, o elfo estava na ofensiva. A faca de latão afixada em sua braçadeira havia crescido agora, brilhando em laranja com o mesmo calor vulcânico que cobria seus braços. Com um golpe rápido que deixou o calor brilhar no ar, ele cortou um dos cutelos do demônio; seu próximo corte passou por seu pescoço. Ela ouviu um som crepitante, cheirou algo pior que cabelo queimado, e então a cabeça do elmo do demônio ricocheteou uma vez no basalto e na lava enquanto o corpo cedeu no caminho da rocha negra. A luta estava acabada.
A mão de Kaya ainda latejava terrivelmente, apesar do feitiço que ela havia usado para consertar o pior. Ela nunca teve muito talento para magia de cura. Provavelmente levaria dias até que ela tivesse uma amplitude de movimento completa novamente.
“Isso foi incrível!” disse Tyvar.
“Sim, sim,” disse Kaya. “Eu vi o que você-“
“Aquele jarl tinha o dobro do seu tamanho! Você sabe quantos humanos, em todas as sagas que conheci, mataram um demônio? Supondo que você não tenha conversado com o outro, você venceu dois! E sem qualquer arma! Os skalds precisam saber disso. Eu mesmo direi a eles, quando terminarmos!”
“|Ah, obrigada,” disse Kaya, pega de surpresa. Então o garoto pode compartilhar a glória. “Se planejamos fazer isso de novo, porém, prefiro estar armada.”
Algo pareceu surgir em Tyvar, então. “Claro. Permita-me.”
Ele se curvou sobre o enorme martelo que o jarl demônio havia deixado cair antes de entrar no magma. Kaya estava prestes a protestar — um pouco pesado para mim, não muito meu estilo — quando Tyvar enfiou os dedos no ferro preto da ponta do martelo como se fosse lama. Dela, ele puxou dois punhados de metal: um ele deixou cair no caminho, tilintando lentamente contra a rocha.
Ele ergueu a outra pepita e olhou de soslaio. “Péssima qualidade. Mas podemos fazer algo sobre isso.”
Ele apertou as mãos ao redor da pedra e pressionou, os músculos ao longo de seus braços e ombros ficando tensionados. Quando as palmas de suas mãos se separaram, ele estava segurando uma pequena forma circular, áspera em algumas partes, como o caroço de uma fruta. Ele se ajoelhou e a empurrou para dentro do basalto, o que deu algum trabalho. Depois, ele fez o mesmo com a outra pepita. Kaya assistiu, perplexa, enquanto ele cavava a terra de cor de carvão e fazia um pequeno monte sobre cada uma. “O que você está fazendo?”
“Tudo tem potencial para crescer,” disse Tyvar, endireitando-se. “Árvores, pessoas – já esperamos isso delas. Mas terra e pedra também podem, com tempo e paciência. Ou, na falta disso, um pouco de magia. Eu te disse que minhas habilidades funcionam de maneira diferente em cada reino por onde passo. Eu imaginei que em um lugar sem vida como este, qualquer coisa estaria desesperada para se desenvolver. Até mesmo metal. E eu estava certo,” ele disse, sorrindo.
Ela nunca tinha ouvido falar de transmutação daquele tipo. “E sobre Gnottvold? O que você fez com aqueles trolls?”
Ele balançou a mão com desdém. “Fácil. Os trolls de Torga são criaturas da terra – eles passam anos a fio sendo pouco mais que pedras, acumulando musgo. Eles não estão longe de serem pedras. Eu apenas os persuadi a ficarem um pouco mais perto dessa forma.”
Então, diante de seus olhos, algo surgiu do chão. Um broto – da mesma cor de ferro escuro que o círculo tinha, mas se desdobrando, se desenrolando. Depois outro, do outro monte. Kaya observou enquanto elas cresciam e ficavam maiores, enquanto brotavam gavinhas que se entrelaçavam em treliças trançadas. Quando o topo se dobrou sobre o resto, caindo em uma curva em forma de D, ela entendeu o que estava vendo: um machado. Dois, na verdade. Crescidos da terra, como pés de trigo.
