Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

PEÕES

Miguel Lopez

Narrou a invasão phyrexiana à Ixalan, o retorno de Teferi a Zalfir e as histórias secundárias da Guerra dos Irmãos.

Saheeli estava na areia branca de alguma praia solitária da costa norte de Ixalan. Ela se continha e contemplava enquanto simplesmente caminhava para o oceano. Brilhando azul no horizonte sem nuvens. Em outra vida, ela poderia atravessar aquela distância com um pensamento. Ela já havia viajado um pouco, mas exceto por breves momentos com Huatli, suas aventuras pelo Multiverso sempre foram motivadas por uma missão: salvar o Plano. Salvar todos os Planos. Até onde ela poderia ir agora?

Saheeli movimentou os calcanhares para frente e para trás, afundando um pouco na areia a cada batida suave das ondas na praia. Era um dia quente e a água em volta dos seus tornozelos estava fria. Salve os Planos, ela pensou. Havia tantos deles. Tantos para conhecer, tantas surpresas — muitos terrores, é verdade, mas, ainda assim, surpresas. Era tudo muito maior do que ela. E agora havia apenas um Plano, um oceano, uma terra desconhecida além do horizonte. Do infinito ao miseravelmente finito; o portal espiralado, o rasgo no Multiverso – uma Trilha do Presságio – que ela seguira até aqui se fechou atrás dela. Era tolice se arriscar, provavelmente. Um raro momento de agir antes de pensar.

Ela observou pequenos mariscos se contorcendo na areia ao redor de seus pés. Pequenas criaturas cegas e reativas, jogadas e tombadas através de um grande oceano para acabarem aqui com ela. Saheeli se abaixou, mergulhou as mãos na areia e pegou um punhado duplo. Ela soltou a maior parte, usando os dedos como peneira até que a areia fosse removida e restassem apenas mariscos.

“Olá,” Saheeli disse aos mariscos. Ela observou suas línguas brancas sondando as dobras de suas palmas, procurando uma saída.

“Onde você pensa que está indo?” Saheeli sussurrou.

Os mariscos a ignoraram e continuaram a procurar. Eventualmente, eles pararam, aceitando seu destino. Saheeli se ajoelhou, a água fria encharcando suas calças enroladas, e gentilmente colocou as mãos de volta na água. A onda seguinte levou os mariscos embora, atirando-os de volta para a areia onde cavaram e desapareceram, todos os vestígios deles levados pela água que recuava.

Ela tentou. Nada. Ela mergulhou a mão na água e na areia para impedir que caísse – um balanço breve e vertiginoso, consequência de agarrar e não encontrar nada.

A risada de Huatli a trouxe de volta ao presente. Ela se virou e viu Huatli e Pantlaza — seu novo companheiro quetzacama, um dos mais promissores de uma nova ninhada de raptores — correndo pelas ondas rasas, espirrando água e disparando um perto do outro. Huatli segurava uma espada de madeira que ela usava para guiar Pantlaza – teoricamente, isso era treinamento, a prática de chamar e falar de perto durante o combate, mas para Saheeli parecia a mesma coisa que uma brincadeira. A alegria no rosto de Huatli, os saltos e chilreios ansiosos de Pantlaza, o som de suas mandíbulas estalando o ar com excitação e a energia ilimitada da juventude.

Saheeli sorriu. Ela se levantou, tirando a água dos braços e das pernas. Ela acenou para Huatli, que veio correndo pelas ondas, com Pantlaza atrás.

“Parece que você e ele combinam bem,” Saheeli disse, ajeitando-se enquanto Huatli a abraçava.

“Ele é lindo,” riu a poeta-guerreira, sem fôlego, cheirando a suor, protetor solar e mar. “E estou exausta e embriagada de sol. Preciso me refrescar — vamos para a praia ou para a água?”

“Para a praia,” Saheeli disse. Ela beijou Huatli e empurrou-a para frente. Ela seguiu Huatli pela areia quente até a sombra da mata ciliar, onde se deitaram sobre uma toalha larga. Huatli remexeu em sua mochila e tirou um frasco de água, do qual bebeu e depois ofereceu a Saheeli.

“Certo,” Huatli disse, observando Saheeli beber. “O que você não está me contando?”

Saheeli sorriu novamente, suavemente. “É tão lindo aqui.”

“E você parece tão triste com isso,” Huatli disse. Ela semicerrou os olhos e olhou para o oceano, onde as ondas brilhavam e quebravam. “Você tentou transplanar de novo?”

“Sim,” Saheeli sussurrou. “Não senti nada.”

“É o pior,” Huatli disse. Ela passou um dedo pelo cabelo de Saheeli, girando-o lentamente. “Você sente um buraco. Um vácuo. Dor, como um membro que foi queimado pelo sol.”

Saheeli assentiu.

“Com minha centelha, me senti completa,” Huatli disse. “Uma parte de mim descoberta. Liberta. Agora que se foi,” Huatli colocou a mão em forma de concha diante do peito, como se segurasse o coração. Ela apertou a mão em punho, as juntas dos dedos estalando, depois balançou a mão – dissipando novamente o que já havia sido dissipado.

“Desculpe, meu bem, eu não queria trazer você para cá comigo,” Saheeli disse. “Não gosto de ficar triste na praia. Está tão bonito hoje.”

Huatli encolheu os ombros. “É bonito todos os dias,” ela disse.

Saheeli deu de ombros. Ela sacudiu o braço de Huatli. “Para de graça, estou realmente triste com isso e me sinto boba por estar triste com isso. Por um curto tempo fomos abençoadas pelo infinito; acho que nunca pensei que poderíamos perder essa bênção.”

“Não tem problema ficar triste,” Huatli disse. “É como você disse: perdemos um presente. Perdemos o Multiverso. Todas as suas histórias e todas as suas maravilhas.” Ela se sentou. “O que você acha que aconteceu?”

Saheeli sorriu. Huatli a conhecia bem – é claro que ela já havia pensado nisso.

“Existe uma regra,” Saheeli disse. “Uma lei da realidade que afirma que seus elementos fundamentais – mana, éter, essas coisas – não podem ser criados ou destruídos. Apenas alterados.” Saheeli repetiu a maneira como Huatli segurou sua mão com a sua e depois a moveu para longe do peito. “Movimento é mudança.”

“Então você acha que nossas centelhas ‘mudaram’?”

“Exato. Nossas centelhas foram movidas. Não destruídas,” Saheeli deixou cair a mão de volta no colo. “Você não pode destruir os elementos fundamentais da realidade. Vida e morte, ser e inexistência. É tudo o mesmo substrato, apenas a expressão muda.”

“E a localização.”

“E a localização,” concordou Saheeli.

“Onde?”

Saheeli encolheu os ombros. “Em algum lugar. Não sei.”

“Se elas foram levadas, podemos recuperá-las.”

“Talvez sim, talvez não.”

“Alguém pode,” Huatli sugeriu. Saheeli sorriu e desviou o olhar. “Enquanto isso,” Huatli disse, “temos Ixalan. E tudo isso.” Huatli apontou para o horizonte. “O que você acha que tem ali?”

“Não sei,” Saheeli disse. Ela olhou de volta para Huatli, que estava sorrindo. “O quê?”

“Eu também não sei,” Huatli disse. “Os piratas da Coalizão Brônzea podem saber, mas eu não. Oficialmente, o Império do Sol nunca navegou para o norte.” Ela se levantou, ofereceu a mão a Saheeli e a colocou de pé também. “Podemos ir juntas, sem pressa e descobrir. Explorar este mundo que é novo para você e para mim.”

Saheeli gostaria disso, ela pensou. Sem pressa, com Huatli. Ela se inclinou. “Ainda estou triste,” Saheeli disse, sussurrando, seus lábios roçando os de Huatli.

“Eu também,” Huatli respondeu. “Mas estamos aqui juntas. E podemos ir para lá juntas.”

Saheeli sorriu. Ela gostaria muito disso.

Arte de Kieran Yanner

Dias depois, Huatli e Saheeli integraram o conselho consultivo reunido na temporária sala do trono da cidadela de Orazca. O menino imperador, Apatzec Intli IV, viajou para cá com uma grande comitiva como parte de sua viagem pós-invasão e pós-coroação pelas terras sob seu domínio. Sua chegada a Orazca foi motivo de muita comemoração – o Imperador do Império do Sol, mais uma vez na Cidade do Ouro, lugar de lendas e possibilidades. O povo cantou e aplaudiu durante toda a sua chegada; embora o trabalho de reparar a cidade das feridas sofridas durante a invasão tenha continuado e progredido com vigor. Esta não era a reconstrução solene de uma cidade perdida; esta era a retomada triunfante da normalidade.

