Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
EPISÓDIO 03: A QUEDA DA CASA DE BETZOLD
“Então, quando vocês disseram que se a chave estivesse em Thraben, ela estaria segura…”
Os gemidos dos mortos profanados respondem a Chandra antes de qualquer um. Kaya aperta o nariz. Teferi já fechou o dele; ele respira pela boca, e mesmo assim ainda está ruim. Apesar do sol do meio-dia, as nuvens se juntam para lançar sua sombra sobre os restos da catedral. Até o céu fica envergonhado com a visão.
Ver aquilo embrulha o estômago de Arlinn. Bem ali, a torre onde ela passava horas ensolaradas lendo, agora eram apenas escombros espalhados na terra; aqui, o vitral que ela tanto estimava se estilhaçou. A sensação de olhar para a abundante massa de mortos-vivos era de traição. Ela não quer pensar nas chances de ver alguém que ela conhecia.
Ela engole em seco. Os zumbis ao redor da catedral eram como formigas ao redor do formigueiro. Passar por elas não será uma tarefa fácil.
“Pode muito bem estar,” Adeline diz. “Mas não saberemos até terminarmos nossa investigação.”
E eles haviam feito algumas investigações, ou melhor, Kaya. Eles levaram quase uma semana para chegar a Thraben – tempo suficiente para examinar as coisas. Um palpite não era suficiente para ela prosseguir. No momento em que chegaram a Thraben, ela se separou do grupo para fazer seu próprio reconhecimento. Aonde quer que fosse, ela voltava logo depois com um livro empoeirado nas mãos.
“Página setenta e sete,” ela anunciou.
Ao chegar naquela marcação, havia uma página iluminada e uma xilogravura muito bem detalhada: uma família recebendo uma caixa de uma bruxa que se parecia com Katilda. A legenda os rotulava como os Betzolds, de Gavony.
Arlinn conheceu um Worrin Betzold no seu tempo de Catedral – um bispo de idade avançada, o mais severo possível. As juntas dos seus dedos doíam só de pensar nele. Mas seu coração também, pois ela sabia que se ele estivesse em algum lugar… bem, ele estaria aqui. Com as massas. E quem sabe quantos de seus velhos amigos.
“Acho que estou vendo ele.” A voz de Adeline interrompe o pensamento de Arlinn. A cátara aponta com sua espada embainhada para a nave em ruínas da catedral. Uma figura com vestes sagradas está diante do púlpito. Para horror de Arlinn, ela parece pregar para uma multidão reunida. Os bancos estão cheios de zumbis sentados, batendo palmas, curvando-se e orando.
O que as Tribulações fizeram a este lugar é realmente profano. Um dia, Liliana levantou todos esses zumbis para lutar contra os Eldrazi. Já era ruim o suficiente ter que dividir o campo de batalha com os mortos-vivos – mas pior ainda foi lidar com eles depois. Ela tinha ouvido falar que alguém perguntou a Liliana o que fazer com todos os zumbis restantes. Segundo a história, ela respondeu: “Eles têm muitas utilidades; tente pensar de forma criativa.”
Pensar nisso é um grande peso para ela. Este lugar é uma afronta a tudo que ela ama. Ela sabe o que ele era antes.
E ela conhece as vestes que o homem usa. Cansada, ela acena com a cabeça. É ele.
“Não há outra escolha, então,” diz Kaya. “Alguém vai ter que abrir caminho.”
Adeline monta em seu cavalo – um corcel branco que ela provavelmente chama de Thunderbolt ou Lionshield ou algo semelhantemente heroico. Olhando para ela montada nele, é difícil não sentir alguma esperança.
“Pode deixar isso comigo,” ela diz. “Meus cátaros e eu temos lutado contra mortos-vivos há anos. Vocês quatro se concentrem em chegar a Worrin.”
Chandra olha para a horda e depois para Adeline. “O quê, e deixar você ficar com toda a luta? Acho que não,” ela diz. “Eu te dou cobertura. Vocês três vão para Worrin.” O ar fica turvo ao redor dela, aquecendo em reflexo ao seu sorridente entusiasmo. Não há outra maneira de fazer isso – Chandra vai se soltar.
