Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

EPISÓDIO 01: CORAÇÃO PURO

K. Arsenault Rivera

Escreveu os arcos de Innistrad: Caçada à Meia-Noite, Voto Carmesim e Marcha das Máquinas.

Era uma vez um rei que morava em Eldraine, um bom rei, que tinha ao seu lado uma boa rainha. Juntos, eles tiveram quatro bons filhos, e aqueles que viveram no reino viveram felizes, sabendo que permaneceriam em boas mãos durante as próximas gerações.

Mas o bom rei está morto — morreu defendendo sua família até o fim — e a rainha também está morta. Todas as suas superstições, suas defesas, toda a sua bondade não significaram nada diante da invasão phyrexiana. As gerações que deveriam ter vivido em paz estão agora em valas comuns abaixo de charnecas e prados revirados.

Os cavaleiros que repeliram a invasão – tanto os que foram como mercenários quanto aqueles que ainda se apegavam aos seus valores – chamam Will de Rei Menino. E, não importa o quanto ela desejasse que fosse diferente, Rowan não pode culpá-los.

A cavaleira que eles vieram encontrar proporciona uma comparação fácil. Amassados e rasgos marcam sua armadura, contando a história de sua bravura tão claramente quanto letras em uma página. Seu belo rosto é marcado com cicatrizes conquistadas em valente serviço. Seu martelo sozinho é quase do tamanho de Will. O braço que ela perdeu na luta contra os phyrexianos foi substituído por madeira encantada – um presente das fadas que levanta mais perguntas do que respostas.

E há muitas perguntas em torno dessa mulher. Nos últimos seis meses, ela vem exigindo tributo das aldeias vizinhas em troca de seus serviços para afastar os “invasores”. Mas os invasores em questão, bem, eles sempre parecem usar as mesmas cores dela. Apesar disso, os moradores têm carinho por ela – e é esse carinho que levou Will a procurá-la para uma conversa.

“Syr Imodane,” Will diz. Ele inclina a cabeça, oferecendo a mão para a cavaleira. “Boas notícias para você. Gostaria de agradecer por me receber entre você e os seus.”

A cavaleira não se move de seu trono improvisado. A lenda dizia que ela o havia construído a partir dos corpos dos phyrexianos derrotados, e certamente parecia ser verdade, devido a todos os ângulos afiados e bordas. Ela está sentada com uma perna apoiada em seu colo, os olhos estreitados para Will.

“Rainha Imodane,” ela diz.

“Ah, uma rainha. Então podemos fazer acordos como iguais,” Will diz. Ele oferece um sorriso amigável, embora Rowan consiga ver as rachaduras em sua máscara.

Os cavaleiros de Imodane riem. Ela também ri, seus ombros subindo e descendo. “Ah, estamos além das palavras, Reizinho. A única razão pela qual concordei com essa pequena reunião foi para ver se você era tão patético quanto eu havia ouvido. E é.”

“Veja como—” Rowan começa, mas Will levanta a mão para interrompê-la. A raiva ferve no fundo do estômago dela.

O sorriso do irmão nunca deixa completamente seu rosto. “Patético, é isso que você pensa de mim?”

“Você não me deu motivos para pensar o contrário,” diz Imodane. “Onde você estava durante a Invasão? Certamente não era no campo de batalha.”

“Veja como fala,” Rowan interrompe. Eles podem não ter estado no campo de batalha, mas lutaram suas próprias batalhas dentro do castelo.

Will a ignora e diz: “E que tal um duelo? Se eu te der motivos para pensar o contrário, você se curva. Sem mais saques, sem mais fingimento do trono. Em honra ao seu serviço à coroa, você poderá permanecer como um de nossos vassalos e campeões, desde que aja de acordo.”

A calma dele só deixa Rowan mais irritada. O poder lateja em seu sangue. Ela flexiona os dedos, das palmas para os punhos, tentando enterrar seus sentimentos.

Imodane coça uma das cicatrizes ao longo da mandíbula. “E se eu vencer?”

Will faz um gesto para os arautos atrás deles. Ela sabe o que ele está prestes a dizer, e já odeia que ele vá dizer isso. “Então eu e os meus te seguiremos. Eu vou entregar a coroa de Eldraine. Você será a Grande Rainha em nome e ações.”

Ele não a havia consultado sobre isso. Se tivesse, ela teria dito o quão tolo era aquilo. Will pode se sair bem em algumas lutas, é verdade. Mas contra uma mulher como Imodane, ele tem tanta chance quanto uma formiga diante de um leão. Sua mãe poderia conseguir isso, até mesmo seu pai, mas Will?