Intli IV agarrou uma quetzacama de tricô, brilhante e almofadada, chupou o dedo e lutou para permanecer acordado. Ele usava cores escuras e metais suaves, ainda de luto pela morte de seu pai no final da guerra. Este mundo, tal como o menino imperador, era novo e rico em possibilidades – e sobrecarregado pelas aspirações da velha guarda que sobreviveu. O conselho consultivo havia acabado de almoçar e a retirada vespertina do imperador se aproximava. Com o barulho suave dos atendentes limpando o almoço do conselho, o sussurro das conversas privadas e o barulho distante das ruas repovoadas de Orazca lá embaixo, o sono chamava.

Era uma tarde úmida, alternando entre o sol dourado e a chuva torrencial enquanto as nuvens do dia marchavam sobre a cidade. Saheeli suspirou e olhou para o grande panorama da dourada Orazca e da verde Ixalan mais adiante, espalhando-se no horizonte nebuloso. Ela tomou um gole de sua bebida doce e gelada de hibisco e bateu as unhas no vidro fino.

Lar. Por enquanto ou até o fim dos seus dias? Saheeli saboreou o delicado sabor do hibisco e depois mastigou um cubo de gelo, esmagando-o. Ela olhou para o conselho e para o menino imperador, sabendo que deveria prestar mais atenção, mas lutando contra uma profunda exaustão. Ela tomou outro gole de sua bebida, tentando se livrar do cansaço, e se forçou a repassar o que sabia novamente.

Apatzec Intli IV continuaria o governo de seu pai, mas o imperador anterior não havia planejado morrer nas mãos de um assassino phyrexiano: o menino subiu ao trono após a invasão, ainda uma criança, mal conseguindo assinar seu nome e muito menos compreender e influenciar a política de sua corte ou de seu império.

E quanta política! Logo após a chegada de Saheeli e o subsequente encalhamento em Ixalan, Huatli a ensinou o jogo que dominava esta alta corte. De um lado estava Atlacan Huicintli, tio do menino imperador e postumamente legitimado filho de criação do imperador anterior. Para os ingênuos, a incumbência de Atlacan era governar o dia-a-dia de Pachatupa como mordomo do imperador. Para qualquer pessoa com um mínimo de consciência política, o seu desejo pelo trono era evidente como o amanhecer.

Opondo-se a Atlacan estava Caztaca Huicintli, a Suma Sacerdotisa do Sol Trino e filha mais velha do falecido imperador. Antes de sua destruição na guerra phyrexiana, Caztaca detinha o domínio sobre Otepec, uma grande cidade de templos construídos em reverência ao Sol Trino. Enquanto o império trabalhava para reconstruir o seu domínio, ela residia em Tocatli, a cidadela imperial acima de Pachatupa, guiando o curso da fé e lecionando para o jovem imperador como sua tutora principal.

Uma situação volátil. Um império dividido entre tia e tio, ambos tentando influenciar o menino e moldar o futuro da nação de acordo com seus desejos. A história que levaria a este momento seria subvertida à medida que estes gigantes lutavam pelo comando, correndo contra o tempo para conquistar o coração e a mente do menino imperador antes que ele se tornasse suficientemente sábio para compreender que era apenas uma bela ferramenta para satisfazer a ambição deles.

Esta era a paz. Uma bebida doce, uma refeição de carne temperada, frutas cítricas e tédio. Saheeli ouvia parcialmente enquanto os poderosos do Império do Sol discutiam o curso das coisas que estavam por vir – traduzido para ela em um sussurro suave por Huatli, que estava sentada ao seu lado. Era estranho aquele momento chato: Saheeli tinha certeza de que deveria sentir algo mais do que tédio enquanto participava da luta pelo poder que se desenrolava diante dela sobre o leme do estado mais poderoso de Ixalan, mas considerando o terror enervante da guerra phyrexiana e a devastação de sua centelha, essa luta parecia tão pequena.

“Querida,” Huatli sussurrou, inclinando-se para interromper o momento de reflexão de Saheeli. “Eles querem saber a que distância estão seus autômatos. Seus mecanoquetzacamas.”

Arte de Cynthia Sheppard

“Mecano—” Saheeli fungou, sufocando uma risada. Os olhos de Huatli se arregalaram e Saheeli lembrou que o resto do conselho e o imperador estavam lá com eles. Ela transformou sua risada em uma tosse para limpar a garganta, ganhando um momento para se recompor. “Os mecanoquetzacamas, é claro,” ela disse, usando a palavra do imperador – na verdade, a palavra de Atlacan – para sua quetzacama de filigrana. “A produção está lenta no momento, mas…”

Atlacan falou, interrompendo-a.

“Por favor, levante-se quando se dirigir ao imperador,” Huatli traduziu, reservando um olhar penetrante para Atlacan.

Saheeli sabia que Huatli havia ocultado o pior do que Atlacan disse – ela entendia o suficiente de Itzocan – Alto e Baixo Imperial – para entender a essência daquilo. Ela obedeceu, levantando-se e alisando a frente da túnica. Huatli ficou ao lado dela, já que ela interpretaria. Saheeli cruzou as mãos diante de si e falou, de maneira uniforme e lenta, enquanto Huatli traduzia o que ela ainda não tinha vocabulário para articular.

“Produzimos cerca de uma dúzia das quetzacamas de filigrana diariamente,” Saheeli disse. “Meu primeiro grupo de engenheiros agora tem experiência suficiente para ensinar seus próprios alunos, o que alguns deles já começaram a fazer.”

“O imperador deseja saber por que a produção é lenta,” Huatli traduziu. “Nós lhe demos todos os lingotes que você precisava. Por que não temos um…” Huatli franziu a testa ao ouvir as palavras de Atlacan. “Por que não temos uma equipe completa de trabalhadores?” Ela terminou, com a testa ainda franzida para Atlacan, que se inclinara no ouvido do imperador, preparando-se para falar a resposta de Saheeli ao menino.

“Temos um problema de habilidades,” Saheeli disse. “É verdade que não nos faltam recursos e por isso sou sempre grata. A tua graça e generosidade não conhecem limites terrenos.” Saheeli fez uma cortesia para o menino imperador. “Mas a sobrecarga de ensinar e construir é pesada demais para ser vencida por mim e meus engenheiros. Embora os nossos armazéns estejam cheios, só temos algumas pessoas com experiência suficiente para montar as peças criadas por nossos artesãos.”

“Então você não pode cumprir o que foi prometido?” Atlacan perguntou.

“Não, Senhor Intendente,” Saheeli disse. “Podemos entregar o que o imperador pediu, mas levará mais tempo para cumprir. No nosso ritmo atual de produção, prevejo um atraso de seis a oito meses.” Saheeli sorriu em meio aos murmúrios de surpresa que se seguiram à tradução de Huatli. Ela deixou a consternação passar e continuou.

“Tenho toda a intenção de terminar este projeto conforme planejado,” Saheeli disse, levantando a voz para ser ouvida acima do barulho crescente de conversas paralelas, murmúrios e rumores. “Mandei um pedido de ajuda às faculdades de Strixhaven e ao Consulado em Ghirapur. Ambos os Planos abrigam cientistas e engenheiros experientes que trariam prestígio ao império.” Ela os estava perdendo, pensou. Melhor apelar aos sentimentos. “Assim como Huatli,” Saheeli disse, “perdi minha capacidade de andar nos Planos do Multiverso. Ixalan é meu lar, e o Império do Sol agora é o meu povo.”

“E o imperador é seu soberano,” Huatli traduziu, sua voz suave no eco desbotado do grito de Atlacan. “Cuja palavra é a palavra de Kinjalli, o comando de Tilonalli e a vontade de Ixalli. Você entregará as mecanoquetzacamas completas no tempo prometido, ou haverá consequências – consequências que qualquer servo do Império do Sol esperaria, e não a clemência dada aos nossos hóspedes.” Huatli ouviu o restante dos gritos de Atlacan, uma mão subindo pelas costas de Saheeli. “Ele não disse mais nada que precise ser traduzido,” ela sussurrou, balançando a cabeça.

Atlacan terminou, recompôs-se e depois acenou com a mão num gesto de desdém. Saheeli entendeu. Ela assentiu. Huatli falou por elas, implorando sua retirada e perdão, abençoando o jovem imperador, prometendo glória ao império e garantindo que o projeto seria concluído conforme prometido.

“Poetisa,” Atlacan gritou, detendo-as.

Huatli segurou o braço de Saheeli e apertou – um conforto. Estável.

