Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
A GUERRA DOS IRMÃOS - EPISÓDIO 04: A TINTA DOS IMPÉRIOS
44 AR
A dezesseis quilômetros das cúpulas douradas de Tomakul, Farid sentou-se no degrau de uma velha trincheira e usou sua faca para cortar o ensopado congelado. Abastecido com flechas quebradas e pequenos chumaços de papel de embalagem, os carvões sob a panela – seu próprio elmo de latão, com o forro removido – logo descongelaram e ferveram a pasta. Sem reverência, Farid sacudiu o resto do sal de uma pequena lata no caldo, mexeu e sentiu o estômago revirar de fome ao sentir o cheiro leve de alho selvagem e cebola. O cheiro também tirou os ratos de seus buracos, mas o frio os deixavam lentos. Farid observou um deles rastejar em direção às suas botas esfarrapadas e parar para cheirá-la. Era gordo, grande como os gatos caramelos que espreitavam nas ruas do distrito do templo de Tomakul, e se portava com a mesma confiança lânguida e bamboleante. Os ratos eram os donos da trincheira; os humanos amontoados nela eram apenas ocupantes temporários e comida, se morressem. Farid o chutou para longe.
A trincheira tinha quase duas décadas, uma relíquia do início da guerra expandida para algo parecido com as grandes obras de terraplanagem que Farid tinha visto durante a retirada dos territórios trans-Mardun de Yotia. Lá embaixo, onde o rio Mardun fazia fronteira com Kroog, eles tinham linhas de trincheiras reforçadas com torres de pedra atarracadas. Bunkers que escondiam pesadas lançadoras de flechas, hospitais subterrâneos e refeitórios, beliches à prova de intempéries iluminadas e aquecidas por pedras de energia que não emitiam fumaça. Mas tudo isso estava um ano e quilômetros atrás dele, abandonado depois que os argivianos e seus aliados começaram seu contra-ataque. A vida no fronte Mardun era fria e chata até que deixou de ser.
A guerra de Farid foi um ano de caminhada para casa com a morte mecanizada nas suas costas e pestilência onde ele dormia. Todas as ilusões que ele tinha de glória, honra e aventura foram moídas em farinha grossa, espremidas na lama junto com honra e humanidade. Cada trincheira para onde a unidade de Farid havia recuado era mais antiga, mais rasa e mais arruinada. Da última vez que a guerra chegou tão perto de Tomakul, não havia máquinas, apenas soldados de infantaria e cavalaria; apenas os conselheiros mais próximos do qadir sabiam o que era um dragão mecânico, ninguém tinha visto um vingador e Farid ainda não havia nascido.
Quando Farid e sua unidade caíram nessa trincheira pela primeira vez, exaustos e ensanguentados pela cavalaria do artífice, encontraram uma vala rasa que se estendia por alguns quilômetros pelo fundo do vale, inundada, que abrigava apenas os ratos e os mortos. Eles cavaram a terra, retiraram a água e reforçaram essa velha linha de combate para suportar as realidades da guerra moderna. Agora era um lar, com abrigos subterrâneos para se esconder de bombardeiros dos tópteros em dias claros, armadilhas escavadas para prender vingadores e trísceles na lama, e moitas de arames farpado amarradas na parte frontal para emaranhar qualquer inimigo que atacasse.
Seguiu-se um mês de trabalho frio e vida magra. Uma conversa sobre um ataque borbulhou na trincheira, mas Farid não deu muita importância. Soldados falavam; os ataques eram coisas lentas e grandiosas nos dias de hoje. Eles precisavam de soldados para substituir os mortos e reforçar os vivos e oficiais para bradar e brilhar. Felizmente, parecia que os generais nunca queriam atacar a menos que tivessem pelo menos um dragão mecânico, ou uma divisão de soldados mecânicos do próprio qadir para tentar quebrar a linha inimiga.
Então, Farid limpava sua lança, mantinha suas botas remendadas, virava suas meias e cozinhava. Esta manhã foi um guisado. Quando ficou pronto, Farid serviu primeiro uma porção na tigela de Karrak, depois o resto na sua. Farid cutucou o amigo, que estava sentado enrolado em duas capas, olhando para a parede oposta da trincheira lamacenta e coberta de gelo.
“Comida,” Farid disse. Ele teve que empurrar Karrak novamente para que ele percebesse. Karrak olhou, tossiu, pegou o ensopado e comeu.
Farid soprou sua própria tigela, bebeu um gole e deixou o caldo quente passar por ele. Ele mastigou um pedaço de pão empapado e viu uma fila de soldados dar a volta na trincheira. Eles caminharam em fila indiana, equilibrando-se ao longo do piso de tábuas para manter as botas livres da lama rija por baixo. Olhos baixos, todos os soldados pareciam iguais. A lama aqui secava pálida, endurecendo suas botas e uniformes de lã, manchando as cores outrora finas do exército Imperial Fallaji de vermelho empoeirado a tons frios de branco, castanho e marrom. Todos usavam seus elmos enrolados em panos escuros, para evitar que o sol refletisse no latão polido. Atravessaram a trincheira, a passos curtos para não encostar nos calcanhares do soldado da frente, arrastando os pés para não serem tocados pelo soldado de trás. Alguns se apoiavam em suas lanças enquanto caminhavam. Todos se curvaram sob o peso de suas mochilas.
“Ei,” Farid disse, chamando os soldados que passavam. “Onde vocês estão indo?”
Nenhum deles respondeu. Poucos o reconheceram, e aqueles que o fizeram apenas o olharam com olhos fundos de fadiga enquanto passavam. Uma soldado mais velha, cujo casaco trazia um conjunto de listras de sargento costuradas, passou, e Farid a chamou, perguntando para onde estavam indo.
“Abrindo espaço,” disse a sargento. Ela parou para ajustar sua mochila, empoleirada no degrau da fogueira. “Reposições para esta tarde.”
Farid amaldiçoou. Reposições. “Humanos?”
A sargento balançou a cabeça. “Tudo o que nos disseram foi para abrir espaço para eles. Você tem mais desse ensopado?”
Foi a vez de Farid balançar a cabeça. “Só caldo e ossos agora. O que você tem?”
A sargento pensou por um momento, então pescou em seu casaco. Ela tirou uma moeda de ouro e a estendeu para Farid. Era uma das antigas, grossa, com o rosto do último qadir estampado em ambos os lados.
“Para quando você for para casa,” disse a sargento. “Viva como um qadir por um dia em Tomakul, ou um imperador por uma semana em qualquer outro lugar.”
Farid ofereceu para a sargento os restos do caldo. Ela bebeu, então segurou a panela improvisada virada para pegar as últimas gotas.
“Aqui, pegue isso,” Farid disse, passando ao sargento um dos ossos do caldo quando ele terminou. “É frango, não rato.”