O sorriso de Adeline reaparece. “Tudo bem. Eu serei a vanguarda e você ficará na retaguarda, Chandra Nalaar,” ela diz.
Uma falsa continência é a resposta. Se a situação não fosse tão terrível, poderia trazer um sorriso ao rosto de Arlinn. Do jeito que está, ela consegue sentir uma felicidade distante por estarem se dando bem, que se desvanece no momento em que ela olha para a nave em ruínas.
Não há tempo a perder.
Adeline e os cátaros lideram o ataque, caindo como um martelo sagrado sobre a bigorna dos mortos-vivos. Os comandos de Adeline vêm rápidos e certos, assim como o corte de sua lâmina. Cabeças caem de corpos como frutos de árvores. Um deles pula sobre ela apenas para diminuir a velocidade do salto. Raios azuis voam do cajado de Teferi enquanto ele retarda o avanço dos mortos-vivos pela coluna central. Não é muito – apenas um ligeiro atraso – mas é o suficiente para Adeline golpear o zumbi de volta com seu escudo e mergulhar a espada em sua garganta.
O caminho não ficará aberto por muito tempo.
Eles vão para o sulco de segurança conquistado a duras penas, Kaya entrando e saindo da existência, Arlinn se transformando no meio do caminho. Os braços invasivos dos mortos têm um gosto horrível em sua boca; ela os evita sempre que possível, cortando rostos, dentes e pés com as garras que a natureza lhe deu. Mesmo assim, saliva cai em seu pelo; ainda assim, os rosnados deslizam em seus ouvidos; ainda assim o fedor deles prende sua garganta.
Mas é só quando Chandra assume a retaguarda que Arlinn sente qualquer tipo de segurança. Duas grandes chamas voam de suas mãos, substituindo as paredes evanescentes da magia de Teferi por algo muito mais sólido. Até os mortos temem o fogo, como Thalia havia mostrado: eles gritam em uníssono, recuando do calor escaldante, aumentando a distância entre os heróis e os mortos-vivos. No entanto, ela não havia terminado – enquanto os outros avançam, Chandra se vira para encarar as massas, ela conjura o fogo como o próprio sopro da vida. Havia zumbis lá, anteriormente, agora eles são cinzas ao vento.
Adeline arrisca uma olhada por cima do ombro enquanto Chandra os mergulha em uma luz laranja, a piromante bem no centro de seu elemento, cercada pela destruição salvadora de vidas.
Arlinn não sabe o que Adeline está pensando, mas conhece seus próprios pensamentos: ela nunca deveria, sob nenhuma circunstância, enfurecer Chandra Nalaar.
Não é fácil entrar na igreja, mas é mais fácil entre o fogo e a espada. As paredes se ergueram ao redor deles e então caíram, quebradas pelas Tribulações e distorcidas em algo diferente. O gemido sem palavras de Worrin fica cada vez mais perto. As chamas tocam as paredes outrora sagradas e, embora doa, Arlinn espera que seja uma espécie de purificação.
“Já pegou?” Chandra grita. É difícil ouvi-la com o rugido das chamas, mas Arlinn consegue. Ela dispara em frente.
Adeline o colocou de costas contra uma parede, futilmente fazendo orações que ele havia ensinado a Arlinn. Enquanto ela muda para sua forma humana, seus olhos remelentos e mortos se concentram mais uma vez. Quando sua boca se move, é para formar o nome dela. Ele aponta para ela, ou talvez para sua carne suculenta. Arlinn quer acreditar que é a primeira opção.
“Worrin, sou eu,” Arlinn diz. “Você me reconhece, não é?”
“Dennick?” é a resposta. Ela olha por cima do ombro – Chandra está perto do resto deles. Adeline e os cátaros se espalharam em um círculo ao redor de Arlinn e Worrin.
“Worrin,” Arlinn diz, forçando-se a parecer calma diante daquela aberração que ela conhecera. “Estamos procurando a Chave de Prata Lunar. Você sabe onde ela está?”