“Ouvimos histórias e rumores sobre antigas câmaras muito abaixo desta cidade,” Atlacan disse. “Segredos há muito enterrados, apenas descobertos por nossos soldados durante suas patrulhas.”

“Câmaras?” Huatli perguntou. “Já estive no ar, acima e abaixo de Orazca. Não existe nenhuma câmara.”

“Talvez você tenha ido em todos os lugares,” Atlacan disse. “Mas não se aprofundou o suficiente para descobrir o que os soldados do próprio imperador encontraram.”

Huatli manteve o rosto sereno, mas Saheeli podia ver a veia pulsando perto de sua têmpora. “Eu gostaria de algum tempo para equipar e preparar meu grupo.”

Atlacan inclinou-se para o menino imperador, ignorando Huatli para sussurrar para a criança. O Imperador Intli IV ouviu, sorriu e assentiu. “Uma aventura,” ele disse, com a voz alta e forte.

“O imperador abençoa sua campanha,” Atlacan disse. “Você está dispensada. Vá e junte suas coisas.”

“Meu grupo-”

“Seu grupo permanecerá em Pachatupa,” Atlacan disse. “Demorará muito tempo para marchá-los até aqui. Em vez disso, você acompanhará Caparocti e seus lanceiros nesta jornada e servirá como os olhos do império. Eles foram instruídos a esperar por você e aguardar sua chegada antes de partirem.”

“Como quiser,” Huatli disse.

“Como o imperador ordena,” Atlacan corrigiu.

Huatli não disse nada. Ela fez uma reverência e conduziu Saheeli para fora da sala do trono.

“O que foi?” Saheeli perguntou.

“Ordens, nada demais,” Huatli disse. Ela levou um dedo aos lábios, mandando-a calar. “Precisamos ir a algum lugar privado. Siga-me.”

As ruas de Orazca estavam cheias e barulhentas, quentes e ricas com o cheiro de carnes cozidas, temperos e fábricas à beira da estrada. Vendedores ambulantes e camelôs gritavam suas ofertas enquanto os compradores negociavam em grupos. As crianças riam e corriam atrás dos pequenos quetzacamas, enquanto os animais maiores bufavam e rugiam, conduzidos pelos seus treinadores, transportando carruagens de mercadorias para a cidade, vindas das terras cicatrizadas de fora das muralhas. O império, tão perto da morte durante a invasão, agora estava vivo, embora ferido: quetzacamas transportavam carregamentos de alvenaria quebrada e detritos contaminados para longe da cidade, para lixões distantes. Mesmo que o óleo tivesse ficado inerte, os líderes da cidade não correriam o risco de exposição. O óleo ficou inerte tão repentinamente quanto chegou, e não havia garantia de que permaneceria inofensivo.

Huatli guiou Saheeli pelas ruas movimentadas. Havia um festival hoje – pipas voavam sobre a cidade e crianças corriam entre a multidão de alegres celebrantes. Dezenas de milhares de pessoas lotaram Orazca – cidadãos do império que vieram para cá após o fim da invasão e deixaram seus estados de origem devastados e inóspitos. Saheeli e Huatli permaneceram anônimas na multidão, a sua conversa protegida pelo som da cidade e do seu povo.

“O que está acontecendo, meu bem?”

“Não sei,” Huatli disse. “Preciso fazer algumas coisas antes de partir. Venha comigo.” Ela puxou Saheeli no meio da multidão, conduzindo as duas pelas ruas lotadas. “Esta paz é uma ilusão. As peças estão se movendo mais rápido do que eu pensava.”

“E que peças nós somos?”

“Peões, meu coração,” Huatli disse. “Mas peões que sabem que estão sendo jogados. Aqui.” Huatli puxou Saheeli para um aglomerado de barracas perto da avenida principal, onde os vendedores estavam ocupados moendo masa e cantando canções de trabalho. Havia um forte cheiro de terra e das cigarrilhas que as mulheres fumavam. Nenhuma delas tirava os olhos do trabalho – algumas pessoas saíam da rua principal de vez em quando para comprar mercadorias, então Huatli e Saheeli entrando na praça não foi algo incomum.

Huatli verificou que não haviam sido seguidas.

“Atlacan quer retomar a guerra de seu pai,” ela disse, satisfeita por estarem sozinhas. “Ele quer punir Torrezon.” Ela se apertou contra Saheeli, segurando-a, agindo como se estivessem tendo um momento íntimo nas sombras entre as barracas. “Ele já está construindo uma segunda Frota da Aurora, na Baía da Rainha, maior e mais poderosa que a primeira.”

“Outra guerra,” Saheeli reclamou. “As pessoas não vão suportar isso,” ela disse. “Eles não podem – ainda há destroços phyrexianos nas ruas e nas matas. O império ainda está se reconstruindo.”

“Não importa,” Huatli disse, agarrando os braços de Saheeli. “As bandeiras serão levantadas, os sacerdotes irão abençoá-las e o povo será influenciado,” ela sussurrou. “Atlacan fará com que o imperador ordene que eu escreva um discurso e, se eu não o fizer, ele mandará escrever um para eu recitar – uma declaração para iniciar a campanha, para invocar os Anciãos.”

“Você não pode-”

“Não posso,” Huatli disse, balançando a cabeça. “Eu sou a poetisa-guerreira. Sirvo ao império.” Ela cerrou a mandíbula e se afastou de Saheeli. “Sem a minha centelha não posso escapar das consequências da resistência. Devo desempenhar o meu papel. Ele não pode saber que me oponho a ele, ainda não.”

“O que podemos fazer?”

“Existem outros jogadores.”

“Caztaca?”

“Ela controla o coração e a mente do imperador. Atlacan comanda seu instinto, mas Caztaca pode torná-lo mais gentil, para que ele não seja igual seu pai ou instrumento de seu tio.” Huatli assentia enquanto falava, como se estivesse tentando se convencer enquanto expunha a escolha que fez. “O futuro do império deve ficar com ela.”

“O que você precisa que eu faça?” Saheeli perguntou.

“Não sei quanto tempo ficarei fora,” Huatli disse. Ela assumiu sua voz de comando, Saheeli observou. Um registro mais grave, para se proteger. “Há uma reunião planejada. Preciso que você compareça.”

“Só isso?”

“Só isso.”

“Não pode ser só isso. Eu deveria ir com você…”

“Não, meu amor,” Huatli disse. “Você pediu ajuda através dos portais, não foi?”

“Das Trilhas dos Presságios, sim.” Saheeli disse. “Eu menti sobre Ghirapur. A última Trilha que apareceu abria apenas para Arcávios; imediatamente enviei um pedido de ajuda e eles disseram que enviariam um estudante de história. Um planinauta,” Saheeli franziu a testa. “Quintorius Kand.”

“Um planinauta?” Huatli perguntou.

“Evidentemente. O mensageiro me enviou seu dossiê e temos nos correspondido de forma intermitente – o caminho para Arcávios aparece com certa regularidade.” Saheeli disse. “Devo dizer a eles para não se preocuparem?”

“Não,” Huatli disse. “Eu ainda posso encontrar um uso para ele.” Ela cruzou os braços, um dedo tocando um bíceps. Ela desviou o olhar, para baixo. Pensando. Saheeli estendeu a mão para Huatli, chamando sua atenção de volta. “O que preciso saber sobre esta reunião?”

“A reunião visa planejar como depor Atlacan, desarmar a guarda do imperador e levar Caztaca ao poder ao lado do imperador.” Huatli disse de uma só vez. Ela levantou o olhar, fitando Saheeli com um olhar de grande determinação.

Saheeli expirou. Passou a mão pelos cabelos. “Você está planejando um golpe.”

“Sim,” Huatli disse. “Estamos.”

“Preciso me sentar,” Saheeli disse. No canto da pequena praça havia um círculo de mesas e cadeiras para vendedores, compradores e transeuntes sentarem, comerem e descansarem. Saheeli conduziu Huatli até uma mesa vazia e sentaram-se. Huatli sinalizou para um vendedor que passava e pediu bebidas geladas e mangas temperadas.

Outra revolução. O coração de Saheeli doeu ao relembrar os anos da revolta de Kaladesh. “Esta é minha casa agora,” ela disse, “mas não é minha terra. O que direi nesta reunião sem você lá?”

As mangas e bebidas chegaram. As duas mulheres comeram e beberam em silêncio por alguns minutos e então Huatli falou.