“Frango! Onde você encontrou um desses?” A sargento, agradecida, pegou um dos ossos.
“Esse milagre eu não posso revelar,” Farid disse. “A intendente pediria minha cabeça por isso.” Ele levou um dedo enluvado aos lábios, então guardou o resto dos ossos de galinha em uma bolsa que ele usava na cintura. “Fique com a moeda. Quando for qadir por um dia, mande-nos para algum lugar aquecido para cavar uma trincheira.”
A sargento riu. De qualquer maneira, ela colocou a moeda no degrau da lareira ao lado de Farid.
“Para quando você estiver em casa, meu rapaz,” disse a sargento, sorrindo.
Farid a saudou. A sargento assentiu e se apressou para se juntar ao resto de seu regimento enquanto eles se afastavam. A unidade atravessou a trincheira por mais alguns minutos, os soldados marchando em silêncio, a não ser por tossir, e o ranger e esmagar das tábuas encharcadas da trincheira. Os feridos seguiam na retaguarda da coluna — aqueles que podiam andar, que ainda podiam carregar e portar uma lança, foram mandados de volta para a frente — arrastando-se com a cabeça baixa e os olhos distantes.
“Nós sentimos muito,” Karrak disse. Ele voltou de seu olhar distante. Uma tosse úmida engrossou sua voz. “Você vai levar aquele ouro?” – perguntou a Farid, olhando para a moeda que a sargento deixara no degrau da fogueira.
Farid olhou para a moeda. O sol tinha começado a queimar a névoa, e o ouro brilhava na luz fria da manhã. Ele a passou para Karrak, que a mordeu e verificou a impressão. Satisfeito, ele a enfiou em um bolso no fundo do casaco.
“Reposições, ela disse?” Karrak grunhiu.
“Reposições”, concordou Farid.
“Espero que sejam máquinas,” Karrak disse. “Algumas de Mishra. Não essas coisas mortas.” Karrak tossiu. “Chega de carne para esta fera.”
“Por mim, que mandem os mortos se isso significa que poderemos ir para casa,” Farid disse. “Deixe o qadir e seu irmão lutarem esta guerra com seus soldados de brinquedo.”
Karrak encolheu-se em seu casaco e estremeceu. Farid estendeu o braço e o puxou para perto. Ele podia sentir a febre que Karrak emitia, como um braseiro cheio de brasas até a borda. A mesma praga que o havia atacado apenas duas semanas antes, adivinhou Farid.
Um oficial – um capitão em um uniforme impecável, mas com botas manchadas de lama – surgiu na retaguarda dos soldados que marchavam. Farid o notou um segundo tarde demais. Xingando, ele se levantou. Karrak lutou, mas Farid ergueu o amigo e o segurou enquanto o capitão passava. Os dois bateram continência e o capitão os ignorou, consultando um calhamaço de ordens que um mensageiro havia passado para ele. O mensageiro, um jovem em um uniforme igualmente impecável, caminhava de lado, pulando entre o degrau da fogueira e a passarela de tábuas acima do chão lamacento da trincheira, tomando notas enquanto o capitão gritava ordens para serem espalhadas para várias unidades acima e abaixo da fileira.
Farid, Karrak e o resto dos homens em sua seção permaneceram o tempo que o capitão levou para passar. Quando o oficial dobrou a esquina e sumiu de vista, eles se sentaram no degrau da fogueira, se acomodaram em seus abrigos e se enroscaram para dormir.
O frio profundo do inverno alcançou Farid. Ele observou Karrak enquanto seu amigo tremia. Oficiais, movimento, substituições e reforços – atividade. Nada de bom poderia vir daquela atividade. Atividade significava ação, e ação significava ir para cima, para as lâminas e para o fogo das máquinas.
Os substitutos chegaram no dia seguinte, curvados sob pesadas mochilas, ainda não aliviadas pelos aspectos práticos da guerra. Eram humanos, e não autômatos de Mishra ou aqueles cadáveres mecânicos fedorentos; uma mistura de velhos e mulheres, jovens deslocados vindos dos cantos mais distantes do império, soldados desfigurados trazidos da recém-pacificada Sarinth e condenados. Os substitutos marcharam pelas trincheiras, de olhos baixos, sob os olhares silenciosos dos soldados ao longo da linha.
Para Farid, alguns pareciam ser de Tomakul, embora a maioria dos substitutos parecesse ser do tipo do deserto: magros antes de chegar ao fronte, engolidos pelos uniformes ou mal cabendo neles. Uma dispersão de zegonianos passou, falando em sua língua calma. Uma dupla de sumifans largos e tatuados passou marchando, uma canção nervosa em seus lábios que deixou um gosto de ozônio no ar. Uma unidade penitenciária caminhou a passos rápidos, observada de perto por seus vigilantes grandes e de língua áspera, a maioria deles fervilhando com uma mistura de medo, desespero e brutalidade que Farid ficou feliz em vê-los continuar na linha, e não parando em seu posto.
Alguns dos substitutos portavam-se com um ar de desafio, mas a maioria olhava para os elmos de latão com os olhos arregalados, cheios de pena e medo; a frente de combate nunca era como você queria. Farid lembrou que esperava ver cavaleiros e campeões e tudo isso quando chegou; em vez disso, ele encontrou uma cidade comprimida em um canal de pedra cinzenta e lama com uma dúzia de metros de largura e quilômetros de comprimento, povoada por temíveis e belos guerreiros com armas igualmente temíveis e belas, todos dispostos em direção ao brilhante Mardun e às ruínas de Kroog além do rio.
A verdade era que o fronte era um inferno: um pesadelo feito por homens. Se você se atrevesse a olhar por muito tempo para sua população, veria no que ela se tornaria: olhos vazios e vascularizados, cobertos de lama. Soldados esqueléticos em uniformes branqueados, remendados e manchados. Farid estava feliz por aquele momento ter ficado para trás. Melhor já ser o fantasma.
Por fim, os oficiais chegaram. Tenentes por suas listras e faixas, conduzindo os substitutos para seus novos postos. Os jovens oficiais carregavam aquela firmeza de Tomakul e, ao contrário dos soldados que lideravam, na verdade usavam elmos de latão e mantos rosas enfeitados com tecido dourado. Suas armaduras eram polidas e eles ainda carregavam espadas. Farid separou-se da massa de soldados em marcha com um esquadrão de substitutos a reboque.
“Soldado,” o tenente dirigiu-se à Farid. “Em qual companhia você está?”