“Deixe-me fazer isso,” ela sussurra para seu irmão. “Eu posso lidar com ela.”

“Eu ficarei bem,” Will diz.

“O martelo dela é maior do que você. Will, por favor. Não há necessidade de mais de nós se machucar.”

Ela precisa reconhecer uma coisa – o olhar dele está mais determinado do que alguns meses atrás. “Se isso nos trouxer estabilidade, não me importo em derramar meu próprio sangue,” ele diz. “Além disso, ela vai perceber que eu não recuo de uma luta.”

Você perderá mais do que apenas seu sangue se fizer isso.

Ela não irá te respeitar se te ver derrotado diante dela.

Estou aqui, por que você não confia em mim?

A morte paira no ar em Eldraine; os laços familiares a mantêm presa. Ela não pode fazer de seu irmão um tolo. Não em um lugar tão público como este. Além disso, ele tem treinado incansavelmente todas as manhãs. Ele percorreu um longo caminho desde o garoto desajeitado que ela conhecia.

Uma cavaleira saqueadora como Imodane tem espaços liberados para combates. De que outra forma seus subordinados poderiam canalizar sua raiva entre as investidas? A grama aqui está bem desgastada, a terra compacta. De um lado, os rebeldes de Imodane sentam-se encarando-os em suas armaduras improvisadas. Nada os une, exceto a fé em Imodane, mas para ela, eles parecem mais felizes do que seus próprios irmãos e irmãs de armas. Os cavaleiros do Vale Arden podem vestir roupas mais finas, sim, e eles têm um lugar para dormir quando muitos não têm – mas sua fé e lealdade estão com o antigo rei.

O Bom Rei.

Rowan respira fundo.

Seu irmão assume seu lugar.

Um corneteiro toca o chifre.

Arte de Chris Rahn

Há muito tempo os cavaleiros se enfrentam em campos de batalha e campos de glória. Muitas de suas memórias a mostram saltando no colo de seu pai enquanto os observava, fazendo perguntas sobre tudo o que via, afirmando com confiança perfeita que um dia ela também faria parte deles. Seu pai sempre garantia que ela estava certa. Quando finalmente participou de seu primeiro torneio, sua alegria inflamou os corações de toda a família e, assim como lenha em chamas, cresceu mais forte.

Phyrexia roubou isso dela.

Agora, quando ela vê Will assumir uma postura de luta, ela vê o rosto de seu pai se refletindo no dele. Imodane se transforma em uma monstruosidade espinhosa, determinada a causar destruição.

Rowan aperta firmemente a espada. Ela tenta se ancorar ao momento presente através de seu peso, da sensação do couro contra seus dedos. Vai ficar tudo bem. Desta vez não é como daquela vez.

Imodane faz o primeiro movimento, correndo em direção a Will com seu grande martelo em punho. Rowan estremece, mas Will tem tudo sob controle. Ele cria uma explosão de gelo no chão, deixando-o escorregadio. O ímpeto de Imodane a leva a uma queda desajeitada. Incapaz de se recuperar, ela cai de cara no gelo. Até mesmo seus rebeldes não conseguem evitar rir.

Qualquer esperança que eles tinham de um duelo honroso se foi. Imodane não leva bem o fato de ser feita de tola.

Chamas irrompem da cabeça de seu martelo. O gelo que cobria o campo derrete, o solo sedento absorve a umidade com avidez. Imodane se levanta e, com um braço poderoso, ergue o martelo acima da cabeça.

Will consegue evitar o golpe destruidor, mas por muito pouco, jogando-se para o lado. O movimento de um novato completo: ele não consegue recuperar o equilíbrio antes de também cair ao chão.

E Imodane consegue erguer seu martelo mais rápido do que Will consegue se levantar novamente.

Rowan sente a garganta apertar. O medo a paralisa. Cada segundo de indecisão a consome por dentro.

Ela odeia isso. Isso não é quem ela é.

Ela não permitirá que isso aconteça.

Todo a raiva que ela sentiu naquele momento, ao assistir a morte de seu pai, toda a tristeza que ela sentiu depois – como uma corrente elétrica através de um fio, ela permite que elas percorram por ela, sem impedimentos.

Mas há algo mais vindo junto com a raiva, a tristeza. Algo novo e terrível. Rowan ainda não sabe, mas como um veneno ela percorre suas veias, incendiando-a.