“Este é um império de muitos sonhos diferentes. Muitos futuros possíveis diferentes.” Ela estendeu a mão sobre a mesa e colocou a mão sobre o coração de Saheeli, depois tocou a mão livre no seu próprio. “Seus sonhos e futuros. Os meus também. Isso deve acontecer agora, ou o povo sofrerá outra guerra.” Huatli manteve seus calorosos olhos âmbar fixos nos de Saheeli, ignorando a comida e a bebida. “Eu te amo. Somos uma da outra. Nesta reunião, você falará com a minha voz.” Huatli disse. “Minha assistente, Chitlati, farei com que ela se encontre com você depois que eu partir. Ela será sua intérprete se você precisar dela. Enquanto isso, avisarei aos grupos certos que você atuará como minha procuradora. Eles entrarão em contato com você quando chegar a hora, e você irá com eles.”

“Você estará segura durante esta expedição estúpida,” Saheeli disse. Uma ordem, não um pedido. “Não cabe a você liderar, não importa o que Atlacan ou o imperador digam. Você será uma poetisa e uma escriba, não uma heroína.”

“Claro,” Huatli concordou. “O que quer que esteja esperando abaixo desta cidade, eu descobrirei.”

“Bom.”

“Estávamos prontos para agir,” Hutali disse. “Só precisávamos de um empurrão – é isso.”

Saheeli colocou a mão sobre a de Huatli e apertou. Ela entendeu.

Huatli virou a mão e apertou de volta.

Elas compartilharam o resto das mangas geladas e das bebidas doces em silêncio, perdidas no som e no clamor de Orazca, nenhuma deles querendo ser a primeiro a soltar.

Os aliados de Huatli contataram Saheeli apenas alguns dias depois, logo após a expedição da poetisa-guerreira ter descido às cavernas abaixo de Orazca. O pequeno grupo de co-conspiradores escondeu Saheeli da cidade dourada até a costa, onde ela embarcou em um navio para a Baía da Rainha. Lá, na calada da noite, entre os cascos brutos da nova Frota da Aurora, Saheeli embarcou em outro navio, que saiu de Ixalan em direção ao oceano aberto.

A viagem da Baía da Rainha através do oceano demorou quase uma semana. Saheeli passou o tempo todo agarrada ao seu beliche no convés inferior, enjoada pelo oceano agitado que a tripulação da Coalizão Brônzea garantiu que estaria ameno e calmo. Seu primeiro dia a bordo do Gunwhale foi emocionante — apesar de suas reservas —, mas logo o enjoo do mar a dominou e a mandou para baixo.

Um constante subir e descer, girando sem horizonte. Náuseas e tonturas girando, rangendo e batendo, tossindo e vomitando. Saheeli passou vários dias miseráveis tremendo em seu beliche, doente e sem dormir, oscilando entre meio sono e meia vigília. Naquela meia-vida horrível, ela sonhou com o lar e com a distância entre aqui e lá. Ela gritou por Huatli. Ela buscou fundo em si mesma e tentou transplanar para longe daquele lugar — Ixalan, o oceano agitado, o navio doente — e lembrou que não podia mais fazer isso. Soluçou. Ela dormiu por algumas horas abençoadas, apenas para acordar com sede e com a cabeça girando.

Saheeli saiu de seus aposentos para um meio-dia tão cinzento e pálido quanto ela, finalmente capaz de andar, com o estômago acalmado pela resolução daquela briga entre equilíbrio e movimento. Sua náusea havia passado e ela estava faminta. O navio estava felizmente parado, finalmente ancorado num mar calmo. Ilhas escuras agachavam-se a estibordo do navio. Mais além, nebulosa nas nuvens baixas, estava a borda de um continente, elevando-se a partir da linha do horizonte.

“Que cheiro é esse?” Saheeli perguntou, aproximando-se de um grupo misto de marinheiros do Império do Sol e da Coalizão Brônzea. A tripulação heterogênea reuniu-se em torno de uma grelha alimentada a carvão, alguém da coalizão salgando e virando uma prateleira de filés no espeto enquanto um soldado do Império do Sol pintava a carne escaldante com um molho rico e escuro.

“Ela está entre nós!” disse um dos marinheiros da coalizão, chamando a atenção dos outros para Saheeli. “Companheiros, abram espaço.”

O grupo se arrastou para fazer o que o marinheiro pediu, abrindo espaço para Saheeli se aglomerar em volta da grelha. Ela usava um cobertor em volta dos ombros. Era uma hora fria e úmida, e o calor exalado pela lareira era bem-vindo.

“Beba.”

“Obrigada, Chitlati,” Saheeli disse, aceitando a caneca de água que a assessora de Huatli lhe ofereceu.

“Está com fome?” Chitlati perguntou. “Eles pegaram um tunnini dourado esta manhã. Aparentemente, você nem precisa cozinhá-lo antes de comê-lo.”

“Sim,” disse um dos marujos da coalizão. “Fresco é melhor. Uma rápida selagem com sal e pimenta é tudo o que você precisa. Presente do próprio oceano – macio como manteiga.” Ele ergueu um espeto de peixe cozido, olhando para o molho que os marinheiros do Império do Sol pintavam.

O estômago de Saheeli roncou com o cheiro abundante. O pirata ofereceu-lhe o espeto e ela aceitou, mordendo um cubo de thunnini tostado. Pimenta, sal, limão picante e o sabor rico e pungente do próprio peixe.

“Esta é a melhor refeição que já comi,” Saheeli disse, com uma segunda garfada. “Nunca pensei que comeria outra coisa além de caldo novamente,” ela riu.

“Você ficou lá por mais tempo do que todo mundo,” Chitlati disse. “Impressionante.”

Saheeli deixou aquilo passar despercebido. “Onde estamos, afinal?”

“Quase no Sens,” Chitlati disse. “Espero que você esteja pronta,” ela disse. Chitlati olhou para o lado de Saheeli ao ouvir o som de um grupo se aproximando do outro lado do navio. “A Suma Sacerdotisa se aproxima – ela está perguntando por você.”

Saheeli se virou, comendo outro pedaço de thunnini, e viu um pequeno grupo de padres e administradores agasalhados para se proteger do frio e da umidade que se aproximava deles. No centro deles, caminhando com uma determinação indiferente ao balanço do navio, estava uma mulher austera, vestida com trajes finos, embora discretos, do Império do Sol.

“Não é pela minha saúde?” Saheeli disse a Chitlati, que mal conseguiu reprimir uma risada. Em vez disso, ela se ajoelhou e fez uma reverência, fazendo sinal para que Saheeli a acompanhasse – agora ela era uma súdita do império, e não mais uma convidada.

“Sua Santidade,” Chitlati disse, curvando-se.

A Suma Sacerdotisa Caztaca Huicintli, filha mais velha do falecido imperador e tia amada do novo imperador, acenou com a mão, dispensando Chitlati e os marinheiros curvados. “Saheeli Rai,” ela disse. “Estou feliz que você está bem. Por favor,” ela disse, tirando a mão das vestes para fazer um leve gesto. “Ande comigo. Temos muito o que discutir.”

Saheeli fez o que foi pedido, ficando de pé para caminhar ao lado da Suma Sacerdotisa. Caztaca era alta, ainda mais imponente pelo cargo que ocupava. Ela estava flanqueada por uma comitiva de canchatan – guardas do templo escolhidos por sua fé, lealdade e coragem – que estavam vestidos de forma semelhante e com armadura adicional.

“Huatli preparou você antes de partir?” Caztaca perguntou. Ela caminhava como se deslizasse, impassível às vestes pesadas que ela usava ou ao movimento do navio, sua voz sempre com uma cadência baixa – a fala de alguém que pensava em versos, capítulos, liturgia. Assim como Huatli, pensou Saheeli, Caztaca sabia que o discurso poderia ser uma arma ou um bálsamo.

“Sim,” Saheeli disse. “Ela me contou sobre a… visão que você e os outros têm para o Império do Sol.”

“E você,” Caztaca perguntou. Em nenhum momento ela olhou para Saheeli – seus olhos estavam no horizonte, longe de seus pensamentos. “Qual é a sua visão para o nosso império?”

“Compartilho o sonho de Huatli,” Saheeli disse. “Paz acima de tudo.”

“Admirável,” Caztaca disse. “Tenho algumas perguntas antes de prosseguirmos. Suas quetzacamas. Você as construiu e as entregou aos engenheiros do imperador. Elas são leais a eles ou a você?”

“Elas são máquinas,” Saheeli disse. “Elas são leais a quem detém seus códigos de comando.”

“E os códigos?”

“Mantido pelos engenheiros imperiais, mas existem chaves mestras – chaves físicas, em minha unidade de produção em Pachatupa.” Elas caminharam devagar, mas Saheeli já estava sem fôlego.