Farid levantou-se do degrau da lareira e ajeitou as calças. “Companhia D,” ele disse, saudando. “Terceira Lança de Tomakul, comandada pelo Coronel-”
“Claro, tudo bem, vai servir,” o tenente disse. “Estes são seus, lanceiro.” O tenente acenou para o esquadrão de substitutos seguir à frente. “Bem-vindos à companhia D da Terceira Lança de Tomakul,” ele disse aos substitutos. “Esse lanceiro será seu superior aqui,” o tenente disse, apontando para Farid. “Procurem por ele para receberem orientação. Estarei no abrigo dos oficiais a partir de agora,” o tenente acenou para a linha. “O desfile é uma hora depois do amanhecer de amanhã sob as bandeiras da companhia. Dispensados.” O tenente puxou o elmo de latão, ajustou-o e depois se esgueirou pela vala lamacenta, deixando os substitutos para Farid.
Assim que o jovem oficial desceu a trincheira, Farid xingou, deixou sua postura rígida de desfile e acenou para os substitutos. Dez homens — a maioria jovens alguns anos mais novos do que ele e um veterano sem um olho — caminhavam juntos em um amontoado de casacos de lã marrom, mochilas e lanças compridas.
“Bem-vindos à Frente Argiviana,” disse Farid. “Sou Farid dos Tomakul. Este aqui é Karrak dos Suwwardi,” Farid disse. “O restante vocês vão encontrar em algum momento. Falem com a intendente por ali, ela vai te dar o símbolo do regimento e alguns fios para costurar na carta da companhia,” Farid manuseou a trincheira, e todos os substitutos se voltaram para olhar. “Algum de vocês é de Tomakul? Ou são todos das tribos do deserto?”
O grupo assentiu. O veterano mais velho olhou para frente com seu olho bom. Ele tinha a mesma aparência de Karrak – ele estava em qualquer lugar, menos aqui; ele não estava em lugar nenhum.
“Eu nunca tinha saído da cidade antes da guerra,” Farid disse aos substitutos reunidos. “Nunca estive no deserto profundo – ouvi dizer que fica frio à noite, mas nunca esperei isso. Pelo menos a Lua da Névoa é uma grande beleza.” Farid olhou em volta para os substitutos de olhos arregalados. Nada ali além de medo. “Por que vocês estão de pé?” Ele disse a eles. “Peguem um assento, encontrem um lugar.”
Havia poucos buracos e tocas escavadas na parede da trincheira e reforçadas por tábuas, os pisos enlameados cobertos com tiras de estopa e roupas rasgadas tiradas de soldados mortos. Os substitutos correram para pegar os bons. Cada buraco vazio abrigava alguém que passou por cima do muro e nunca mais voltou, e os mortos sempre deixavam pequenas bugigangas para trás; se você tivesse sorte, poderia encontrar algo valioso para trocar com a intendente por cigarros ou nabiz.
“Você viu o inimigo, senhor?” um dos substitutos mais jovens perguntou enquanto se acomodava no abrigo. “Os argivianos e seus demônios mecânicos?” O substituto nadava sob seu manto marrom não tingido. Ele carregava uma lança, em torno da qual uma fina fita de seda rosa estava amarrada. Farid a princípio achou que era o amuleto de uma amada que o menino havia amarrado, mas ao olhar para as armas dos substitutos, percebeu que todos tinham uma fita semelhante presa às lanças. Aquela era a nova marca do regimento, percebeu Farid. Não há mais elmos de latão para os elmos de latão. O menino, como o resto dos substitutos, usava apenas um boné macio com abas amarradas sobre as orelhas, em vez dos orgulhosos elmos que Farid e o resto dos soldados há muito destacados haviam recebido. Eles devem precisar do metal para criar mais autômatos, pensou Farid.
“Eu os vi,” Farid disse. “Suas máquinas também.”
“Quantos você matou?” o substituto perguntou, ansioso.
Farid pensou por um momento, relembrando o que pôde de seu ano de campanha. Ele encolheu os ombros. “Acho que não matei nenhum.”
“O que?”
Farid olhou para Karrak. “Você matou algum argiviano? Algum yotiano?”
Karrak, sempre embrulhado, balançou a cabeça. “Nenhum,” ele resmungou de suas cobertas. “Vi muitos mortos. Eu mesmo nunca matei nenhum.”
“Parando para pensar, eu nunca nem bati com uma lâmina para matar,” Farid disse. Ele mostrou a longa faca que levava ao seu lado, então apontou para o abridor de latas – uma lança robusta mais ou menos tão alta quanto ele, com uma ponta chata que se afilava em uma ponta afiada.
“Estes são abridores de latas. Nós as usamos nas máquinas de Urza – embora eu só tenha usado os meus em vingadores caídos e destroços de tópteros,” Farid disse. “O mais perto que estive de usá-los em uma luta adequada foi quando seguimos uma unidade de caçadores de foices em uma trincheira. Todos os argivianos estavam mortos quando chegamos.”
“Vi muitos mortos,” Karrak concordou.
“Te disse.” Um dos outros substitutos disse, cutucando seu companheiro. “Ratos de trincheira,” ele disse. “Covardes vergonhosos. Não é de admirar que os argivianos tenham nos empurrado para tão longe de Kroog – nada além de citadinos moles entre eles e o coração de nosso império.”
Farid e Karrak riram. Alguns dos outros soldados que estavam espionando riram, balançaram a cabeça e continuaram descansando, comendo ou cuidando de seus equipamentos gastos.
“Os argivianos estão a apenas duzentos metros naquela direção,” Farid disse, apontando por cima do ombro na direção da trincheira argiviana. “Você quer invadir a linha deles? Espere mais uma hora — o sol nascente estará às suas costas e então você poderá atacar como o sol do meio-dia na cabeça de um viajante sem água,” Farid disse.
“Isso… isso é exatamente o que devemos fazer!” O substituto engasgou. Ele era o mais corajoso de seus companheiros, mas todos concordaram com ele. “Por que não os expulsamos de nossas terras?”
Farid levantou-se do degrau da fogueira e deu um passo em direção ao jovem. “Quantos anos você tem?” ele perguntou, avaliando o jovem.
“Quinze,” o substituto disse, olhando para o lado, mas sem recuar. O menino era uns dois centímetros mais alto do que Farid, que fingiu ficar curvado depois desse tempo nas trincheiras.
“Qual é o seu nome, garoto?”
“Assad.”
Farid sacou a faca. Assad deu um passo para trás, esbarrando em seus companheiros.
Farid sorriu, virou-se e enfiou a faca bem fundo na parede de tábuas da trincheira atrás dele. Ele tirou um pedaço de madeira podre, embainhou sua faca e enfiou a mão na terra. Ele puxou um punhado duplo de argila para fora da cavidade, cavou alguns arranhões mais fundo e, em seguida, arrancou algo de dentro da parede da trincheira. Ele se virou e estendeu um pedaço de osso embrulhado em trapos, o cabelo emaranhado ainda grudado nos restos fétidos.