Seus olhos piscam, um após o outro. Suas mandíbulas desdentadas se chocam.
Silêncio.
O barulho da espada de Adeline contra os mortos, o ímpeto do fogo. Os olhos de Kaya e Teferi nela.
“A chave, Worrin,” Arlinn diz. Que o Anjo a proteja, ela coloca as mãos nos ombros dele. Ele não pode desviar o olhar agora.
“Dennick,” a resposta.
“Arlinn, não temos muito tempo!” Adeline grita.
“A chave,” Arlinn repete.
“D… Dennick…”
Arlinn xinga baixinho. “Acho que já conseguimos tudo o que podíamos dele!”
“Ótimo,” diz Chandra. “Desta vez, Addy, você me dá cobertura!”
E quando o fogo toma a catedral novamente, Arlinn dá a Worrin o único descanso que ela pode, um crack, uma oração e votos para que aconteça o melhor.
Você acha que conhece uma pessoa, mas geralmente conhece apenas uma parte dela. Em vida, Worrin era um instrutor tão rígido quanto parecia. Arlinn não conseguia se lembrar de falar com ele sobre outra coisa senão teologia e, embora suas respostas fossem sempre bem pensadas, ela sempre o imaginou como o tipo de homem que entregou sua vida à igreja. Eventualmente, ele mencionava sua juventude em Gavony, mas isso foi o mais longe que conseguiu.
Mas as pessoas raramente são tão simples assim e, quando chegam ao tranquilo condado de Gavony que os Betzolds chamavam de lar, eles começam a fazer perguntas.
“Worrin e Dennick?” diz uma mulher, limpando a geada das abóboras que ela passou a temporada inteira cultivando. A idade avançada não a impediu de cuidar das colheitas e suas mãos se movem com precisão experiente. “Hmpf. Já era hora de alguém vir perguntar.”
Arlinn se ajoelha ao lado dela. “É mesmo? Bem, desculpe por termos demorado tanto. A neve nos atrapalhou.”
“Não há neve suficiente para isso,” a mulher responde. “É apenas gelo. Você tem idade suficiente para saber que isso não deve ser usado como desculpa.”
Arlinn se permite um pequeno sorriso malicioso. Não importa quantos mundos ela tenha visitado, não há nenhum lugar como o seu lar. “Você está certa, está certa,” ela responde. A neve é leve – seu toque é suficiente para derretê-la. “Mas assim mesmo, talvez você possa me informar.”
A velha olha para Arlinn com uma expressão fixa. “Você está muito atrasada.”
“Muito atrasada?” Arlinn repete, franzindo as sobrancelhas.
“Se ele não estava morto antes das Tribulações, agora está,” ela diz. “Ele se escondeu na velha mansão da família. Por segurança, ele disse. Não o vi desde então. O lugar é terrivelmente mal-assombrado.”
Arlinn olha por cima do ombro dela. A casa Betzold fica em uma colina, e ela pode ver suas janelas escancaradas daqui. “Mas por que ir lá se é tão assombrado?”
A velha limpa as mãos. “Porque Dennick é o filho de Worrin.”
As Tribulações quebraram tudo em Innistrad, mas algumas coisas foram refeitas. Mãos firmes e desesperadas refizeram os símbolos avacynianos distorcidos na estrada para suas formas originais, quebrando pedra em favor de madeira ou do ferro bruto. Eles passam por casas despedaçadas e construídas com partes das casas vizinhas, como se feitas por um suturador. As pessoas são as mesmas: algumas carregando suas cicatrizes por dentro, outras simplesmente de olho nos filhos, outras agarrando membros protéticos enquanto observam os recém-chegados passarem pela cidade.
Innistrad se quebra. Innistrad se reconstrói. Innistrad sobrevive.
É um bom pensamento, mas a mansão o desmente: a casa Betzold está tão dilapidada quanto parece, e maligna ainda por cima. Maligna é a palavra certa para isso, Arlinn tem certeza – pela maneira que as janelas olham para baixo, a maneira que as gavinhas arrastam pelas faces pedregosas e a boca da porta fica aberta.