Caztaca sorriu. “Bom,” ela disse. “A propósito, seu Alto Imperial é bom.”

“Aprendi com a melhor.”

“O que ela te ensinou sobre Torrezon?”

Saheeli não conseguiu evitar a expressão de surpresa que surgiu em seu rosto. Leve, mas evidente. “Eu sei que o Império do Sol e Torrezon já guerrearam antes e continuam sendo grandes inimigos.”

“Alta Torrezon,” disse Caztaca. “Torrezon é o continente. Alta Torrezon é a terra dos vampiros. Não somos inimigos de Torrezon – nem de Alta Torrezon, na verdade – mas da igreja e da Legião do Crepúsculo.”

“Presumi que eram distinções sem diferença.”

“Nunca confunda o mapa com a terra,” disse a Sacerdotisa. Chegaram à cabine do capitão, esperaram que um atendente abrisse a porta e então entraram. Os aposentos eram aquecidos e iluminados por pedras-do-sol, preenchidos não só com as vestimentas e tecidos da Sacerdotisa, mas também com uma mesa pesada, sobre a qual estavam fixados grandes gráficos. Saheeli aproximou-se deles com curiosidade.

“Onde estamos?” Saheeli perguntou, inclinando-se sobre o mapa.

“Os Sens. Aqui,” Caztaca disse, apontando para um pequeno conjunto de ilhas na costa oeste de Torrezon. “Alta Torrezon se esconde atrás do Deoro,” ela disse, apontando para o interior de Torrezon, onde uma vasta cordilheira assomava atrás de um rio que cortava o continente. “Entre nós e eles estão as Cidades Livres na costa e entre as planícies.”

“Mais vampiros?”

“Humanos,” Caztaca disse. “Aspirantes. Os fiéis. Comida.” Ela fez uma careta. “Tenho um favor a lhe pedir.”

“Claro.”

“Faça anotações em seu idioma,” Caztaca disse. “Não posso garantir que qualquer código em minha língua resistirá a um exame minucioso, mas você é a única alma em Ixalan que poderá ler e escrever seu roteiro.”

“Certo, farei isso,” Saheeli disse.

“Bom. Reúna suas coisas. Partiremos antes que anoiteça.”

Saheeli estava numa praia escura e fria na costa leste de Sen Gael, a principal ilha de Sens, e olhava para o oceano cinzento em direção a Torrezon. O continente dos vampiros escondia-se atrás de uma frente de chuva e nuvens baixas, destacada por fileiras de luzes costeiras, faróis e navios de pesca enviados pelas Cidades Livres. Esta era uma costa fria, longe do verde quente e exuberante de Ixalan. Saheeli estremeceu, apertando ainda mais a capa de chuva. Quanto mais rápido ela conseguisse acabar com isso, melhor.

Um único navio da coalizão, idêntico ao que trouxe Saheeli até aqui, levantou âncora a cem metros da praia. Um barco solitário batia contra as ondas, com um amontoado de figuras encapuzadas a bordo, curvadas contra os esguichos açoitados pelo vento.

Eles estavam aqui.

Saheeli se virou e caminhou de volta para o farol onde Caztaca e o resto do grupo do Império do Sol esperavam, cruzando lentamente a curta distância, considerando seus passos enquanto refletia sobre o que Caztaca havia lhe dito nos últimos dois dias: a guerra cria alianças estranhas. A morte muda as equações. O desespero força a ação quando, de outra forma, poderia ter havido paz.

Caztaca contou a Saheeli sobre espiões mercenários da Coalizão Brônzea, com lealdade assegurada por pesos de ouro, que retornaram das Cidades Livres para sussurrar a seus sacerdotes. A notícia que eles trouxeram gerou medo, mas também ação: o fervor do Juízo Final se espalhou por Alta Torrezon como uma praga de medo intenso. No lugar dos ratos, essa pestilência se espalhou pelos lábios de cultos fanáticos, cuja retórica causou fraturas nas fundações da Igreja do Crepúsculo. Uma figura sombria surgindo do descontentamento crescente e uma rainha em busca de aliados.

Enquanto isso, a febre da guerra assolava Pachatupa e o Império do Sol. Um povo cambaleante, ferido, um punho forte apertando uma espada faminta por mastigar carne. O filho de um imperador morto e uma criança no trono que ainda não conseguia compreender a gravidade do papel que desempenharia.

Uma rainha no leste e uma sacerdotisa no oeste com ambições idênticas. Um império em ascensão que ainda poderia ser capturado, e um reino flutuando sobre um precipício que ainda poderia ser puxado para trás. De fato, alianças estranhas. Diante de um inimigo irracional, o inimigo com quem você poderia discutir pode ficar ao seu lado – não como um amigo, mas como um colaborador.

Saheeli relembrou a história de Huatli sobre a batalha em Orazca durante a guerra phyrexiana: vampiros e humanos lutando juntos contra os phyrexianos. Sen Gael não era Orazca. O inimigo que Caztaca e seus colaboradores momentâneos enfrentaram não eram os phyrexianos. Esta reunião não seria um campo de batalha, mas decidiria o destino das nações.

Saheeli percorreu o resto do caminho até o farol e entrou na pequena cabana sem bater. Os Sens eram as ilhas natais dos orcs, que foram terrivelmente reduzidos por Alta Torrezon; o campo estava quieto. Não havia mais ninguém aqui além deles.

O interior da cabine do farol era quente e cheirava a café, tinta e mar. Uma grande mesa foi arrastada para o centro da sala, em torno da qual Caztaca e seus conselheiros estavam sentados. Quando Saheeli entrou, Caztaca ergueu os olhos, registrou quem era e depois olhou para o assento vago ao lado dela: o posto de Saheeli durante a noite.

Saheeli caminhou pela sala, navegando pelas conversas tensas e murmuradas. Os canchatan mantinham as mãos perto dos cintos, nas alças vazias onde costumavam guardar os macuahuitls, os dedos roçando sub-repticiamente as silhuetas rígidas sob as roupas, onde guardavam facas escondidas.

“A confiança,” disse Caztaca a Saheeli enquanto ela se acomodava, “será forjada esta noite pela traição compartilhada. Você entende?”

Saheeli assentiu. “Certa vez, meus primos e eu roubamos uma folha de soan papdi da janela de uma confeitaria. Juramos nunca mais falar sobre isso com ninguém.” Ela rabiscou algumas linhas de tinta no bloco de notas, preparando a caneta. “Nossa amizade só cresceu a partir daí.”

“Uma lembrança reconfortante,” murmurou Caztaca.

“Tudo isso para dizer: eu entendo.”

Uma batida rápida na porta, seguida pelo assobio crescente do vento e da chuva quando uma canchatan entrou.

“Eles estão aqui, excelência,” disse a soldado, tirando a água dos ombros. Ela fez uma rápida reverência enquanto se dirigia a Caztaca. “Elenda está com eles.”

Caztaca ergueu os olhos de suas anotações com surpresa – muda, mas evidente. “Você tem certeza?”

“Eu vi uma luz não natural emanando de uma figura do grupo deles,” disse a canchatan. “Não era luz de tocha ou pedra-do-sol. Era fina, uma coroa de contas que parecia flutuar atrás da cabeça da silhueta.” Ela disse com os olhos arregalados. “Ouvi dizer que apenas os Veneráveis são agraciados com essa luz.”

“De fato,” Caztaca disse, com um sorriso cruzando seu rosto. “Obrigada. Seque-se, isso é tudo.”

Saheeli lembrou-se do pouco que Huatli lhe contara sobre Elenda. A primeira vampira, as primeiras batalhas sem nome contra a Legião. A corrida para Orazca, o Sol Imortal, e o castigo de Elenda do seu próprio povo.

Aqui estavam as peças fabricadas ao redor da história, encaixando-se.

Uma batida na porta. Silêncio na cabine do farol.

“Entre,” Caztaca disse.

A porta se abriu. Quatro figuras obscuras entraram, abaixando-se para colocar seus elmos pontiagudos sob o batente da porta. Seus passos eram pesados, as botas batiam no chão de tábuas, o tilintar suave e o farfalhar das armaduras sob as capas engomadas. Um por um, ao entrarem, eles tiraram as espadas embainhadas e as encostaram na parede perto da porta.

Saheeli examinou os rostos sombrios dos homens que haviam entrado. Pele pálida, olhos cinzentos iluminados por dentro com uma suave luz prateada. Uma austeridade tão severa que irradiava deles como um resfriado terrível. Eles olharam para o grupo de soldados e dignitários do Império do Sol, com rostos neutros e mãos apoiadas — como faziam os canchatans — perto das alças vazias dos cintos, onde normalmente ficavam penduradas as armas. Satisfeito, um dos soldados voltou para fora. Um momento depois, Santa Elenda entrou.