Nomear o que sai das pontas de seus dedos de raio é como chamar um caldeirão de dedal. Os próprios céus tremem diante do espetáculo; nuvens escuras se afastam para permitir que o rei dos elementos carregue seu poder majestoso. Quando o estrondo do trovão os faz cair de joelhos, já se passaram cinco segundos completos.

Somente quando a poeira assenta é que ela percebe o que fez.

Arte de Alexandr Leskinen

Gerações depois, eles chamarão esta montanha de “Montanha Corta-Tempestades”. Com um raio como sua lâmina, Rowan abriu uma fenda enorme no lado do pico mais próximo. Gigantes não conseguiriam igualá-la, não importa o quanto tentassem.

As pontas dos dedos formigam, o coração dela dispara no peito. Ela encara a própria mão, a fenda enorme, incrédula. Poder como esse não existe. Onde ela o encontrou?

“Rowan?” Will soa horrorizado. Ele também parece horrorizado. Até Imodane ficou pálida de terror. O jeito como ela está olhando para Rowan é como as pessoas olhavam quando…

Sim, eles estão com medo dela.

A língua de Rowan gruda no céu da boca. Ela não consegue pensar em nada para dizer, então ela se mantém firme, erguida. Se ela alcançar sua espada, ainda assim ela projetará poder…

Mas no momento em que ela faz o gesto, Imodane larga o martelo, vira as costas e foge. As árvores a engolem antes que qualquer um deles possa descobrir como impedi-la.

Isso não é totalmente verdade. Will teria conseguido. Um único raio de gelo teria resolvido, mas ele permanece no chão, olhando para cima, para Rowan. Mesmo quando ela o ajuda a se levantar, ele não desvia os olhos dela. “O que você fez?” ele pergunta.

Ela não está pronta para responder a isso. “Você deveria ter me deixado lutar. Você nunca deveria ter feito isso sozinho; você sabe que não tem o treinamento…”

Olhos em suas costas. Espadas desembainhadas atrás deles. Seus sentidos de guerreira estão alerta. Imodane pode ter fugido, mas seus rebeldes não. E sem nenhuma liderança clara, todos eles estão procurando uma oportunidade para se destacarem.

“Nós podemos conversar sobre isso mais tarde,” ela diz. “Quando estivermos fora dessa confusão.”

Era uma vez uma cavaleira boa e nobre que servia no Castelo Brasoreth com seus companheiros, que bebia bastante do vinho do festival e se gabava tanto quanto qualquer homem. Forte de braço, porém ainda mais forte de coração.

Aquela mulher morreu meses atrás. Imodane é tudo o que restou.

Ela corre, o medo emprestando pés ágeis, através das densas moitas e sobre galhos caídos.

Mas é assim que as coisas são: sempre que alguém foge do passado, deve observar cuidadosamente o futuro.

Imodane não percebe. Nem mesmo percebe o que aconteceu até que seu pé aterra, além de todo pensamento e razão, sobre uma pedra fria.

Pedra talhada no meio da terra selvagem.

A atenção retorna. Com arrepios na coluna, ela olha ao redor como se fosse a primeira vez.

Onde quer que ela estivesse, as florestas desapareceram. Ela está em um palácio, uma sala do trono cintilante e etérea. Música em tons estranhos encanta seus ouvidos; ela sente o cheiro de vinho, frutas maduras e perfume. Ao redor, a paisagem muda tão facilmente quanto a música – paredes se transformam em janelas para um reino de abundância; janelas se tornam portais para sabe-se lá onde. Se ela tentar, acredita que poderia enxergar através das estruturas nebulosas, mas não quer tentar. Há coisas que os mortais ainda não devem conhecer. Embora o trono diante dela esteja envolto em sombras, ao vê-lo ela sabe onde deve ter chegado.

Imodane cai de joelhos. “Perdoe-me, Vossa Majestade, não tive a intenção de invadir seu espaço.”

Dois olhos, dourados como hidromel, brilham na escuridão. “Não há necessidade de desculpas. Você foi convocada.”

Ela deseja responder, mas a visão deste soberano delicado a deixou sem palavras.

Uma risada gentil e cruel acaricia suas bochechas. “Pretensa Rainha. Aventureira outrora corajosa. Diga-me…” A mão do senhor fey segura o queixo de Imodane e inclina seu rosto para cima. “Você é pura de coração?”

Há uma vila distante de tudo isso.