Tyvar estendeu a mão e puxou-os da rocha — torcendo enquanto fazia isso, como se arrancasse uma raiz. Então ele os entregou a ela, pelo cabo. “Você gosta deles rápidos e leves. É isso mesmo?”
Cautelosamente, ela pegou um. A coisa toda era feita do mesmo material – sem ferrugem, sem sangue, sem imperfeições, apenas metal frio e cinza. A cabeça do machado, com aqueles padrões ornamentados de nós, era de uma cor mais clara que o cabo. De alguma forma, o punho era mais áspero, de uma forma que parecia que não escorregaria de suas mãos. Ela o lançou no ar, tudo girando ao redor de um ponto logo abaixo da cabeça do machado, e o pegou novamente. Bem balanceado, para algo que brotou do chão.
“Obrigada,” ela disse, colocando o machado e sua irmã em seu cinto.
Tyvar deu um tapa em seu ombro e sorriu. “Tenho certeza de que você fará bom uso deles. Agora, nós tem um vilão para pegar. Vamos seguir?”
“Na verdade,” disse Kaya, olhando para trás, para onde o dracar demoníaco estava preso na ponte de pedra negra. “Eu tenho uma ideia melhor.”
No que se refere às embarcações, Kaya preferia muito mais o navio de Cosima. Além de sua incrível capacidade de levar alguém aonde quer que eles precisassem ir, não havia chance de se empalar ao longo da amurada ou incendiar seu cabelo após por ajustar a vela. Felizmente, Tyvar parecia ter um pouco mais de experiência em velejar do que ela, e assim que o navio demoníaco ganhou velocidade, ele quebrou as placas de magma resfriado flutuando na superfície da lava sem sequer uma trepidação.
O elfo manejava as velas enquanto ela observava da proa. “Lá,” ela disse, apontando para a frente deles. Erguendo-se acima de uma planície cinza estava uma montanha vasta e escura. Onde deveria estar o pico, havia um cone irregular e aberto que quase roçava as nuvens turbulentas acima. No topo, Kaya pôde distinguir uma luz estranha. Parecia distorcer o ar ao redor dela como focos de calor, ocasionalmente enviando uma misteriosa fita ondulante azul ou verde riscando o céu. Onde ela tinha visto aquela luz antes? Alrund. Em Kaldheim, essa era a luz dos deuses. Mas era a mesma luz que ela tinha visto nas bordas do portal que Tibalt havia esculpido.
Tyvar mudou o leme, direcionando o navio para a montanha. “Aquele é o Bloodcrag! Nunca pensei que realmente o veria.”
“Ótimo. Perfeito. Bloodcrag.” Rapidamente, ela considerou se não era tarde demais para virar o barco. Afinal, ninguém estava pagando a ela pela cabeça de Tibalt.
Mas aquele bastardo com chifres tem tantos inimigos, eu provavelmente poderia encontrar um comprador. Chandra, talvez.
Eles deixaram o dracar encalhado ao longo da costa de escória do lago de lava. Escalar a montanha, pelo menos, não seria a parte mais difícil. Moldados na rocha havia um conjunto de degraus antigos. Estavam gastos com o tempo e um pouco grandes demais para Kaya ou Tyvar subirem confortavelmente — esculpidos neste lugar há muitos milênios para os habitantes sanguinários de Immersturm, não para elfos ou humanos — mas eram aceitáveis.
No meio do caminho, algo chamou sua atenção: um movimento abaixo deles, no lago de magma. Kaya fez uma pausa, de costas para um dos enormes degraus e ligeiramente quentes. Pela superfície do lago, entre o clarão ocasional de lava em erupção, navios de ferro cortavam a escuridão, cada um encimado por uma cortina bruxuleante de chamas em forma de vela. Era muito longe para ela distinguir quaisquer figuras – daqui, até mesmo os navios sombrios pareciam algo que ela poderia encontrar em uma loja de brinquedos – mas, devido as rajadas tão altas do vento, ela podia apenas distinguir a batida constante dos tambores.
“Por Einir,” murmurou Tyvar. “Deve haver dezenas.”