A Venerável puxou o capuz para trás ao entrar na cabine, descobrindo o rosto e revelando uma diadema suave e de brilho constante que coroava sua cabeça. Uma auréola, sinal de canonização, de veneração – uma investidura divina nesta única pessoa. Embora a pele de Elenda fosse tão cinzenta como a de seus companheiros, faltava-lhe o tom austero: as suas bochechas estavam coradas, como se o frio e o vento lhe tivessem rachado o rosto – ou melhor, como se ela tivesse acabado de se alimentar. A Venerável olhou para o grupo do Império do Sol, seus olhos brilhando em um dourado suave e quente. Ela sorriu, e Saheeli pôde ver as pontas de suas presas saindo de seus lábios.

“Elenda,” Caztaca disse, levantando-se. “Por favor, sente-se. E diga aos seus soldados que eles podem relaxar. Somos todos colaboradores aqui.”

“Colaboradores,” disse Santa Elenda. “Colaboradores”, ela repetiu, como se sentisse o gosto da palavra. “Eu prefiro amigos.”

“É isso que somos?” Caztaca disse.

“É o que devemos ser,” Elenda respondeu. Ela tirou a capa e se acomodou na cadeira. “Depois desta noite, os únicos amigos que teremos serão as pessoas nesta sala. O lar se tornará um ninho de víboras com dentes afiados. Confiança ou respeito – devemos ser amigos.”

“Amigos, então,” Caztaca disse. “Então estamos todos aqui. Vamos começar.”

Elenda inclinou-se para frente, ouvindo.

Saheeli molhou a ponta da caneta.

“Nosso imperador nos levará à guerra,” Caztaca disse. “Ele é uma criança. Meu irmão Atlacan anseia pelo trono, mas nunca poderá tê-lo, então, em vez disso, ele conseguiu entrar na mente do imperador. Ele sussurra sonhos de conquista para o menino, que demanda navios e exércitos como se estivesse empilhando seu prato com sobremesas. Nosso povo não pode tolerar outra guerra, não importa o quanto se prepare. Nem o seu.”

Elenda ergueu uma sobrancelha. “Você acha?”

“Eu sei,” Caztaca disse. “Sua igreja e sua rainha. ‘Um ninho de víboras com dentes afiados.’ Estou errada?”

Elenda sorriu. “Você não está errada,” ela disse. “Seu irmão sussurrante e dócil imperador são páreo para os fanáticos em meu domínio. O Pontífice Fein luta para manter a Igreja do Crepúsculo unida. O chamado para o avivamento é… forte. Você está ciente de que há uma segunda expedição a Orazca em andamento?”

“Estou ciente,” disse Caztaca. “Eu presumi que fosse sua.”

Saheeli ergueu os olhos de suas anotações, recuperando-se apenas alguns momentos antes de deixar escapar que definitivamente não estava ciente de outra expedição da Legião a Orazca.

“Não é dos nossos,” Elenda disse, balançando a cabeça. “Ixalan não interessa mais à coroa, desde a partida do Sol Imortal. Este grupo é liderado por Vito Quijano de Pasamonte, um dos hierofantes do Antífice,” Elenda disse. “Não é sancionado pela igreja. A Companhia da Baía da Rainha: um dos empreendimentos da rainha, agora infestado por fanáticos escatológicos retrógrados e sedentos de sangue que pensam que podem trazer a Era do Sangue levando Aclazotz para a Alta Torrezon.”

“E eles podem?”

“Sim, a menos que sejam parados.”

A mão de Saheeli doeu. Ela agarrou a caneta com força suficiente para deixar as juntas dos dedos brancas enquanto transcrevia. Elenda falou com uma leveza na voz que não soou séria para Saheeli. Ela falou de um cisma que ameaçava a Igreja que a canonizou, de um fervor apocalíptico que, controlado ou não, só poderia terminar com a destruição de Alta Torrezon. Ela falou de Huatli em perigo: sua voz deveria ter tremido. Ela deveria estar implorando por ajuda.

“Huatli irá detê-los,” Caztaca disse. “Independentemente do que meu irmão espera conseguir em Orazca, os soldados do Império do Sol sabem o que fazer quando encontrarem a Legião em nossas terras.”

Huatli, na escuridão. Saheeli olhou além da mesa para os soldados da Legião que estavam atrás de Elenda. Homens largos, cada um com mais de um metro e oitenta de altura, todos revestidos de armaduras grossas de placas de ouro polido. Gravuras de rosas, espinhos e figuras humanas ajoelhadas, com os braços erguidos como se quisessem reforçar a placa que protegia as formas desses açougueiros.

“Se Aclazotz colocar uma garra em Torrezon, o reino se despedaçará,” Elenda disse, repetindo-se. O rosto de Elenda perdeu a luz. Por um momento, o brilho que inundava suas bochechas tremeluziu. “Eu não posso deixar isso acontecer,” ela sussurrou. “E você não pode deixar seu irmão liderar seu imperador para uma guerra.”

Apesar de sua raiva, Saheeli percebeu-se atraída por Elenda. Era a divindade, ela deduziu. Claro. A proximidade com o divino — qualquer divino — era difícil de resistir. Ela interpretou aquele magnetismo como algum princípio fundamental do Multiverso que ela, um ser mortal, sentia como algo mais. Saheeli resistiu a esse desejo de segui-la, transformando-o, em vez disso, num exame dos pequenos detalhes da mortalidade de Elenda que permaneciam: a mecha grisalha nos seus longos cabelos escuros. O suave borrifo de sardas na ponta do nariz.

Os olhos de Elenda brilharam frios como aço.

“Há mais alguém aqui,” ela disse. Ela se virou em seu assento para encarar a porta assim que ela se abriu.

Uma figura larga ocupava o batente da porta, as mãos segurando os lados como se estivesse se segurando contra o vento uivante que rugia. Atrás dela havia um grupo de orcs e humanos carregando cutelos, cheios de cicatrizes e remendados, com uma variedade de armaduras e roupas para protegê-los dos elementos.

Uma comoção. Os guardas leais de Elenda e os canchatan de Caztaca gritando, levantando-se da mesa, movendo-se entre este novo grupo e seus vassalos. Os recém-chegados ficaram entre eles e suas espadas, mas todos sacaram adagas, sabres, aguilhões e outras armas manuais escondidas, brandindo-as. A própria Saheeli se levantou e usou sua magia, transformando a ponta de metal de sua caneta em uma haste afiada.

“Quietos!” A intrusa gritou. A voz de uma mulher, acostumada a comandar, a precisar ser ouvida acima do uivo do vento e dos gritos raivosos. “Afastem-se, todos vocês!” A mulher entrou na cabana seguindo a ponta firme de seu cutelo de lâmina reta. Ela era mais velha, enrugada e queimada de sol, mas portava-se com uma força de carvalho. Ela usava roupas de marinheiro: um casaco pesado de lã, um chapéu bicórneo que tirou da cabeça e botas resistentes manchadas de sal.

Caztaca deu um comando rápido para seu canchatan, que manteve as armas firmes e não recuou. A própria Sacerdotisa segurava uma pequena faca, pronta para lutar.

“Faça o que ela diz,” Elenda disse, levantando-se. Ela colocou a mão no ombro do guarda mais próximo e fez sinal para que baixassem as armas. “Almirante Becket,” Elenda disse, dirigindo-se à mulher que acabara de entrar. “Não estávamos te esperando.”

“Você veio aqui no meu navio, para negociar as nações na minha ilha,” a almirante Beckett Bronze sorriu por cima de sua espada para Elenda. “Companheira, você precisa ajustar suas expectativas quanto ao papel do entregador quando a carga é tão boa assim.”

“O que você quer?” Caztaca interrompeu. “Ouro? Informação? Já pagamos seus mercenários. Nossa dívida está saldada.”

Becket lançou um olhar para Caztaca, seu cutelo inabalável. Atrás dela, seus marinheiros riram.

“Quietos,” Becket retrucou. Uma mecha de cabelo dourado e claro caiu sobre seu rosto. Com a mão livre ela o guardou, enxugando as gotas da chuva e o suor da testa. Ela olhou entre Elenda e Caztaca, avaliando as duas mulheres.