Arlinn não gosta de olhar para ela. Mas ela vai gostar.
Dos cinco, Kaya é a que parece menos preocupada. Quando se aproximam da casa, ela não aparenta nenhum sinal de medo. A porta aberta da mansão não a perturba. Ela olha de cima a baixo, suas sobrancelhas se estreitam, e então dá um tapinha no nariz com o polegar. “Então, ele está aí?”
Arlinn acena com a cabeça.
“Com um monte de espíritos malévolos, certo?”
“Com certeza parece o lugar para isso,” diz Chandra.
“Eu tenho alguns símbolos sagrados-” Adeline começa, mas Kaya dispensa com um aceno.
“Não se preocupe,” ela diz. “Apenas me dê cinco minutos antes de seguirem.”
E, como era de se esperar, Kaya não se incomoda em esperar por permissão. Lá vai ela para dentro da boca. O nariz de Arlinn formiga quando o cheiro forte da magia de Kaya enche o ar, seguido pelo zumbido baixo que ela passou a associar a ele. Adeline vai até uma das janelas quebradas para espiar. Chandra segue, escolhendo a mesma janela. Pela reação delas, há muita coisa para ver.
É difícil resistir à tentação, às vezes. Amargamente, ela pensa consigo mesma que Tovolar diria o mesmo. A contenção é algo humano e não selvagem. Ceda às suas paixões e instintos – eles sempre sabem o que é melhor. Foi o que ele ensinou a ela.
A Igreja ensinou-lhe o contrário.
Ela pressiona o rosto contra a janela. No interior, uma faixa de branco acinzentado dá origem à forma fantasmagórica de Kaya. Mas não é o único fantasma presente. A velha tinha razão: o lugar é terrivelmente mal-assombrado, mas não por muito tempo. Kaya está derrubando os fantasmas em uma velocidade incrível. É difícil seguir sua forma enquanto ela pula de um dos fantasmas para o próximo, enfiando uma adaga nas costas aqui e cortando gargantas fantasmagóricas ali. Arlinn não consegue deixar de se perguntar para onde os espíritos irão, se este é o Sono Abençoado vindo para levá-los ou outra coisa.
Talvez ela pergunte mais tarde.
Por enquanto, a sala está livre de ameaças sobrenaturais. Chandra é a primeiro a entrar, então Adeline logo em seguida e depois Arlinn. Teferi assume a retaguarda desta vez. Os fantasmas não parecem incomodá-lo muito; ele se move com a mesma calorosa facilidade de sempre.
Mas há outro andar.
Eles vão subindo, passo a passo rangendo, a respiração suspensa, o zumbido ficando cada vez mais alto atrás da porta decrépita. Chandra se move para abrir a porta, mas Adeline a impede com uma mão em seu ombro.
“Deixe-me,” ela diz. “Você ficará mais segura atrás de mim.”
Adeline tinha saído de alguma história de algum lugar? Havia a bravura, sim, mas também havia a maneira como ela estilhaça a porta quando joga todo o seu peso contra ela. Lá dentro, Kaya está casualmente inclinada perto de um dos fantasmas. Ela cumprimenta os outros com uma reverência sarcástica enquanto eles avançam.
“Aqui está o seu homem,” ela diz. “Rápido e fácil.”
O huum de Teferi é de diversão. “Isso foi menos de cinco minutos.”
“Generoso, vindo de você,” Kaya responde. “Você simplesmente altera o tempo enquanto anda?”
“Se fosse assim tão fácil,” ele diz. Teferi olha por cima do ombro, seu sorriso suavizando com simpatia. Ele aponta para o fantasma flutuante – um homem de não mais que trinta anos, o esqueleto preso sob um pedaço de entulho, provavelmente dele. Eles estão usando as mesmas roupas rústicas. “Vai na frente.”
Arlinn não espera. Ela vai até ele, resistindo à vontade de apertar sua mão. “Dennick? Meu nome é Arlinn Kord. Eu fui amiga do seu pai.”