“Centenas,” disse Kaya. “A nave que cruzamos devia fazer parte da vanguarda deles. Batedores.”
“E esse é o exército.”
Mas por quê? Tudo aquilo — uma legião de demônios, uma frota de navios — apenas para detê-los? Ela sabia que era resistente, e Tyvar não era tão ruim para um planinauta iniciante, mas isso parecia um exagero.
A menos que-
A menos que eles não estivessem aqui por causa deles.
“Aquela espada,” disse Kaya. “Ele abre portais! Abre buracos no espaço entre os reinos!”
Tyvar olhou para ela sem compreender. Kaya agarrou seus ombros e o sacudiu. “Garoto, ele vai começar um Doomskar!”
“Correção,” veio uma voz acima deles. “Eu já comecei.”
Um raio de chama abrasadora desceu da escada em ziguezague na direção deles; Kaya se jogou para o lado bem a tempo de sentir o calor lamber seu rosto.
No cume, sorrindo para eles, estava Tibalt. Uma onda de chama vermelha e trêmula envolvia uma mão; na outra, ele segurava aquela espada de vidro brilhante e colorido.
“Temos que tirar aquela espada dele,” disse Kaya. Outra bola de fogo fez um arco no ar, transformando a rocha em lava onde Tyvar estivera um momento antes.
Ela foi para um lado e Tyvar foi para o outro. Entre o caminho sinuoso da escada, lascas de rocha negra se projetavam da encosta da montanha, evidência de mudanças tectônicas tão selvagens quanto os habitantes do reino. Tyvar as usou como cobertura, mantendo-se abaixado, subindo a encosta em saltos e pulos atléticos.
Para Kaya, as coisas não eram tão complicadas. Ela abriu um caminho direto para Tibalt, atravessando a rocha, o fogo e tudo o mais que o diabo jogava em seu caminho; por mais ágil que Tyvar fosse, ela passou rapidamente à frente dele.
Cinco metros, depois três. Kaya tirou um machado de seu cinto e o arremessou em Tibalt. Acertou seu ombro, fazendo-o cair no chão, e ela sacou o segundo machado. Não deixe que ele se levante.
Ela empurrou-se sobre o cume e se jogou sobre Tibalt, inteiramente focada em atingi-lo, com mudanças sutis em seu pé para deixá-la trazer todo o seu peso para baixo com o golpe. Ela viu, tarde demais, a inspiração profunda que enchia o peito dele, o inchaço daquelas bochechas vermelhas.
A fumaça saiu da boca dele em uma grande e repentina torrente, cobrindo a enorme escada em um instante. Ela correu sobre Kaya como uma onda, ardendo seus olhos, queimando sua garganta. Cega, ela atacou de qualquer maneira – mas o machado apenas ressoou na rocha.
Kaya puxou o capuz sobre a boca e o nariz com uma mão, manteve o machado nivelado e pronto com a outra, mas tudo o que ela podia ver era a fumaça. Por toda parte, pequenas cinzas alaranjadas dançavam com malícia. Pareciam agarrar-se a ela, procurar brechas no pano pelo qual ela respirava, bisbilhotar suas pálpebras semicerradas. Em qualquer lugar que tocasse a pele nua, queimaria.
Ela fez o possível para afastar a dor e o desconforto, para se concentrar em sua audição. Onde estava Tibalt? Onde estava Tyvar?
Não é tarde demais para correr.
O pensamento pareceu vir do nada.
Já está feito mesmo. Tibalt já começou o Doomskar. O que você ainda está fazendo aqui?
Gradualmente, a queimação em sua pele, em seus pulmões e olhos, piorou. Um cansaço estranho também se instalou em seus membros – o machado que ela segurava, antes tão leve e balanceado, agora parecia arrastar seu braço para baixo.
Os problemas deste Plano não são seus problemas. Você não deve nada a essas pessoas. Vá em frente – salte pelas Eternidades Cegas. Saia daqui. Salve-se. Afinal, é nisso que você é melhor.
Os pensamentos passavam por sua mente um após o outro, com Kaya impotente para detê-los e, contra sua vontade, ela sentiu o impulso puxando-a, as energias mágicas crescendo ao seu redor, preparando-se para levá-la embora.