A vila se encontra em uma extremidade do Reino tão remota que, no cotidiano, os nomes de reis e rainhas nunca são mencionados pelos seus habitantes. Visitas anuais de um único comerciante ambulante servem como uma espécie de feriado. Seja qual for o caminho que o comerciante percorre para encontrar esse lugar, ele não o compartilhou com o mundo, pois até mesmo os phyrexianos negligenciaram esse local.

Talvez eles não fossem fãs de ovelhas.

Há mais ovelhas na vila do que pessoas, pelo menos cinco vezes mais. Quando as pessoas dizem a palavra “Orrinshire”, a palavra “lã” inevitavelmente a acompanha.

Kellan não gosta daqui. E enquanto ele se esgueira pela porta da pequena casa de sua família, ele sabe que o sentimento é mútuo. Ele apenas espera que sua mãe não perceba os sinais.

Mas as mães são dotadas de muitos talentos mágicos, entre eles a habilidade sobrenatural de fazer perguntas que seus filhos prefeririam que não fossem feitas. Quando Kellan entra pela porta, sua mãe levanta os olhos da sua roca – e ao fazê-lo, seu rosto vai da alegria à preocupação.

“Bem-vindo de volta, querido… ah, não. Você está machucado?”

Ele tenta fazê-la mudar de ideia antes que ela se levante, mas não adianta. Ela atravessa a curta distância num piscar de olhos. Já está olhando para os arranhões em sua bochecha, as pequenas gotas de sangue em seus antebraços.

Kellan decide olhar para o chão em vez de olhar para cima, para sua mãe. “Não é nada demais,” ele murmura.

“Não é nada demais?” ela repete. Dos vincos de seu capuz, ela tira um prego. “Kellan, o que é isso? O que eles fizeram com você lá fora?”

Ele faz uma careta. Ele achou que tinha tirado todos, mas deveria saber que haveria um escondido em algum lugar. “Foi só… precisamos falar sobre isso?”

Ele não precisa ver o rosto de sua mãe para saber que o coração dela está afundando. Ela tira as aparas de teixo do cabelo de Kellan com um fungar. “Ah, querido, me desculpe. Não precisamos falar se você não quiser.” Depois de respirar fundo para se acalmar, ela vira a cabeça e grita. “Ronald! Ronald, traga água do poço para mim!”

Kellan faz uma careta quando seu padrasto responde com um grito. Quando sua mãe o conduz para sentar-se à mesa, ele se joga na cadeira, com um bico no rosto, encolhendo-se como uma marionete cujas cordas foram cortadas. Sim, exatamente como uma marionete – ele é magro e pequeno para um garoto de dezesseis anos. Isso é ainda mais motivo para os outros garotos o terem escolhido como alvo. Ele ainda não encara o olhar de sua mãe, nem mesmo quando ela pega um pano limpo e começa a limpar o sangue de sua pele morena.

“Foram os filhos dos Cotter que fizeram isso?” ela pergunta. “Eu devo cinco novelos para Matilda, posso conversar com ela enquanto os entrego…”

Kellan suspira. Ele não consegue encontrar coragem para mentir. “Não é culpa deles.”

“Se foram eles que te machucaram, não consigo ver como não seria culpa deles,” sua mãe responde.

Sorrisos largos. Risadas e zombarias enquanto ele corria deles. Você não é daqui, mestiço.

“Eles me fizeram uma pergunta, eu respondi errado, é só isso,” Kellan diz. Ele ouve os passos pesados ​​do seu padrasto, a abertura da porta.

“Que tipo de pergunta justifica esse tipo de tratamento?” sua mãe diz. “Kellan, querido, aconteça o que acontecer, nada disso é culpa sua. Você não respondeu errado. Esses garotos, eles têm…”

“Eles têm medo de mim, eu acho,” Kellan diz. “Eles acham que a Maldição do Sono é minha culpa.”

Seu padrasto chega; o balde para abruptamente ao lado deles. “Quem tem medo do nosso Kellan? Uau, o que aconteceu?”

“Não é nada demais,” Kellan diz. Ele quer levantar e se esconder, para que parem de olhar para ele e para os cortes em seu rosto, mas ele sabe que isso não vai acontecer.

“Os filhos dos Cotter. Olhe o que eles jogaram nele,” sua mãe diz, tirando mais um prego de suas roupas. “E olhe o cabelo dele! Não faço ideia do que passa pela cabeça deles…”

Um suave hmpf de Ronald. Ele tira uma lasca de madeira do cabelo castanho ondulado de Kellan e a cheira. “Teixo, e apostaria que esse prego é de ferro frio. É isso mesmo, Kellan?”