Que estranho ver os olhos de um fantasma se arregalarem. “Meu pai? Ele mandou me chamar?”
É sempre melhor dizer a verdade quando puder, por mais feia que seja. “Não posso dizer que sim. Seu pai está morto. Eu mesmo o coloquei para descansar, mas você deveria saber que ele chamou por você até o fim.”
“Colocou para descansar?” o fantasma mexe os dedos preocupados. “Isso significa que ele é um… morto-vivo?”
“Era,” ela responde. “É melhor não ficar remoendo. Mas vim perguntar algo muito importante, algo que sua família guarda…”
“Ah. Isto não é uma visita?”
“Não, não é,” Arlinn diz. “Por favor. Se você sabe alguma coisa sobre a Chave de Prata Lunar, Innistrad precisa dela. As noites estão ficando mais longas; precisamos dela para um ritual que vai consertar as coisas.”
“Achei que, com todas essas pessoas, talvez fosse uma visita,” Dennick responde. Ele mexe os dedos repetidamente. “A maioria das pessoas quer a chave. Eu nunca a vi. Eu não era um Betzold de verdade, meu pai disse.”
“Então ele estava sendo um idiota,” Arlinn diz. “Aqui está você na mansão, igual a qualquer Betzold. E se você nos disser onde está a chave, bem, você estará cumprindo o dever de sua família melhor do que qualquer um dos outros.”
De alguma forma, o fantasma suspira. “Acho que estaria,” ele responde. “Certo. Bem… Eu mexi por aqui também, porque ouvi sobre ela e… Acontece que não temos a chave. Meu bisavô a deu para um dos vampiros para proteção. Não é uma bobagem?”
Kaya aperta o nariz novamente.
Chandra respira fundo. Ela levanta um dedo. “Com licença, mas posso apenas perguntar qual vampiro?”
Dennick suspira. “Você vai me deixar descansar se eu disser?”
“Se é isso que você quiser,” Arlinn diz. “Mas seria mais fácil descansar se você soubesse que Innistrad não está em perigo, certo?”
Ele vira a cabeça como se estivesse pensando sobre aquilo. Então: “São os Markovs. O príncipe deles, ele pegou. Meu pai disse que sentiu minha falta?”
“Tive a pior sensação sobre isso,” Chandra diz, a meio caminho da porta, mas Arlinn fica para trás.
Dennick quer alguém com quem conversar. O mínimo que ela pode fazer é ouvir – pelo menos um pouco.
Innistrad reconstrói.
Até os vampiros.
Por mais estragos que tenham causado, por mais que seu estômago ronque com o cheiro deles, por mais que ela os odeie – Arlinn teve que admitir que havia algo reconfortante naquilo. As Tribulações não pouparam ninguém. Por mais que os habitantes das trevas possam acabar com a humanidade, não muito tempo atrás, todos eles lutaram do mesmo lado.
Arlinn espera que eles possam lutar novamente.
Os outros caminham na frente. Chandra está apática; ela não gosta da ideia de entrar no covil da serpente. Kaya também não. Mas Arlinn entende algo que eles não entendem: este já foi um lugar onde as pessoas encontraram esperança. E é algo que os outros sabem – mas não compreendem. Não totalmente. Ter essa fome em seu estômago e ainda agir contra aqueles instintos bestiais por um bem maior… ela não gosta de Sorin Markov, mas consegue respeitá-lo.
E ela pode respeitar a memória do anjo que lhe deu esperança quando a esperança era tão furtiva quanto aquele cervo branco.
Então, enquanto os outros caminham, Arlinn para do lado de fora dos portões. Gavinhas reivindicaram as metades quebradas de um símbolo avacyniano. Cortando-as com suas unhas afiadas, ela endireita o símbolo e inicia uma oração.
“Guarda-nos durante a noite, ó anjo…”
Para sua surpresa, outra voz se junta a ela, a de Adeline, pelo que parece.