Seria tão fácil. Não há mais nada para você aqui além de dor.
Algo estava errado – além da fumaça ardente, além da exaustão sobrenatural que agora ameaçava deixar Kaya de joelhos. Havia uma voz em sua cabeça. Uma voz que quase – mas não exatamente – soava como a dela.
Houve um movimento na fumaça rodopiante à sua direita; primeiro ela viu a espada, aquelas lindas cores presas no vidro, arqueando em sua direção. Tibalt, girando-a para matar. “Você não conseguiria simplesmente ir embora, não é?”
Ela tentou levantar o machado para bloquear o golpe, mas ele estava tão pesado – seu braço, tão lento. Kaya já sabia que seria tarde demais. Em um instinto animal, Kaya fechou os olhos com força.
Houve um estrondo retumbante. Não exatamente o som de metal mordendo a carne. Sem dor também. Engraçado.
Kaya abriu os olhos. Entre ela e Tibalt estava Tyvar. Ele aparou aquela brilhante espada de luz divina na adaga fixada em sua braçadeira. Tibalt estava lutando para passar, os braços tremendo com o esforço e sem chegar a lugar nenhum. “Quem diabos é você?”
Com um gesto rápido e experiente, Tyvar derrubou a espada das mãos de Tibalt. “Tyvar Kell. Príncipe dos elfos. O maior herói de Kaldheim.”
A fumaça estava começando a se dissipar da cabeça de Kaya agora; ela podia sentir onde Tibalt havia entrado em sua mente, a maneira como ele havia disfarçado sua presença em suas próprias dúvidas e medos. Quanto mais ela ouvia, pior ficava o cansaço e a dor. Essa magia era quase artística – nada como o trabalho desajeitado e descuidado que ela tinha visto dele até agora.
Mas então por que Tyvar era imune a isso? Ele investiu contra a fumaça, assim como ela. Por que suas dúvidas, suas inseguranças não sugavam lentamente a vida dele? A menos que… a menos que ele não tivesse nenhuma?
Pelos anciões, ela pensou. Ele é muito jovem, muito arrogante, muito burro para duvidar de si mesmo. E graças a todos os deuses de Kaldheim por isso.
Na frente dela, Tibalt se arrastou para trás, fogo vermelho se enrolando em uma das mãos, mas Tyvar o agarrou pelo colarinho e o lançou por cima do ombro, jogando o planinauta na ponta de um degrau de pedra. A respiração saiu de Tibalt em uma tosse seca, e com ela se foi a fumaça e o fogo, diminuindo até nada ao redor deles. Tyvar pressionou sua lâmina de metal no pescoço de Tibalt. “Agora, demônio, você vai nos contar o que você fez.”
Diante disso, Tibalt conseguiu sorrir. “Vá ver por si mesmo,” ele resmungou.
Kaya sentiu a energia se acumulando ao redor dele, um gosto forte e acre no ar. Ela tentou gritar, mas então houve o som de um fogo queimando lenha seca, e a parte de trás dos olhos de Tibalt se iluminou em laranja. Como papel em chamas, seu corpo se dissolveu em uma massa de cinzas alaranjadas e Tyvar cambaleou para trás.
“Ele,” gaguejou o elfo. “Ele-“
“Transplanou. Sim,” disse Kaya, levantando-se do chão. “Tyvar… obrigado. Por me ajudar nisso.”
“Claro,” ele disse, recuperando-se. “Mas e se ele voltar?”
“Ele não pode. Não por um tempo, e se ele fizer isso, ele não será uma ameaça para nós. É preciso muita magia para saltar entre Planos. Ele vai precisar de um tempo para recarregar.”
“Ah,” disse Tyvar. “Então nós ganhamos? Acabou?”
Kaya olhou para o pico da montanha, onde aquelas luzes estranhas continuavam a coruscar e ondular no céu nublado de cinzas. “Não. Eu não acho que seja o caso.”