Mordendo o lábio, Kellan assente com a cabeça.

Sua mãe interrompe o gesto. “A pergunta que eles te fizeram…”

Ele ainda não olha. “Eles perguntaram se era verdade que meu verdadeiro pai era…”

O prego cai entre os três.

Ronald é o primeiro a quebrar o silêncio. Ele coloca uma mão no ombro de Kellan. “Não importa o que digam, filho. Tudo que importa é quem você é, não de onde você é. E quem você é… é nosso garoto.”

Kellan engole em seco. A pergunta é quase assustadora demais para ser feita, mas ele tem que ser corajoso. Heróis em todas as histórias são corajosos. “Mas…, mas e se for verdade, e isso é quem eu sou? Não pertenço ao bosque?”

“O bosque não é o que você pensa,” sua mãe diz. “Há perigos lá que você ainda não pode imaginar, meu doce menino. Quando você for mais velho, nós podemos enfrentá-los juntos. Mas por enquanto…” Sua mãe coloca os braços em volta dele. Por um momento, ele não tem certeza de quem está abraçando quem. “Você pertence a este lugar,” sua mãe diz. “Conosco. Não importa o que os outros digam.”

Mas não é a primeira vez que ela diz isso a ele, nem a primeira vez que todos se abraçam.

E por mais que Kellan ame sua família, quando ele olha para a floresta…

Quando ele olha para a floresta, tudo o que ele sente é saudade.

O Castelo do Vale Arden encontra-se em ruínas. Meio queimado e abandonado, não é o lar adequado para um pretenso Grande Rei e sua corte. Will passou a residir no Castelo de Vantreza. Talvez ele espere que o conhecimento que está infiltrado na pedra lhe dê sabedoria.

Rowan não está tão segura disso. Embora esteja na sala de guerra improvisada de seu irmão há quinze minutos, esta é a primeira vez que ele percebe que ela está lá. Não importa se os guardas a anunciaram, não importa quantas vezes ela limpou a garganta, seus papéis o interessaram mais. Ela não pode culpá-lo por isso, não inteiramente; como rei em exercício, Will está enterrado sob uma pilha de papelada mais alta do que os dois juntos. Alianças, arranjos de impostos, juramentos de fidelidade e condenações ardentes – é impossível dizer qual é qual quando a pilha é tão alta.

Claro, ela pode culpá-lo por ter assumido o título em primeiro lugar.

Está claro o quanto tudo isso tem acabado com ele. Há bolsas sob seus olhos e uma barbicha em seu queixo. O olho roxo que ele conseguiu durante a luta contra Imodane ainda não se curou. Ou Will não quis se incomodar em pedir Cerise para curá-lo ou ele está tentando fazer uma declaração silenciosa. Deve ser a última opção – se Cerise tivesse dado uma olhada nele, ele teria ido embora, independentemente do que ele queria.

“Estamos indo embora,” ela disse.

Will olha para ela. Sua própria irmã gêmea, e ele não a reconhece. Ele acha que pode governar o reino assim? “Não pense com seu braço de espada, Rowan,” ele diz, soando muito mais como um pai ameaçado do que seu próprio pai. “Nossos irmãos precisam de nós. Nosso povo precisa de nós.”

“Eu já disse a Hazel e Erec que estarei fora por um tempo, e acho que esta é a melhor coisa que podemos fazer pelo Reino,” ela diz. Ela tinha um discurso em mente antes de vir para cá, mas descobre agora que as palavras mudaram. “Olhe para você, Will. Você está exausto. Os soldados me disseram que você não dorme há dois dias, e olhando para você agora, eu acredito. A notícia vai se espalhar por todo o reino sobre o que aconteceu nas falésias…”

“—Uma situação que poderíamos ter evitado se você tivesse confiado em mim,” ele corta, afiado como gelo. Will se senta e põe a mão no queixo. Sem quebrar o contato visual, ele pega uma carta. “O Marquês de Roxburgh me escreveu hoje. Ele diz que não vai dobrar o joelho a um homem que deixa sua irmã infligir tal dano aos outros. ‘Um covarde não pode ser o Grande Rei de Eldraine,’ Não é a única carta desse tipo que recebi. Eu queria que você tivesse confiado mais em mim.”