Saheeli desfez sua agulha de filagrana, remodelando-a novamente em uma caneta simples. Nesta sala estavam três das pessoas mais poderosas de Ixalan. Venerável Elenda, a santa viva da Igreja do Crepúsculo. Caztaca Huicintli, Suma Sacerdotisa do Império do Sol. Almirante Beckett Bronze, líder da Coalizão Brônzea. Ela tentou se lembrar do que Huatli lhe contara sobre a Coalizão Brônzea e a Almirante Beckett, mas se viu sem saber nada além de piratas, caçadores de ouro, algo relacionado com magias roubadas.

“Você e os seus pagaram suas dívidas comigo,” disse Beckett. “Mas não sou comerciante ou banqueira.”

Caztaca olhou para Elenda, que manteve o rosto beatífico e neutro.

“Vamos ouvir,” Caztaca disse, falando com a almirante sem olhar para ela. “Você,” ela disse a Saheeli, “vai escrever.”

“Registre bem isso,” Beckett disse a Saheeli enquanto embainhava a espada. “Terei uma nação,” continuou a almirante. “Uma terra de pessoas livres, o oceano aberto e todas as ilhas daqui”, ela apontou para o chão sob seus pés. “Até lá,” ela disse, apontando para o oeste, em direção à distante Ixalan. “Há um grande jogo sendo jogado aqui. Vocês duas estão preparadas para apostar tronos e coroas como moedas. Regicídio e fratricídio estão na mesa e as mãos dos jogadores estão praticamente distribuídas.” Beckett sacudiu a ponta da espada entre as outras duas mulheres enquanto ela falava. “Bem, senhoras, eu também estou aqui, e sou eu que tenho um cabo cheio de aço cortante.” Os olhos de Beckett brilhavam como lascas de céu, penetrantes e claros. “Mais uma mão para negociar: a minha coalizão exige reconhecimento como jogadora deste jogo em igualdade de condições.”

“E se recusarmos?” Elenda perguntou.

“Então vou matar vocês duas aqui e o fedor de fumaça de canhão vai sufocar Torrezon e Ixalan,” Beckett disse. “Seu povo nunca mais tocará o oceano sem que um navio da coalizão apareça no horizonte. Os mares serão um cemitério e a terra uma prisão.”

Silêncio, exceto pelo som da caneta refeita de Saheeli riscando o último ditado da Almirante Bronze.

Beckett ergueu o cutelo novamente e jogou-o no chão da cabine, onde ficou preso profundamente. “Uma resposta,” ela exigiu. “O que vai ser? Uma declaração ou as armas?”

“Uma emissária ousada,” murmurou Caztaca. Ela cruzou os braços.

“Essa é a sua resposta?”

“Um momento,” Caztaca disse. “Estou pensando.”

“Esta pirata está nos mantendo como reféns,” Elenda disse, com um tom confuso em sua voz. “O que há para pensar?”

“A oferta dela tem mérito,” Caztaca disse.

“Você será nossa aliada, Almirante?” Elenda perguntou.

“Governadora,” Becket corrigiu. “E prometerei minhas frotas àqueles que se comprometerem com a nossa causa.”

“Isso não é um sim,” Elenda disse.

“Você ainda não tomou sua decisão,” rebateu Breckett.

“Você deveria dizer sim,” Saheeli disse, manifestando-se.

Outro silêncio caiu sobre a sala.

“Perdão?” Elenda perguntou, virando-se para Saheeli.

“Aceite a exigência dela,” Saheeli disse. Ela havia enfrentado coisas piores do que Elenda, mas o olhar da Venerável ainda era enervante, hipnotizante. Um vislumbre do divino, uma alfinetada no véu entre o mortal e o imortal. Não por sua própria fé, mas mesmo assim incrível. Saheeli pigarreou e continuou. “Vocês duas precisam de aliados. Vocês estão trabalhando contra um relógio que trabalha contra vocês, sem saber quanto tempo resta.” Saheeli disse. “Como a Governadora Bronze disse, este é o jogo. As nações estão em jogo. Faça um acordo agora e proteja os mares,” Saheeli disse. “Faz sentido.”

“Quanto da nossa história você conhece?” Caztaca perguntou. “Huatli lhe contou alguma coisa sobre as invasões da coalizão em nossa costa antes da guerra phyrexiana?”

“Só sei um pouco,” Saheeli admitiu. “Sobre a corrida para Orazca, principalmente.”

“Eles atacaram as nossas frotas pesqueiras e saquearam os nossos templos,” Caztaca disse. “Eles mataram milhares de nossos cidadãos e saquearam centenas de nossos artefatos para suas aventuras.” Caztaca falou com firmeza, mas sem raiva. “A guerra nos forçou a permanecer unidos. Esses laços apenas cresceram, mas como uma cicatriz. A ferida ainda dói.”

“É difícil concordar com o que Beckett pede,” Elenda concordou. “Uma nação de piratas e náufragos que reivindicam o oceano.” Ela suspirou. “Eu não consigo enxergar isso.”

“E um reino de vampiros é mais fácil de tolerar?” Beckett riu.

“Não precisamos implorar por reconhecimento,” rebateu Elenda.

“Você vai implorar por piedade,” rosnou Beckett, pegando seu cutelo.

“Quantos navios você tem?” Saheeli interrompeu. “Almirante Beckett. Seus navios?”

A Almirante largou o cutelo. “Vou precisar de uma garantia antes de prosseguirmos,” ela disse, dirigindo-se a Saheeli.

“Caztaca, você não pode deixar essa escriba—”

“Posso,” Caztaca disse. Ela fez um breve gesto para Elenda, silenciando-a. A Venerável piscou, surpresa com Caztaca e, Saheeli presumiu, consigo mesma por obedecer. “Uma troca justa de informações?” ela disse, dirigindo-se a Beckett.

“Tem minha palavra,” Beckett assentiu.

Caztaca respirou fundo e profundamente. “O imperador está construindo outra frota de dez mil navios,” ela disse. “Ele pretende usá-los para invadir Alta Torrezon.”

“E quantos ele construiu até agora?” Beckett perguntou.

“Pelo menos duzentos,” Caztaca respondeu.

“Isso corresponde ao que sabemos,” Beckett assentiu. “Temos seiscentos navios de combate abastecidos e em condições de navegar, todos com tripulações veteranas, com reservas em docas secas do outro lado do mar. A Legião possui apenas oitenta navios de combate, o restante são navios mercantes e outros comerciantes. Isso está correto?” Ela perguntou, olhando para Elenda.

“O que faz você pensar que eu vou te dizer?”

“Porque é a sua vez de jogar,” disse Beckett. “Minhas peças, suas peças, as peças dela – todas sobre a mesa. Confiança mútua ou destruição mútua. Estamos discutindo termos, certo, Caztaca?”

“Isso mesmo,” concordou Caztaca. “A coalizão já está entrelaçada nesta trama, Elenda: os espiões que contratamos em sua terra, os espiões que você contratou na nossa. Os navios que nós pegamos para vir aqui sem serem detectados por nossos inimigos. Nesta mesma ilha – eles estiveram na mesa conosco o tempo todo. Beckett nos oferece uma aliança. Se aceitarmos, conseguiremos o que queremos,” Caztaca disse.

Elenda olhou ao redor da sala, em silêncio por um longo momento. Quando ela falou, sua voz parecia cansada, seu orgulho ferido. “Vamos escrever cartas de corso para você,” Elenda disse a Beckett. “Impeça que Vito e seus acólitos tragam Alta Torrezon de volta. Mate-os em Orazca ou afunde-os no oceano, não me importa. Se você conseguir fazer isso, farei com que a rainha reconheça as reivindicações da coalizão como legítimas. E gratidão pelo serviço prestado à coroa e à igreja.”

Beckett sorriu. Ela estendeu a mão a Elenda. Elenda encontrou a dela e balançou, fazendo uma careta.

“E você?” Beckett perguntou a Caztaca, estendendo a mão para ela. “O que você quer que façamos pela nossa nação?”

“Nossa segunda Frota da Aurora,” Caztaca disse. “No final do verão, depois que o primeiro dos furacões anunciar o fim da construção: queime aqueles navios em suas docas. Atraia o exército imperial para a costa, longe da capital. Exponha o imperador e seu sussurrador para mim.”

Beckett estendeu a mão. “Negócio fechado,” ela disse.

“A Suma Sacerdotisa não aperta mãos,” disse um dos canchatans de Caztaca, dando um passo à frente para se colocar entre Beckett e Caztaca. Beckett puxou a mão de volta e ergueu-a, sorrindo, desculpando-se.

Caztaca enfiou a mão nas dobras de sua capa e arrancou uma única pena da roupa que usava por baixo, depois a ofereceu a Beckett. “Devolva-me isto quando eu governar Pachatupa e eu lhe darei sua nação.”

“Só isso?” Backett perguntou, pegando a pena.