“Você é mais novo que esta trincheira,” Farid jogou o osso no chão nas botas do jovem. “Mas não muito.” Ele apontou para o osso irregular e encharcado. “Olhe para aquele osso. Era uma pessoa – você pode me dizer que uniforme eles usavam?”
O jovem olhou para o osso e não respondeu. O restante do seu grupo ficou em silêncio.
“Esta terra não importa,” Farid rosnou. “Você tem uma capa?” Farid perguntou ao grupo. Todos assentiram, alguns até agarrando as pontas das capas que usavam para mostrar a ele.
“Botas?”
Mais uma vez, os jovens mostraram a Farid as botas simples mas robustas que todos usavam.
“Ótimo,” Farid disse. “Ouça-me e aprenda bem minha lição: sua capa e suas botas importam mais para você do que esta trincheira. Se os argivianos passarem por nosso arame, se seus vingadores de metal liderarem o caminho, se parecer que vamos perder essa linha, você pega sua capa, suas botas e corre.” Farid chutou o osso das tábuas para a lama encharcada do chão da trincheira. “Sempre há outra trincheira. Pode nem sempre haver outra capa ou um par de botas.” Ele esperou até que cada um dos meninos acenou para ele. “Bom. Aula terminada. Você está dispensado.”
Os substitutos foram embora. Um permaneceu, sem sair de onde estava: o velho veterano caolho. Ele se apoiou em sua lança com o conforto de um assassino.
“Quanto tempo?” o velho veterano perguntou.
“Um ano e alguns meses a partir do começo do inverno,” Farid disse. “Karrak aqui contou três. E você?”
“Perdi meu olho no Cerco de Kroog”, disse o velho veterano. “Servi no corpo de suprimentos por um ano e depois me mandaram de volta para treinar novos guerreiros.”
“No Cerco?” Farid assobiou. “Eu era apenas um bebê quando Kroog queimou.” Farid acenou para que o veterano se sentasse ao lado dele no degrau da fogueira. “Qual é o seu nome, tio?”
“Aiman,” disse o velho veterano, abaixando sua mochila. A voz de Aiman era baixa e suave. O velho olhou ao redor da linha da trincheira, absorvendo-a. “A guerra mudou desde a última vez que fiz parte dela,” ele disse. “Mais lama.” Fixou o olho bom em Farid. “Vocês todos ainda são crianças.”
“A guerra do qadir,” Farid disse. Ele desviou o olhar e cuspiu. “Todos nós devemos fazer a nossa parte.”
Semanas após a chegada dos substitutos, tenentes e capitães subiam e desciam a linha da trincheira com trilhas de suprimentos e oficiais de logística a reboque. Intendentes reclamando e resmungando foram obrigados a distribuir latas para polimento de armadura, luvas novas, pedaços de tecido com os quais os lanceiros deveriam remendar seus mantos carmesins, rolos de seda e outras coisas inúteis. Eles também distribuíram rações extras de nabiz e carneiro que foram bem recebidas pelos jovens substitutos, mas que não sabiam o que significavam rações extras de vinho e carneiro. Pela manhã, os soldados eram acordados por mensageiros e seus sargentos para entrar em forma, ordenados a se alinharem o melhor que pudessem nos estreitos limites da trincheira para apresentações aos majores e coronéis que caminhavam com lenços até o nariz pelos lugares onde os soldados moravam.
Farid, Karrak e Aiman sabiam que isso não era rotina. Os substitutos jovens e recém-chegados não. Eles pensaram que se tratava de uma poderosa refutação às frias advertências de Farid feitas apenas alguns dias antes. Assad informou Farid sobre isso depois que sua seção foi dispensada após a inspeção desta manhã.
“Nada tão ruim, nesta vida,” Assad disse, em voz alta, para o círculo de recrutas que o seguiam. “Vocês só precisam perder essa suavidade da cidade, sabe?” Ele exalou uma respiração poderosa, enviando uma nuvem de vapor para o ar frio da manhã. Ele bateu um punho contra seu estômago firme. “Levem aquele calor do deserto em sua barriga e o amor por nosso império em seu coração, e você nunca verá um dia triste nesta poderosa força,” Assad disse. “Nosso qadir pretende nos colocar no ataque novamente.” Ele olhou para Farid, sorrindo. “E eu acho que todos aqui deveriam se cobrir de glória após este último ano de derrota. A única maneira de acabar com essa vergonha é colocar Tomakul nas nossas costas e fazer os argivianos correr, certo rapazes?”
Houve aplausos entre os substitutos e – para consternação de Farid – até entre alguns dos soldados que já estavam na linha há meses. A coragem dos tolos, perdia apenas para o medo, espalhou-se rápido como febre. Apenas aqueles que estiveram na linha de um ataque real e sobreviveram resistiram ao fervor.
Farid não enfrentou Assad. Ele não era um lutador; além disso, ele tinha planos a fazer.
Naquela noite, Farid, Karrak e Aiman se amontoaram em um abrigo profundo e falaram em sussurros apressados sobre uma única vela baixa.
“Esta noite, antes do amanhecer,” Karrak disse.
“Certo,” Farid disse. “O ataque certamente acontecerá no final da semana. Precisamos ir hoje à noite.”
“E como eles saberão que somos nós?” Aiman perguntou.
“Isso eu não posso dizer,” Farid disse. “Ainda não.”
“Certo,” Aiman grunhiu. “O que quer que me faça passar por isso, não vou reclamar.”
“Bom homem,” Farid disse.
“Se deve ser hoje à noite, então em quem confiamos para trazer?” Karrak, cuja febre finalmente cedeu, falou em torno da fumaça quente do fumo de rolo que tragava. Ofereceu-o a Farid, que abanou a cabeça. Aiman puxou o cigarro.
“Assad não,” Aiman disse. “Ele me lembra muito aqueles com quem lutei em Kroog. Todo músculo e nada de cérebro.”
“Jamal?” Karrak ofereceu.
“Jamal pode ser bom,” Farid concordou.
“Ele é rápido,” Karrak disse. “E quieto.”
“Não,” Aiman disse. “Jamal é sarinthiano. O qadir acabou de suprimir a rebelião deles,” Aiman disse. Ele balançou sua cabeça. “Eu gosto de Jamal, mas ninguém fora da unidade vai confiar nele. Se formos pegos lá fora com um sarinthiano…” Aiman passou o polegar pela garganta.
“Certo, bom ponto.” Farid suspirou. Ele passou a mão pela cabeça raspada. “Droga, Karrak. Por que temos que levar alguém novo?”
Karrak balançou a cabeça. “O sargento disse que temos que levar alguém novo para parecer convincente. Diz que o tenente disse a ele que o coronel ordenou que as patrulhas noturnas fossem equipes de quatro.” Ele encolheu os ombros. “Se formos apenas nós três, pareceremos suspeitos.”
“Tudo bem,” Farid disse. “Seremos quatro.”