Há um pico de dor na têmpora de Rowan, uma dor de cabeça que ela tem lidado ultimamente, que corroeu sua paciência. Ela aperta os olhos fechados. “Você estaria morto se eu não tivesse interferido. Mas ele está certo sobre uma coisa: você não é o verdadeiro Grande Rei de Eldraine. Você não foi para a Grande Missão.”

“Não me repreenda por uma tecnicalidade. O Reino precisa de um Grande Rei; Eu fiz o que eu tinha que fazer. E eu teria feito isso nas falésias também. Eu tinha um plano, Rowan. Nem sempre preciso de você para me salvar,” ele diz. “Temos que tomar cuidado com a impressão que estamos dando. As pessoas querem estar unidas, e eu quero uni-las. Explodir um buraco numa montanha não é uma ideia de unidade para ninguém. Eu poderia ter conversado com ela, encontrado um caminho para seguir, mas agora ela foi embora para o bosque e seus rebeldes têm motivos para nos temer.”

“E daí? Deixe que tenham medo. Duvido que qualquer um deles vai invadir o campo a qualquer momento com a surra que receberam. Eu prefiro ter mil bandidos vivendo com medo de mim do que uma dúzia de fazendeiros vivendo com medo de bandidos,” Rowan diz.

Seu irmão segura o queixo, belisca a ponta do seu nariz. “Não é o que nossos pais teriam feito.”

A dor de cabeça batendo em sua têmpora, sua própria raiva engarrafada, a faísca de seu sangue – quem pode dizer o que é que faz com que ela exploda para ele? Mas ela explode. “Isso é nobre, Will. Nossos pais não ignorariam uma maldição que está se espalhando pelo reino. Ou a ‘unidade’ vai resolver a Maldição do Sono, também? Eu não sabia que todas aquelas pessoas precisavam de um aperto de mão e uma caneca de cerveja. E antes que você esqueça, nossos pais ganharam seus títulos. Você decidiu chamar-se ‘Grande Rei’ porque achava que isso lhe convinha, não importava o quanto eu dissesse que o contrário.”

Ela foi longe demais, ela sabe que foi. Mas tudo bem. Eles não precisam mais falar sobre isso. Tudo o que eles precisam focar é encontrar uma maneira de resolver o problema. A Maldição do Sono talvez tenha parado os phyrexianos, mas o Reino tem um acordo fétido a pagar por isso. Agora ela está se espalhando entre os cidadãos de Eldraine sem fim à vista. Nada pode despertar os sonhadores – nem o beijo do verdadeiro amor, nem um balde de água gelada.

Assim que eles conseguirem resolver o problema da Maldição do Sono, o povo se reunirá atrás deles. As melhores mentes de Vantreza não desvendaram aquilo nos meses em que tiveram para  estudar o problema – mas as melhores mentes de Vantreza não têm acesso ao Multiverso.

Os gêmeos sim.

Além disso, afasta-os daqui. Do castelo que não é nem deles, das memórias.

E apesar de todas as suas diferenças, eles compartilham pelo menos uma coisa em comum: a centelha deles. Rowan busca seu poder como ela já fez tantas vezes antes.

Will fica tenso. “Rowan, não podemos simplesmente sair—”

“Nós também não vamos ficar sentados aqui,” ela diz. “Strixhaven nos ensinou a encontrar soluções mágicas para os nossos problemas. Isso é o que precisamos fazer.”

“Eu sou o Grande Rei. Eu tenho que ficar aqui!”

Estranho. Eles não deveriam ter ido embora agora? Deve ser culpa do Will – sua petulância está prendendo-os. Ou talvez sua irritante insistência em um título não merecido. “Seu dever é com Eldraine, e o dever chama. Você está arruinando meu foco.”

Desta vez, ela coloca todo o seu foco em transplanar – fecha os olhos, força-se a olhar para além da dor esfaqueadora em sua cabeça, suas próprias frustrações.

Mas fechar os olhos é um erro. Mais uma vez ela o vê pelas longas e curvas salas do Castelo do Vale Arden: seu pai, espada na mão; o gigante phyrexiano que ele está lutando. Sua madrasta e seus irmãos fugindo, direto em direção a Will e Rowan, medo nos olhos das crianças e determinação em sua madrasta.

“Mantenha-os seguros e viva bem,” Linden diz.

Ela sabe como esta história termina.

Ela não quer vê-lo.

“…Rowan?” Will diz. Pela primeira vez desde que iniciaram esta conversa, ele parece preocupado. “Você está bem?”