A de Teferi segue, com um ligeiro atraso, enquanto ele aprende as palavras.
Chandra se junta depois, um pouco rápida demais, tropeçando aqui e ali, mas tentando o seu melhor.
E por último – com um pequeno suspiro – está Kaya, entrando quando eles estão quase terminando.
Quando terminam, eles trocam sorrisos suaves e entram.
Ninguém pergunta por que ela reza a um anjo que não pode mais ouvi-la.
Pessoas que dizem que cruzarão as pontes assim que chegarem a elas não foram à mansão Markov. A fina faixa de pedra que leva ao lugar seria intimidante o suficiente em tempos normais, posta acima da boca escancarada de um abismo, mas as Tribulações também vieram aqui. A ponte flutua em pedaços. Pular de um pedaço para outro é a única maneira de se aproximar do castelo em ruínas. Os rostos quebrados dos Markovs ancestrais eram péssimos degraus.
Por dentro, não era muito melhor. Os cálices estavam sob uma camada de poeira; ombreiras usadas para arruinar uma aldeia eram apenas obstáculos para se tropeçar; os retratos que não estão rasgados desbotaram para o preto. Pior – aqui não cheira a morte, nem a decomposição, nem mesmo a sangue – não cheira a nada.
“Quais são as chances de ninguém estar em casa?” Chandra pergunta.
“De pouca a nenhuma,” diz Kaya. “O lugar está ruim, mas não está abandonado.” Ela aponta para o lustre acima de suas cabeças. “Alguém trocou as velas.”
“Provavelmente um escravo,” diz Adeline. “Mas Kaya está certa – temos que manter nossa guarda alta.”
“Mas e se ele não estiver aqui? Daí podemos simplesmente roubar a chave sem ter que falar com ele.”
“Vamos esperar que não,” diz Arlinn, “mas é melhor presumir que sim. Além disso, tenho certeza de que podemos conversar com ele.”
Mas enquanto ela diz isso, eles passam por um afloramento rochoso particular, um pouco diferente dos outros ao redor. Enquanto os outros são coisas afiadas e retorcidas – adagas apontadas para um inimigo invisível – este é uma ferida aberta na face da mansão Markov. Aqui, as fissuras são piores do que em qualquer outro lugar, concentradas em dois longos sulcos de cada lado. A borda é igualmente áspera, as beiradas pareciam desconfortavelmente como se tivessem sido mastigadas. Manchas de sangue seco só tornavam a visão mais macabra.
“Não gosto da aparência disso,” diz Adeline.
“Também não posso dizer que gosto,” diz Teferi.
Kaya faz um pequeno som. Seus olhos se estreitam. “Não pode mais ter dentes, seja lá o que for.”
“Sorin saberá o que aconteceu. Talvez não sejamos os únicos atrás da chave,” diz Arlinn.
“Se ele estiver aqui,” Chandra diz.
Mas ele está. Ele tem que estar. Depois de fazer tudo isso, para iludir a todos… Arlinn range os dentes. Ela vai encontrar essa chave de uma forma ou de outra. Tovolar quer arrancar o coração de Innistrad de seu peito; ela não pode deixar isso acontecer.
“Se ele está em algum lugar, é na sala do trono,” diz Arlinn.
“Deve ser logo à frente,” diz Kaya. “Todos os quadros estão ao longo deste corredor. Não pode levar a qualquer lugar, senão à sala do trono.”
Ela tem razão. Não sobraram muitas imagens, mas haviam suficientes. Para não falar da porta à frente deles: uma coisa grande e imponente, esculpida com rostos rosnantes de morcegos, agora parcialmente arrancada das dobradiças. Quando chegam lá, é preciso que Arlinn mude para sua forma de lobo para abrir as portas. Adeline olha para ela enquanto ela transforma de volta. Arlinn oferece um sorriso amigável.
“Não se preocupe, sou treinada,” ela diz. Brincar sobre aquilo às vezes deixava as pessoas à vontade, mesmo que hoje em dia ela não tenha certeza da exatidão disso. Na floresta, ela esteve muito perto de fugir.