Em qualquer outro dia, talvez a visão de um grande poço de sangue no cone da montanha abaixo deles valesse um momento de atenção. Mas do pico do Bloodcrag, eles tinham uma visão clara da fenda no céu. Ela se estendia de ponta a ponta, de onde eles estavam até o meio do lago de magma que haviam atravessado; Kaya não sabia se as pesadas nuvens de cinzas haviam bloqueado sua visão ou se era nova, uma ferida recente feita durante a ascensão inicial. Ao longo das bordas do rasgo, derramando-se e cobrindo o céu, irradiava aquela luz multicolorida e mutável.
“Por todos os reinos,” murmurou Tyvar.
Lá dentro, Kaya podia ver um quadro caleidoscópico de paisagens: montanhas altas e escarpadas, fortalezas de gelo, planícies de grama alta e amarela. Parecia que ela estava vendo todo o Multiverso, todos os planos abertos em um golpe totalmente errado.
“Alguma chance de você saber como desfazer isso? Talvez com a espada?” ela disse. Eles a trouxeram com eles, enfiada no cinto de Tyvar.
Ele balançou sua cabeça. “Meus talentos têm seus limites, sabe como é.”
Apesar de tudo – o fedor férreo de sangue, o rasgo no céu – aquilo forçou uma risada de Kaya. Mas morreu em sua garganta quando ela viu as primeiras figuras surgindo do lago ardente bem abaixo deles. A cada batida de suas asas de couro, eles subiam mais alto no ar, portando espadas e lanças, alabardas e martelos, o peso das armas e armaduras os arrastando, mas não os impedindo de seu progresso constante e terrível. Devia ter milhares deles, todos indo para aquele buraco no céu. O convite para pilhar, queimar, destruir não apenas um mundo, mas todos os mundos que este plano tinha a oferecer. No centro deles, erguendo-se de um navio com dois vastos mastros de fogo, estava um demônio que superava todos os outros. Em uma das mãos ele arrastava um grande machado de lâmina dupla; ele parecia estar batendo suas asas com fúria maníaca, passando pelos outros em sua necessidade de fuga. Ela sabia o nome dele, mesmo antes de Tyvar sussurrá-lo, estupefato. Ela tinha ouvido falar várias vezes durante seu tempo com os Pressageiros: Varragoth.
Kaya se virou para Tyvar, que ainda estava olhando para o agrupamento profano que se erguia diante deles. “Tyvar, temos que ir. Este Plano está prestes a se despedaçar.”
Ele não pareceu ouvi-la. “Precisamos detê-los. Precisamos avisar quem está do outro lado!”
“Tyvar,” ela disse, gentilmente. “Acabou. Você é um grande guerreiro, não me entenda mal, mas o maior guerreiro da história não poderia mudar o que está para acontecer.” Ela já podia ver demônios atravessando a fenda, suas grandes batidas de asas levando-os para uma nova presa. “Nós tentamos. Agora tudo o que podemos fazer é continuar vivos. Ir para o próximo avião, tente fazer melhor—”
Ela tentou colocar a mão nas costas dele, mas ele se afastou dela. “Então é isso que a sua espécie faz – desaparece assim que o mundo vai para uma direção que você não gosta. Fogem assim que as coisas ficam difíceis. No fim das contas, você e aquele Tibalt não são tão diferentes.”
As palavras a atingiram com mais força do que ela esperava. No momento em que ela começou a formular uma resposta – algo sobre não ser tão cabeça-dura, algo sobre não se matar – Tyvar já havia aberto um Caminho dos Presságios. Ele se virou para ela. “Se é isso que significa ser um planinauta, não quero fazer parte disso.”
Com isso, ele atravessou o portal.
A energia que Kaya estava reunindo para transplanar ainda pairava no ar ao seu redor, uma pressão inominada faltando uma válvula. Ela ainda poderia ir. Ela ainda deveria ir. Era a escolha inteligente. Era o código de conduta dela.
Mas ela não podia deixar de pensar naquelas vozes em sua cabeça. Como ela as ouvia, de uma forma ou de outra, desde muito antes de conhecer Tibalt ou Tyvar.
Kaya xingou, respirou fundo e entrou no portal atrás dele.
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