Seu peito se sente apertado, sua cabeça pode muito bem ter um espeto atravessado, e sempre que ela fecha os olhos, ela vê seu pai morto na ponta da lâmina de um phyrexiano.

E, como se tirar seus pais e arruinar seu relacionamento com seu irmão não fosse suficiente, os phyrexianos parecem ter tirado algo mais dela. Ela não consegue limpar a mente o suficiente para transplanar. A centelha – parece não responder. Na verdade, ela não consegue sentir nada.

“Não”, ela diz, sem rodeios. “Tudo bem. Fique se quiser. Estou indo.”

A cada lua nova, Kellan e sua mãe caminham até um velho salgueiro na beira da floresta. Com a casca nas suas costas e as folhas protegendo seus olhos, a mãe de Kellan conta histórias para ele. As estrelas dançam diante de seus olhos a cada palavra. Os vagalumes tornam-se os escudos brilhantes dos cavaleiros, que balançam suas espadas em forma de folhas.

Recentemente, em vez de um novo grupo de heróis, ele ouve falar de dois particularmente valorosos: uma jovem que fugiu do seu treinamento de bruxa da sebe e um rapaz que ela salvou da fúria de um troll. Pelas Terras Selvagens eles viajaram, enfrentando todos os tipos de feras e magos astutos.

Ele tem a sensação de saber quem eles são, mas está gostando de conhecê-los dessa forma.

Na noite de hoje, como em qualquer outra noite de lua nova, ele está quase correndo para o topo da colina. O cão pastor da família o segue, saltitando pela grama, cheio de energia apesar da hora.

“Acha que consegue chegar antes de mim?” Kellan indaga.

Hex late, e baba voa de suas bochechas prodigiosas.

Kellan sorri. Ele dá um tapinha em Hex, mas passa à frente dele ainda assim. Não há piedade quando se trata de competir com seu cão pastor.

Quando finalmente alcançam a árvore, ele está ofegante, porém mais feliz do que esteve o dia todo. Daqui da colina, o resto da vila parece tão distante quanto o Castelo do Vale Arden. Ele põe a mão na casca reconfortante do salgueiro e se vira. Sua mãe disse que chegaria em um instante – ele conseguia vê-la daqui.

Mas quando ele olha para longe, não é a aldeia que ele vê.

Pelo contrário, não é apenas a aldeia. À sua frente há um arco feito de pedra etérea e translúcida.

As histórias de sua mãe o prepararam um pouco. Ele sabe exatamente o que é: um convite para falar com uma das Grandes Fadas.

Quanto ao porquê de estar aqui…

A respiração de Kellan fica presa em seu peito. À direita do arco, ele consegue ver sua mãe subindo a colina correndo. Se ela conseguia ver aquilo, não disse uma palavra.

Ele poderia ficar aqui. Ele poderia esperar por ela, ignorando a porta até que ela desaparecesse.

Mas seus arranhões ainda doíam e as palavras de seus supostos companheiros ecoavam em sua mente. Você não é daqui.

Se eles estiverem certos… Será que seu pai finalmente o notou? Seu verdadeiro pai?

No momento em que Kellan tem o pensamento, sua mão está na estranha maçaneta. Hex late como uma tempestade. Cada latido era como uma martelada do coração de Kellan. Mas ele não pode vacilar – esta podia ser sua única chance. Se sua mãe o alcançasse, ela nunca o deixaria passar.

Kellan passa pelo arco. Um herói nunca hesita. Uma rajada de vento invisível o joga pelo resto do caminho e ele cai em um chão fresco e musgoso. Só quando ele se levanta é que percebe que a grama aqui é toda prateada; as árvores retorcidas carregam frutas preciosas. À distância, ele vê casas com telhado de palha grandes como montanhas, enquanto ao seu redor existem castelos em miniatura habitados por cavaleiros em miniatura em movimento.

Arte de Anna Steinbaurer

Quando repousa seus olhos – com um pouco de medo, agora – no horizonte mais uma vez, ele vê a escada, e em seu topo o trono. Há uma figura sentada nele.

Os humanos gostam tanto de chamar as coisas de belas quanto de respirar. Ao fazer isso, o significado da palavra foi desgastado, como uma montanha pode, ao longo dos séculos, tornar-se uma costa.

A razão para isso é simples: a verdadeira beleza, pura e inalterada, é suficiente para deixar o espectador sem sentido.