“Ehsan,” Aiman disse. “Ehsan não é ninguém. Ele vai fazer o que for mandado e ficar quieto depois.”
“Ehsan?” Farid olhou para Karrak, que deu de ombros. “Perfeito,” Farid disse. “Aiman, vá buscar o jovem Ehsan.”
Aiman assentiu e tocou sua testa. Ele se afastou da vela e saiu do abrigo. Farid e Karrak ouviram o som de suas botas marchando pela trincheira. Quando elas desapareceram e ficaram sozinhos, Karrak finalmente falou.
“Podemos confiar em Aiman?”
Farid ergueu os olhos para a aba de lona que cobria a entrada do abrigo.
“Acredito que ele queira viver,” Farid disse. “Assim como eu, você e todos os outros que a guerra ainda não matou.”
“Ainda bem,” grunhiu Karrak em um tom que Farid sabia que significava concordância. “Aiman sabe quem é o verdadeiro inimigo.”
Uma comoção lá fora quebrou o longo silêncio que se seguiu. Botas batendo no piso de tábuas da trincheira, murmúrios excitados e xingamentos. Um grito.
Karrak começou a ficar de pé, com a mão na longa faca em seu cinto. Farid passou correndo por ele, irrompendo na trincheira a tempo de colidir com um grupo de soldados que passava correndo. Todos caíram no chão, xingando e culpando uns aos outros por sua trapalhada. Trocando empurrões, eles se levantaram e se separaram. Farid praguejou para os soldados enquanto eles desciam a trincheira; eles gritaram xingamentos de volta, mas continuaram na linha.
“O que está acontecendo?” Karrak perguntou, enfiando a cabeça para fora do abrigo. Não era um ataque – se houvesse um ataque, seria muito mais alto. Isso era outra coisa.
“Não sei,” Farid disse. Ele deu um passo para o lado enquanto mais soldados passavam correndo. “Algo por ali, talvez uma luta, talvez alguma nova máquina de guerra.” Farid estendeu a mão para Karrak. “Você vai vir?”
Karrak riu e voltou para dentro do abrigo, fechando a cortina atrás dele. Um não, então. Farid abotoou o casaco contra o frio da noite e se juntou ao fluxo de soldados curiosos que desciam a trincheira, arrastando-se com eles pelos ziguezagues e rajadas. Embora o sol tivesse acabado de se pôr e o mundo acima da trincheira ainda se agarrasse à luz do dia, o ventre das batalhas já estava mergulhado na noite profunda. As luzes da trincheira se acenderam e queimaram fracamente, banindo a escuridão umbral com uma luz quente e vermelho-sangue. Para Farid, aquela luz – destinada a salvar a visão deles em caso de assalto noturno – sempre fazia tudo parecer mais escuro. Neste momento acrescentava um horror especial.
Os murmúrios passavam pelos soldados amontoados à frente. Uma dupla de soldados se agachou na borda da trincheira, oferecendo as mãos para ajudar a puxar quem quisesse. O que quer que atraiu essa multidão aconteceu atrás da sua linha; não foram os argivianos.
Quando chegou a vez de Farid, os dois soldados o puxaram para cima. Eles estavam em silêncio, rostos sombrios, pálidos. Farid não fez perguntas. Os últimos dedos de luz sangravam abaixo do horizonte. Dezenas de soldados estavam a uma curta distância, sua respiração soprando branca no céu noturno cada vez mais profundo. Luzes vermelhas e verdes piscavam e deslizavam pelas aberturas nesta parede de corpos.
Farid foi sozinho juntar-se a eles.
Primeiro o fedor atingiu Farid. Como uma latrina aberta antes que o corpo sanitário chegasse a ela, ou um campo de batalha cheio de mortos. Um peso para o ar frio da noite. Ele empurrou a multidão, que parecia mais do que disposta a se separar. Alguns dos soldados até se viraram e começaram a voltar para a trincheira, orações saindo de seus lábios.
O som de correntes e marchas. O rangido do chão gelado pisoteado por centenas de pés descalços. As fracas luzes noturnas vermelhas e verdes cobriam postes carregados por seus vigias, luzes de sinalização que as criaturas acorrentadas seguiam. Os mortos. Farid pensou ter sentido o sangue sumir de seu rosto. Transmutadores. Coisas horríveis e lamentáveis que já foram humanas, agora um amálgama apodrecido de carne e máquina.
Sussurros se espalharam pela linha dos soldados que observavam enquanto os transmutadores marchavam a menos de dez metros de distância. Essas coisas eram o trabalho da protegida de Mishra. O destino de quem morresse na linha de combate, ou daqueles que faleceram de doença, ou daqueles que não queriam lutar quando as gangues de alistamento vieram para pegá-los.
Os transmutadores estavam acorrentados pelos tornozelos, com alguma distância permitida entre eles, mas moviam-se a um passo uniforme, mais perfeito do que qualquer linha treinada de soldados humanos que Farid já tinha visto. Na luz moribunda, ele não conseguia distinguir muitos detalhes desses horrores, mas o que viu ficou gravado em sua memória. Ele viu pele morta e grisalha, queimada pelo frio e pelo sol, esticada e costurada em metal escuro. Caminhavam sem se importar com o frio. Eles não carregavam armas, mas garras perversas irrompiam de tocos lamentáveis. Retalhos sem sangue com tufos mortos de cabelo puxados sobre cúpulas de metal polido. Véus metálicos escondiam os horrores dos rostos, mas não o hálito quente que saía por entre os elos.
O estômago de Farid embrulhou, mas ele não vomitou. O horror do que viu fazia sentido. Era o campo de batalha que ele conhecia, encarnado em uma legião decadente de máquinas de matar. Farid teve pena das pessoas que essas coisas tinham sido. Ele teve pena de si mesmo. Ele se virou para voltar. Quando ele estava perto da trincheira, os oficiais já tinham começado a gritar e berrar para que os soldados voltassem a seus postos, para que não fossem oferecidos como voluntários para o serviço mecânico.
A noite estava fria. Do lado de fora do abrigo de Farid, a trincheira estava viva com a movimentação. Soldados passavam silenciosamente com caixotes de bombas portáteis, pontas de lança de reposição, pontas de lança-explosiva, parafusos perfurantes, cortadores de arame, pedras de energia sobressalentes e várias outras munições.
Um ataque estava chegando. Farid imaginava que eles seriam ordenados dentro de uma semana. Ele não dormiu, nem Karrak ou Aiman. Em vez disso, com Ehsan sentando confuso, mas em silêncio com eles, os quatro lanceiros se amontoaram sobre uma vela fraca e planejaram por uma longa noite.