Mas ela é Arlinn hoje, e ela planeja continuar assim – mesmo quando, na sala do trono empoeirada, eles encontrem o príncipe esperando por eles.
Sorin Markov está sentado com uma perna dobrada sobre o trono quebrado de sua casa. Ele está lendo um livro antigo, sem marcas, algo como um diário. Um buraco no teto lança um único raio de luar sobre sua pele cinza. Cercado pelo esplendor vazio da mansão abandonada, ele é uma visão estranha.
Embora ele não olhe para eles quando eles entram, Arlinn pode sentir o cheiro do ressentimento que emanava dele. Sua voz é forte e arrogante. “Declare seu motivo para me perturbar agora, ou eu expulsarei todos vocês.”
“Sorin,” diz Teferi. Claro que é ele que está dando um passo à frente. Claro que ele não mostra sinais de intimidação. A reverência que ele oferece envergonharia qualquer aristocrata. “É um prazer vê-lo novamente. Temos apenas um pequeno negócio para tratar. Seremos breves.”
O vampiro olha por cima da borda de seu livro. “Eu sei o suficiente para não acreditar em sua definição de breve. O motivo, agora.”
Os ombros de Teferi se erguem em um encolher de ombros, como se dissesse que ele tentou. “Estamos procurando a Chave de Prata Lunar. As noites estão aumentando…”
Sorin fecha o livro com um estalo. “Não.”
“Como assim não?” diz Chandra. “Passamos uma eternidade procurando por isso. O mínimo que você pode fazer é nos ouvir.”
Seus olhos se fixam nos dela. Chandra para de falar. Há algo predatório sobre o homem, mas também algo encantador. Arlinn conheceu muitos sugadores de sangue em seu tempo, mas nenhum como ele. Era como a diferença entre cães e lobos.
E sim, havia algo carnívoro no modo como ele se levanta, como joga o livro de lado, nos passos que dá e na postura que assume – a mão apoiada no punho da espada. “Não posso esperar que alguém tão impetuosa entenda o quanto já sacrifiquei por este Plano. Se minha família,” ele praticamente rosna a palavra, “deseja descer ao hedonismo inútil da noite eterna, então fiz o suficiente para pare-os. Deixe-os festejar.”
Teferi levanta as mãos, parando bem na frente de Chandra. “Se você não quer ouvi-la, me escute. Este Plano é sua família, Sorin, todos nós sabemos disso. Você fez mais do que o suficiente. Estamos pedindo a chave para que possamos fazer a nossa parte. Arlinn aqui não quer ver a noite eterna tanto quanto você.”
“É mesmo?” ele responde. “Por favor, me diga o que você fez pelo Plano. Continue, estou ouvindo.” Agora ele está avançando, agora a espada escorrega de sua bainha, agora a besta no sangue de Arlinn pede que ela se transforme.
Mas ela não transforma. Ainda não. Ela planta os calcanhares no solo pedregoso. “Talvez eu não tenha sua história, mas nos últimos anos tenho viajado por esse lugar, ouvindo as pessoas. Achei que você entenderia melhor do que ninguém por que os humanos precisam viver. Você criou Ava-”
Ela não disse o nome antes de a espada balançar no ar. São apenas seus próprios reflexos sobrenaturais que a protegem – ela levanta um braço para aparar a parte plana da lâmina. Ainda assim, o aço atinge a carne; uma listra vermelha pinta o chão; um vapor negro pica seus olhos. Os dentes crescem na boca. Aqueles olhos dourados estão queimando no escuro.
“Você,” ele murmura, “não tem permissão para falar dela.”
“Você já esqueceu por que a criou?” ela diz. Chandra já estava com chamas queimando; ela sinaliza para Arlinn por cima do ombro. Bastaria uma palavra para os outros quatro descerem sobre ele, mas ela não quer isso. Ainda não. “Precisamos de anjos. Precisamos de esperança, precisamos de fé. Precisamos do dia – e precisamos da chave.”
“Saia,” ele grita. As paredes vazias o transformam em um eco vicioso. “Agora.”