A figura que se senta no trono é tão bela quanto as próprias estrelas. Kellan, que nunca se aventurou longe de sua vila, não consegue compreender o que está vendo. Os planos do rosto da figura o menosprezam; o brilho de seu sorriso perverso rouba todos os pensamentos.

“Diga-me, herói corajoso… Você é verdadeiro de coração?”

É só um véu de nuvens em movimento – nuvens que não têm direito de estarem tão próximas ao chão – que dissipa o fascínio fatal de Kellan. O que as histórias diziam? Melhor evitar olhar para o rosto diretamente. Ele olha fixamente para o chão.

“Eu não sei. Eu acho que gostaria de ser,” ele diz.

“Isso não é resposta,” diz a figura. Suspira, da mesma forma que sua mãe quando imitava príncipes. “Você é realmente o filho do seu pai? Com tantas feridas assim, sem ter dado o dobro em troca?”

O coração dele pula uma batida dolorosa. “Então, é verdade? Sou meio-fada? Você conhece o meu pai? Espere, você é…?”

Talvez se ele olhasse melhor o rosto da figura, ele saberia. Ele anda para a frente – apenas para rosas cortarem seus pés.

“Cuidado, criança. O sangue que compele o ódio dos mortais oferece proteção aqui. Mas essa proteção é finita,” diz a figura. “Permaneça onde está e eu não farei nenhum movimento para impedi-lo, mas dê mais um passo, e você abandonará o vosso reino pelo meu.”

Ah! Este era o Senhor das Fadas. Quem mais poderia ser? Os joelhos de Kellan batem. Ele tenta se ajoelhar, como todos os cavaleiros. Ele se sente bobo. “Vossa Majestade.”

“Senhor Talion,” ele responde.

“Senhor Talion,” ele diz. “Você conhece meu pai?”

“Eu conheço muitas coisas. No entanto, se você sabe quem eu sou, e de onde você veio, você sabe que a nossa espécie não se rende a nada,” Talion responde e se inclina para a frente no trono, apoiando a cabeça em sua mão. “Temos nossas próprias leis. Preste-me um serviço, criança, e você terá suas respostas.”

Nossa espécie. Nossas próprias leis. Este lugar, com seus frutos ornamentados, com animais estranhos se movendo entre árvores estranhas. Estar aqui é como ficar na casa de um parente esquecido há muito tempo, sem saber qual o significado de qualquer coisa.

No entanto, as fadas não mentem. A mãe dele sempre foi clara sobre isso. Ao lidar com fadas, quanto mais direta a resposta, melhor. E isso parecia muito simples para ele.

“Do que você precisa?”

Talion entoa uma estranha melodia, tão adorável quanto uma canção de pássaros. Ao estalar os dedos, duas fadas aparecem em cada lado de Kellan, cada uma com uma tigela de frutas brilhantes. O estômago de Kellan balança ao ver, a garganta fica seca. “Você deve estar com fome.”

Mas sua mãe ensinou-lhe bem, e Talion havia dito: as fadas não fazem nada de graça. “Não, obrigado.”

Talion sorri. Com um movimento de mãos, ele dispensa as outras fadas.

“Aos negócios, então. Três bruxas dominam essa terra com o tormento do sono. Agatha, a Faminta, fica na espera perto de seu grande caldeirão, em busca de heróis para comer. Cruel Hylda tomou a coroa do inverno para si. Onde quer que haja amantes e senhores, você encontrará Eriette. Quem for corajoso o suficiente para derrotá-las, quebrará a maldição sobre o Reino, e por esse serviço, ganhará um benefício do meu repleto tesouro.”

Uma maldição sobre o Reino? Três bruxas? Talion precisa de um herói de verdade. As palmas das mãos de Kellan suam. A coisa mais corajosa que ele já fez foi passar por aquele arco. Ele nunca lutou uma batalha, nem completou uma missão. Mas como ele pode dizer não? Este lugar, estas pessoas… eles também são o sangue dele, não são? Talvez seu pai seja um cavaleiro feérico, atrevido e ousado; ou talvez um mago, astuto e inteligente. Quem quer que fosse, era alguém que Talion respeitava. Isso não devia significar algo?

Kellan quer saber mais sobre ele. Quer ser mais como ele, este homem que mora entre a grama de prata, em uma terra de beleza impossível. Sua mãe o vislumbrou uma vez e saiu – mas Kellan quer mais.

Se ele falhar, ele falhou. Mas se ele conseguir, ele finalmente saberá a verdade.

“Eu farei. Eu vou.”

Traduzido por Rissa Rodrigues

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