Farid, Karrak e Aiman, com Ehsan entre eles, moveram-se silenciosa e rapidamente pela trincheira, tomando cuidado para não perturbar nenhum dos soldados adormecidos. Eles carregavam apenas suas facas, sem lanças, e deixaram seus elmos de latão para trás, preferindo roupas escuras e gorros de lã macia. Ehsan não fez perguntas, mas Farid percebeu que ele tinha muitas. O menino era tão quieto quanto Aiman prometeu, pequeno e rápido, provavelmente não tinha mais de quatorze anos.
Farid carregava uma das luzes noturnas de lentes vermelhas. Era alimentada por um fragmento de pedra de energia e baixa o suficiente para não chamar a atenção, mas brilhante o suficiente para dissipar um pouco da escuridão profunda da trincheira.
“Espere aqui,” Farid disse, apontando a luz noturna para uma placa de madeira. Aiman pôs as mãos nos ombros de Ehsan para estabilizá-lo — ele tinha idade para ser avô do menino, pensou Farid. Karrak segurava um cigarro entre os lábios, mas não o acendeu.
“Sargento Usman,” Farid sussurrou enquanto se esgueirava para esta seção da trincheira. Ele bateu baixinho nas tábuas do lado de fora de cada abrigo, chamando o nome do sargento. “Sargento Usman, é o Farid da Companhia D, Terceira Lança de Tomakul.”
Um farfalhar, e uma das abas do abrigo se abriu. “Você está atrasado, Farid,” disse o sargento Usman, rastejando para fora de seu abrigo. “Eu esperava você uma hora atrás.” Ele bocejou, puxou o gorro para baixo em volta das orelhas e cruzou os braços para se aquecer. “Onde estão seus homens?”
“Aqui,” Farid disse. Ele olhou para Karrak, Aiman e Ehsan e acenou para eles. Os três se moveram silenciosamente para se juntar a eles.
“Bom, quatro, ótimo,” Usman disse, contando o pequeno grupo. “Aqui, um momento.” Usman assobiou entre os dentes, um som curto e cortante que desapareceu rapidamente na noite. Outro soldado emergiu de um abrigo com um braço cheio de mochilas macias. Usman as pegou e entregou a Farid, que as entregou um a um aos companheiros.
“Uma mochila cheia para mim e meus rapazes, lembre-se,” Usman disse, apontando o dedo para Farid. “Ou eu falo, e você se junta às máquinas.”
“Tio, você vai comemorar quando eu voltar,” Farid disse, com um sorriso rápido no rosto magro. “Você está com os pedidos?”
Usman enfiou a mão no casaco e tirou um conjunto de tiras finas de latão. Ele arrancou uma e estendeu a Farid.
“Você precisará pensar em uma desculpa para estar atrasado e longe de sua unidade,” Usman disse. “Mas essa plaqueta vai fazer sua história crível para qualquer oficial que possa detê-lo.”
“Excelente,” disse Farid, pegando a placa. Usman não a soltou.
“Uma mochila cheia,” Usman disse. “Se não estiver estourando as costuras-”
“Você vai contar,” Farid disse. “Não é minha primeira vez, sargento, não se preocupe. Você terá uma mochila cheia ao amanhecer.”
Usman soltou a plaqueta. Farid a guardou no bolso e Usman acenou para a trincheira, onde uma escada havia sido construída na parede. “Nós cortamos o fio esta manhã. Suba lá e fique abaixado. Assobie quando você voltar.”
“Você vai ouvir uma música tão bonita quanto as flores de Tomakul,” Farid disse, virando-se do sargento. “Rapazes, vamos.” Farid atravessou a trincheira e testou a escada. Encontrando-a firme, ele começou a subir. Karrak seguiu, com Ehsan e Aiman na retaguarda.
Enquanto observava as botas dos outros homens desaparecerem sobre a borda da trincheira, Ehsan hesitou. O menino olhou de volta para Aiman, que ele havia seguido de perto até agora.
“Tio,” Ehsan sussurrou para Aiman. “Aonde estamos indo?”
“Quieto,” Aiman sussurrou.
“Nós vamos lutar?”
“Não,” Aiman disse. “Agora, suba – e seja rápido, não queremos que nenhum oficial nos veja,” ele disse. Ele deu um leve empurrão em Ehsan, encorajando-o a subir. “Eu estarei bem atrás de você.”
A guerra arruinara a fé de Farid, mas ele ainda considerava o mundo acima da trincheira um inferno. Era um lugar desequilibrado. O paraíso era todas as coisas distribuídas em harmonia e justa proporção: os equilíbrios de pedra, fogo, céu e água, imbuídos no corpo e na alma, na terra e nos sonhos.
A terra de ninguém era o oposto, um crisol no qual as pessoas eram alimentadas e fantasmas emergiam. Era um inferno do corpo, da alma, dos sonhos e da terra. Era mais frio aqui do que nas trincheiras: todas as superfícies estavam expostas ao vento cortante do vale e aos olhos atentos dos soldados de ambos os lados. Nada restou da floresta que uma vez encheu este vale. As árvores que não haviam sido derrubadas antes que este vale se tornasse um campo de batalha agora eram tocos enegrecidos pelas cinzas. O rio que outrora corria aqui fora represado em algum lugar perto de Tomakul para negar aos argivianos qualquer recurso. Das cidades que antes pontilhavam o vale, restava apenas um único muro de pedra baixo e irregular. Era um marco territorial para os soldados: a que distância do muro alguém se moveu em um ano? Quão perto disso?
Farid conduziu seu pequeno grupo pela paisagem alienígena, movendo-se o mais rápido e silenciosamente possível enquanto rastejava, de barriga para baixo, guiando seu grupo ao redor dos piores mortos e das crateras inundadas com água ácida. Só se atravessava esta paisagem infernal passando entre crateras e por antigas e decadentes passarelas de tábuas, colocadas por forças que avançaram em ataques esquecidos muito tempo atrás. Uma prancha estava com os cadáveres de seus construtores apodrecendo ao lado, enfeitados com placas jogadas sobre eles por soldados de ambos os lados, gratos por seu sacrifício em tornar este lugar mais navegável.
Eles alcançaram seu primeiro ponto de referência sem incidentes: um tóptero-bombardeiro abatido, uma aeronave argiviana pesada que parecia um pássaro de barriga inchada. Os quatro rastejaram para dentro através de um rasgo na fuselagem de metal fino.
“Maldita tosse,” Karrak disse. Ele chiou, lutando para respirar.
“Espere um momento,” Farid disse. “Todos vocês, tirem um momento para descansar aqui.”
“Como uma gaivota errante,” Aiman disse, espiando pelo vidro empoeirado do compartimento de tripulação do tóptero. “Grandes pássaros que voavam ao lado do navio do meu pai.” Falou em voz alta, mas para Farid parecia que falava apenas consigo mesmo. Aiman olhou através dos destroços em direção às linhas argivianas. “Eu nunca os vi no chão. Eu nunca pensei que eles podiam pousar.”