“Só isso.”

“E depois?” Beckett perguntou. “Comércio, alianças, diplomacia? Você vai lidar conosco em termos de igualdade?”

“Não prometo nada além de um estado para chamar de seu, governadora.” Caztaca disse. Seu sorriso era o sorriso de um raptor. “Uma nação reconhecendo a fronteira da outra.”

Beckett considerou aquilo. Ela passou a pena a um de seus marinheiros, que a guardou com segurança em uma bolsa à prova de intempéries. “Está combinado,” ela disse.

“Combinado,” concordou Caztaca.

“Combinado,” disse Elenda.

“Pronto,” Saheeli disse, terminando a transcrição da reunião. Ela colocou o papel sobre a mesa, colocou a caneta sobre ele e recuou. Uma por uma, as três líderes assinaram, selando o contrato. Saheeli soprou a tinta para secá-la e depois a enrolou num rolo apertado.

“Metal,” Saheeli disse, olhando para os soldados na sala. “Moedas, na mesa, por favor.”

Relutantemente, todos os soldados pescaram moedas em seus bolsos e bolsas e avançaram para jogá-las sobre a mesa. Sob aquela chuva de moedas, Saheeli produziu um recipiente fino de cobre, prata e ouro ao redor do documento. Ela o decorou um pouco, gravando um padrão de filigrana em sua superfície, mas teve certeza de selá-lo contra os elementos. Quando terminou, levantou o cilindro de metal sem costuras, inspecionando seu trabalho.

“Quem carregará esse documento?” Beckett perguntou.

“Elenda,” Caztaca disse. “Considere isso um recibo. Saheeli é a única que pode abrir aquele cilindro sem destruir o documento que está dentro. Não é isso?”

“Certo,” Saheeli disse. “Se você cortar ou derreter o cilindro, destruirá o papel que está dentro e este acordo será anulado.”

“Pode ser que queiramos que seja destruído,” murmurou Elenda. Ela virou o cilindro nas mãos, delicadamente, e depois o passou para um de seus soldados.

“Destruição mútua se for revelada,” Caztaca disse, olhando para Elenda. “E uma dívida inalterável e acordada a ser paga,” ela disse, dirigindo-se a Beckett.

“Para mim é suficiente,” Beckett disse, balançando a cabeça. Ela puxou o cutelo do chão de tábuas. “Estou indo,” ela disse, enfiando a espada na bainha. “Satisfação em fazer negócios com vocês. Os navios em que vocês navegaram serão reabastecidos, suas tripulações substituídas e preparadas para suas viagens de volta para casa. Boa sorte para vocês duas,” ela disse ao sair. “E vejo vocês no novo mundo.”

Beckett e sua comitiva deixaram a cabana, dirigindo-se para a tempestade uivante com os casacos bem apertados, aplausos aumentando ao encontro do vento forte.

“A nova ordem do mundo foi decidida em, digamos, trinta minutos?” Elenda disse. Ela se levantou e gesticulou para seus soldados. “Com licença, Eminência,” ela disse para Caztaca. “Tenho uma rainha para informar e uma igreja para manter unida.” Elenda, assim como Beckett, parou junto à porta aberta. “Vejo você no novo mundo,” ela disse, com uma pontada de sarcasmo na voz. Elenda levantou o capuz e partiu, deixando Saheeli, Caztaca e os soldados canchatan da Suma Sacerdotisa sozinhos na cabine do farol.

O silêncio seguiu-se à partida da Venerável. A chuva batia no telhado de telhas. O vento sacudiu as janelas fechadas contra tempestades em suas esquadrias. Caztaca ficou quieta, franzindo a testa, olhando para o buraco onde Beckett havia mergulhado seu cutelo. Além dali, Saheeli supôs, na barriga do Plano, onde agentes de ambas as nações corriam em missões de soberanos opostos.

Este artifício diplomático foi horrível para Saheeli. Desorganizado. Confuso em custo, eficiência, confiança e vidas humanas. As alianças mudaram, as decisões foram tomadas não com base em fatos, mas em tiros no escuro e confiança. Amigos e rivais trocavam máscaras constantemente. Tal como em Kaladesh, o poder nunca se estabeleceu em equilíbrio, mas esteve sempre à disposição: nenhuma decisão era definitiva se fosse uma decisão tomada por várias pessoas para várias pessoas. Ao mesmo tempo, Saheeli rejeitava a lógica da estabilidade tirânica contida num único corpo: os objetivos caprichosos e egoístas de um autocrata prometiam uma consistência fatal e condenada. Não há equilíbrio em muitos, nem justiça em um – onde poderia haver paz?

“Saheeli,” Caztaca finalmente falou.

“Sim, Eminência?”

“Huatli vai me apoiar?”

Saheeli hesitou. Caztaca esperou, e Saheeli estava claramente ciente de quão vulnerável ela estava, sozinha nesta ilha e cercada pelos soldados da Suma Sacerdotisa.

“Ela me garantiu que sim,” Saheeli disse.

“No entanto, Huatli me preocupa,” Caztaca disse. “Ela é a consciência do império. O coração e a voz do povo, mas também é a hagiógrafa do império.”

“Ela me disse o quanto admira sua causa,” Saheeli disse. “Ela me pediu para falar com a voz dela nesta reunião.”

“Falar, escrever, admirar,” Caztaca balançou a cabeça. Ela se levantou, apontando para a porta. Seus soldados entraram em ação, alguns saindo correndo da cabine para ir até o navio, outros se preparando para escoltá-la. “Quando chegar o dia da ação, a única coisa que preciso são de espadas. Muitas pessoas que me admiram agora, que escrevem e falam gentilmente de mim agora, ficarão do lado do imperador.” Ela acenou para Saheeli em sua direção. “Vamos desfazer a ordem natural. Vamos pedir ao povo que faça mais um esforço para garantir seu futuro. Portanto, sem palavras – preciso de ação. Preciso de espadas. Preciso da poetisa-guerreira.”

E aí estava a resposta dela, Saheeli percebeu. A solução para a paz era uma equação sem fim: um modelo que deve ser sempre revisto na prática. Abandone o sonho arrogante de ser quem terminará o desenho e encontre um propósito na luta para agarrar a caneta com a qual o desenho é feito. Início. Começo. Faça sua jogada; pelo menos então você será um ator, e não um objeto.

Pegue uma espada, Saheeli, ela pensou consigo mesma. Essa é a resposta.

“É natural seguir o imperador para a guerra,” Caztaca continuou, com uma voz rouca e feroz. “É natural odiar aqueles que estão do outro lado do oceano, embora a luz de Tilonalli também brilhe sobre eles,” disse Caztaca. “Meu objetivo é fazer algo sobrenatural.”

“Huatli e eu estaremos com você,” repetiu Saheeli, lembrando-se de sua amada no mercado, o mesmo tom feroz na voz de Caztaca, o mesmo medo, a mesma esperança.

Caztaca fixou o olhar em Saheeli. As duas mulheres tinham aproximadamente a mesma altura, e naquele momento a Suma Sacerdotisa parecia uma pira, estendendo-se em direção ao céu cinzento, a corporificação da história e dos dias que viriam.

Caztaca estendeu a mão para Saheeli. Saheeli estendeu a mão. As duas mulheres apertaram as mãos e depois saíram para o vendaval uivante, escoltadas pelos guardas do templo.

Saheeli seguiu Caztaca em direção à costa, descendo da cabana solitária e atravessando a areia escura de Sen Gael. O barco balançou na água rasa, mantido equilibrado pelos piratas da Coalizão Brônzea e dois canchatan de Caztaca, que estavam com água até os joelhos no quebra-mar. Chitlati já estava sentada dentro do barco, esperando por elas. As ondas frias subiam pela praia, ondulando e rolando em torno de seus tornozelos. O frio era agudo, esclarecedor. Uma chuva forte caiu do alvoroço acima, o oceano balançou, e assobios distantes do contramestre vibraram.

Este era o mundo dela, Saheeli pensou. Dela e de Huatli. Ela sussurrou uma breve oração, uma antiga escritura há muito memorizada e gravada, mas agora, mesmo que apenas no momento de sua pronunciação, genuína. Ela estendeu a mão para o canchatan, que lhe ofereceu a mão, saiu da água para o barco, sentou-se ao lado de Chitlati e apertou bem as roupas de chuva enquanto os outros soldados se amontoavam.

Com a ajuda dos marinheiros da coalizão, eles saíram da areia, desencaixaram os remos e remaram contra a onda crescente em direção ao navio distante que os levaria de volta a Ixalan, onde a próxima rodada do grande jogo começaria em breve.

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