“Não sem a chave,” Arlinn responde, com a mesma firmeza. “Talvez você tenha esquecido, mas eu não.”
Espada se ergue, outro golpe se aproxima enquanto sua raiva leva o melhor dele. Arlinn ergue o braço novamente.
Mas não é necessário. Uma pena cai entre eles, dourada e brilhante, seguida um instante depois por uma foice com cabeça de garça. A espada de Sorin bate contra a arma angelical; ele recua em fúria visceral para contemplar a intrusa.
E pode ser o meio da noite, pode estar frio e escuro, pode ser o início do fim de Innistrad, mas a luz dourada que inunda a sala do trono traz consigo uma onda de esperança ao suspiro de Arlinn. O mesmo ocorre com o sagrado fervor do anjo à sua frente.
Avacyn pode não ouvir mais orações.
Mas Sigarda sim.
“Sorin Markov,” ela diz. Sua voz é ressonante, com um leve eco que a torna mais do que humana. “Quão longe você caiu. Abrindo seu caminho para fora da pedra apenas para ficar de mau humor.”
Aquela cova – aquilo era ele? Que estranho sentir pena de um príncipe vampiro de séculos de idade.
Mais estranho ainda quando aquele mesmo homem aponta sua lâmina para um anjo. “O que você quer que eu faça? Já que você claramente tem todas as respostas. Vá em frente, explique. Faça isso ou tente sua sorte com eles e saia daqui.”
Os olhos dourados de Sigarda se estreitam. Ela não os afasta de Sorin, mas, quando fala, parece que está ao lado de Arlinn. “Arlinn Kord, foi sua fé que me convocou aqui. A causa em seu coração é justa. Você encontrará a Chave de Prata Lunar nos aposentos pessoais de Sorin, no terceiro andar. Vá. Pretendo falar com ele sobre sua velha criação.”
Chandra e Kaya não precisaram ouvir duas vezes – elas disparam para a escada. “Obrigado, Sigarda!” grita Chandra, pés contra os tapetes macios. Teferi vai logo depois, parando apenas o tempo suficiente para oferecer uma reverência respeitosa.
Mas Arlinn e Adeline permanecem, mesmo quando Sigarda traz a foice sobre ele, mesmo quando suas feições se tornam mais bestiais em face do perigo. Um certo pavor sagrado as prendeu naquele lugar. Não é obrigação dos fiéis ajudar seus ídolos? As duas trocam um olhar. Adeline levanta seu escudo.
“Vão!” grita o anjo, a espada de Sorin cortando sua armadura. “Se você já teve alguma fé em mim, vão!”
Arlinn engole em seco. Ela quer ajudar. Adeline aperta o braço dela. “Nós apenas atrapalharíamos,” ela murmura, tão decepcionada quanto Arlinn.
E talvez ela esteja certa.
Mas não faz com que pareça melhor.
Arlinn sobe as escadas, seguindo os passos de Adeline, tentando não prestar atenção aos uivos de dor que se seguem, tentando não contar quantos pertencem ao anjo e quantos pertencem ao vampiro. Isso é, por si só, fé.
É Chandra quem encontra a sala – enfeitada com estantes de livros e armas antigas – e Teferi quem encontra a Chave de Prata Lunar. Ela está nas mãos de uma estátua. Sorin deve ter cortado a cabeça dela, mas a armadura e as asas não deixam dúvidas de quem costumava ser. A Avacyn sem cabeça está posta sob um retrato de um jovem Sorin e seu avô vestidos com suas melhores roupas.
Arlinn pega a chave.
Pela segunda vez naquele dia, ela murmura uma prece.
Desta vez, ela reza para que Sigarda esteja segura e que eles voltem a tempo para O Festival da Colheita.
Mas é uma coisa estranha rezar a um anjo por sua própria segurança, e ainda mais estranho pedir-lhes que distorçam o tempo.
Nada é garantido em Innistrad – mas eles tentarão sobreviver, tentarão resistir e olhar mais uma vez para a luz sagrada do dia.
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