“Onde estamos?” Ehsan disse. Sua voz ainda era alta e suave, muito parecida com a de uma criança.
“Mais baixo que nos Nove Infernos,” Karrak resmungou. Ele colocou sua mochila pesada no chão úmido do tóptero, gemendo de alívio com o peso de seus ombros. Com uma mão esfregando sua garganta, ele subiu até Aiman e lhe deu um tapinha no ombro. “Deixa eu ver.”
Farid ofereceu a Ehsan um gole de água. O menino pegou, bebeu e devolveu.
“Cerca de cinquenta metros para lá, para onde Aiman e Karrak estão olhando, fica a linha argiviana,” Farid disse.
Ehsan olhou com os olhos esbugalhados para as linhas inimigas.
“Não se preocupe,” Farid disse. “Nós não vamos atacar” – ele indicou as mochilas que Karrak e Aiman carregavam – “Nós vamos negociar. Tudo o que temos a fazer é pendurar esta bandeira aqui,” ele disse enquanto puxava um pequeno pedaço de pano branco do bolso do casaco. “E esperar.”
“Acho que nunca vi um argiviano antes,” Ehsan disse. “Eu estava pensando como eu mataria um sem uma lança – os oficiais disseram que eles são feitos de metal, e tudo que eu tenho é esta faquinha.”
“Não é com as pessoas que você precisa se preocupar,” Karrak disse.
“Eles morrem rápido como flores cortadas,” Aiman disse, concordando. “Assim como nós.”
“Não vamos matar ninguém,” Farid disse, acalmando o grupo. “Você pode manter essa faca escondida, Ehsan. Você não vai precisar dela, a menos que seja para cortar chocolate ou salsicha.”
Ehsan sorriu com a menção de chocolate. Farid percebeu que fazia muito tempo desde a última vez que Ehsan sorriu. Aliás, fazia muito tempo que Farid não sorria. Era preciso humanidade para sorrir de verdade, e Farid não tinha mais isso. Isso não era uma sentença; era uma admissão, um ato necessário de sobrevivência. Canalize sua visão para a missão e sobreviva.
Farid, rapidamente, pendurou a tira de pano do lado de fora do tóptero caído, de frente para as trincheiras argivianas. Então, eles se acomodaram para esperar.
A noite fria antes do amanhecer foi interminável, estendendo-se por este vale maldito de Tomakul a Kroog e além. Ela se infiltrava nos corações e desejos de cada senhor adornado e imperador faminto de poder, inundava seus olhos como sangue no leite. Ávidos, eles se levantavam e enviavam um milhão de seus filhos para alimentar o apetite da noite, que agora era indistinguível dos seus.
Farid era apenas um entre milhões. Os príncipes do mundo veriam a alma de Ehsan adicionada à conta do açougueiro e, impassíveis, pediriam mais um milhão.
Ele olhou para Ehsan, estendeu a mão e deu um tapinha em sua bochecha.
“Você não precisa se preocupar,” ele disse. “Você vai ficar bem.”
E então uma explosão em algum lugar ao longe, seguida por uma série de estalos agudos e lamentos longos e crepitantes. Os sinalizadores lançados de ambos os lados iluminaram uma seção da trincheira e da terra de ninguém a um quilômetro e meio de distância, longe o suficiente para que a luz da ignição dos sinalizadores piscasse um instante antes do som de sua detonação. Eles podiam ouvir os ecos de gritos distantes em algum lugar no vale, mas não sabiam dizer de que lado gritava.
“Para baixo,” Farid sussurrou. Ele acenou com a palma da mão para baixo e colocou um dedo nos lábios. “Abaixar, agora!”
Os quatro caíram no ventre sombreada do tóptero colidido, mãos sobre a cabeça, e esperaram. A luz hostil e constante dos sinalizadores lançava sombras duras e assustadoras através do vidro rachado e sujo do compartimento de tripulação do ornitóptero e das janelas de bombardeio. Aquela luz era implacável, branca e furiosa, o olhar de um deus que só conhecia o fogo.
O trovão se acalmou. Não era uma batalha, apenas uma luta sem consequências. Farid soltou um suspiro longo e trêmulo. Ele considerou enquanto via a luz dos sinalizadores se desvanecer e a noite voltar.
“Eles estão vindo.” Aiman disse. Ele espiou através da cobertura de vidro empoeirado do tóptero. “Eu vejo quatro deles pelo menos, a trinta metros de distância.”
“Só eles, certo?” Karrak perguntou. “Sem vingadores? Sem caminhantes?”
“Só eles,” Aiman disse. “Farid?”
Farid olhou para Ehsan, que se arrastara para um canto, pálido e trêmulo. Seu sorriso esperançoso se foi. O menino sabia que nunca ficaria bem. Nem se por algum milagre Farid conseguisse ressuscitar esse ornitóptero e levá-lo para casa, Ehsan nunca mais seria uma criança. Nenhum deles poderia ter de volta o que havia sido arrancado deles. Era fácil se tornar um dos próximos milhões, mais difícil resistir ao impulso dos senhores e imperadores. A não ser que-
“Karrak,” Farid disse. “Vá cumprimentar nossos amigos.”
Os argivianos falavam um pouco de Fallaji, e da mesma forma Farid, Karrak e Aiman sabiam um pouco de argiviano. Quatro argivianos escalaram os destroços do bombardeiro. Um deles trouxe um cantil cheio de alguma bebida picante, Karrak abriu seus fumos de rolo e os soldados começaram a conversar, brincar e trocar pequenas coisas. Embora hesitante no início, Ehsan logo se juntou ao resto deles, e os oito soldados juntos fizeram uma calorosa fuga da guerra. Nos destroços do ornitóptero abatido, esse pequeno grupo podia muito bem ter se conhecido em um café em Tomakul ou em uma casa de chá em Argive; se Farid fechasse os olhos, quase podia imaginar um mundo fora deste.
“Quero me desculpar pelo atraso,” disse a líder argiviana em um Fallaji com leve sotaque. Ela era uma mulher despenteada que fazia Farid lembrar sua mãe. Séria, mas ele podia ver as linhas de sorriso estampadas em seu rosto. Laria, Farid lembrou-se do nome dela.
“Atravessar nossa linha foi difícil,” Laria disse. “Muitos oficiais. Muitos novatos.” Ela apontou para os olhos e depois para o grupo. “Eles não confiam em nós, então eles vigiam.”
Karrak grunhiu. “Típico de oficiais,” ele disse, usando seu próprio argiviano enferrujado. “Sempre procurando usar suas espadas.”
Os argivianos riram. Laria sorriu. Ela olhou além de Farid e Karrak para Aiman e Ehsan, que, embora fizessem parte do grupo, permaneceram calados. “E quem são eles?”
“Este é Ehsan,” Aiman disse, falando antes de Farid. O argiviano do velho, embora com sotaque, era perfeito; ele falava com o conforto de quem tinha ouvido uma língua quando jovem e crescido com ela. “Ele é novo na linha, de Tomakul. Meu nome é Aiman. Não sou novo na linha, embora achava que estava aposentado da guerra muitos anos atrás, depois de ter sido ferido.”
“Você fala bem a nossa língua,” Laria disse. Ela mudou para argiviano e se apresentou. Farid só captou algumas palavras enquanto ela e Aiman mantiveram uma conversa rápida e sociável. Farid observou os dois conversando e sentiu uma espécie de esperança distante. Aiman, como Ehsan, ainda podia despertar a pessoa que era antes da guerra – a única diferença era que ele já havia passado por aquilo antes. O velho tinha sido empurrado para o inferno, quase rasgado em pedaços pelas máquinas da morte lá, e ainda sabia como fazer alguém rir. Seu sorriso não era doce; muitos dos seus dentes estavam faltando e as cicatrizes que saíam de seu olho arruinado repuxavam o canto de sua boca. Mas era um sorriso lindo. A risada silenciosa de Laria era o som das irmãs e da mãe de Farid, amassando a massa de farinha.
Esse foi um bom momento. A guerra não fazia esse momento acontecer; aconteceu apesar da guerra. Farid olhou do sorriso quebrado de Aiman para os cabelos grisalhos de Laria, do rosto esquelético de Karrak para a testa enfaixada do soldado argiviano com quem ele comparava e trocava facas. Farid não era poeta, mas a beleza daquele momento permaneceu com ele. Ele guardou na memória a tragédia dessa pequena paz: o sangue deles era a tinta com que senhores e imperadores reescreveriam as fronteiras do mundo.
“Está quase amanhecendo,” Laria disse depois que algumas horas gentis se passaram. Agora os oito estavam bem confortáveis, seus elmos descartados e mochilas empilhadas, carregadas com as mercadorias que eles trouxeram para o comércio. “Devemos voltar.”
Agora, Farid pensou. Os poderosos não podiam escrever sem tinta; roubá-los de seu meio. “Está vindo um ataque,” Farid disse. “Nossos oficiais estão preparando um ataque. O fronte inteiro.”
Laria ergueu uma sobrancelha. Ela olhou para seus soldados, que pararam enquanto ajustavam suas mochilas.
“Farid,” Karrak disse, falando em Fallaji. “Isso pode nos matar.”
“Silêncio,” Farid disparou.
Karrak ficou quieto, carrancudo. Farid o ignorou e continuou, voltando para a argiviana.
“Nossos generais moveram um regimento inteiro de transmutadores – os mortos do qadir,” Farid disse. “Aquelas sedas e estojos que lhe demos? Eles os distribuíram para nós há poucos dias. Eles nos deram vinho e carne. Trouxeram milhares de substitutos de todo o Império,” ele disse, gesticulando para Aiman e Ehsan.
Laria assentiu. Qualquer soldado há tanto tempo na linha sabia o que significavam rações extras e movimentos de tropas. “Obrigada, Farid,” ela disse. Ela olhou para Aiman e falou com ele em argiviano, rápido demais para Farid entender. Aiman respondeu, Laria sorriu e, com uma saudação, ela e suas tropas deixaram o ornitóptero.
“O que ela disse?” Farid perguntou a Aiman.
“Estátuas de argila,” Aiman disse.
“O que?”
“O general deles,” Aiman disse. “Um homem chamado Tawnos. Ele é um artífice a serviço do Lorde Urza. Ele trouxe consigo uma dúzia de unidades de soldados de argila.” Aiman acenou para a linha argiviana. “Laria disse que eles sabem que nosso ataque está chegando. Eles estão se preparando há semanas. Vai ser um massacre de ambos os lados,” Aiman disse. “Mas se ficarmos para trás, disse ela, será apenas um massacre de máquinas.”
Farid expirou. Ele estava prendendo a respiração o tempo todo sem perceber. Ele olhou para Karrak, que estava pálido.
“Temos que manter isso para nós mesmos,” Karrak disse. Ele olhou para Aiman e Ehsan. “Não podemos contar a ninguém.”
“Eu sei,” Farid disse.
“Se mais alguém descobrir que sabemos disso,” Karrak sussurrou, “seremos enforcados como traidores, isso se não morrermos primeiro.”
“Sim,” Farid assentiu. Ele fechou os olhos e suspirou. Beliscou a sobrancelha. “Tudo bem. Nós manteremos isso entre nós, combinado?”
“Sim,” Aiman disse. Ele murmurou uma oração rápida.
“Concordo,” Karrak disse.
Ehsan não disse nada, mas assentiu.
“Bom,” Farid disse. Estava longe de ser bom, mas foi o suficiente.
Enquanto rastejavam, silenciosos e carregados, pela lama fria de volta à trincheira, Farid lutava com esperança. Que outra escolha as pessoas descartáveis do mundo têm? Os homens acima deles tinham armas, ouro, bênçãos dos deuses, tudo o que Farid tinha era apenas seu corpo. Tudo o que ele podia fazer era se recusar a ser tinta e tentar salvar os que ainda podiam ser retirados da noite.
A ordem de ataque veio dois dias depois.
Os assobios do oficial empurraram a fria manhã para uma claridade intermitente. Um objetivo: sobreviver e avançar. Farid estremeceu quando outra enxurrada de raios de energia e granadas ressoaram no alto, assobiando e gritando no céu. A terra tremeu, seu coração batia forte contra sua couraça.
A primeira onda já havia subido, apenas alguns da seção de Farid caindo na trincheira de volta, enfeitados com virotes. A segunda onda estava pronta no degrau do fogo; Farid, Karrak, Aiman e Ehsan estavam na onda final do dia, ombro a ombro com os outros soldados da Companhia D, Terceira Lança de Tomakul. O medo fedia e a respiração rasa embaçava o ar acima deles. Alguém vomitou, como sempre acontecia. A perna de Farid não parava de tremer.
Um som como um trovão retumbou acima, constante e estremecedor. Grandes lançadores de bombas, catapultando granadas de algum lugar bem atrás da linha. Farid já tinha visto aquelas máquinas: pareciam besouros com chaminés eriçadas nas costas — canhões, como os engenheiros e artífices os chamavam. Eles estavam atirando há quase uma hora, atingindo a linha argiviana com explosões e estilhaços. A fumaça acre voltou. Embora não pudesse ver de dentro da trincheira, Farid sentiu o cheiro do fogo terrível e violento. Eles continuariam aquele bombardeio até que a primeira onda estivesse quase nas linhas argivianas.
Um oficial estava bem atrás de Farid, de espada em punho, e berrava sobre glória e honra e sobre mandar os cães argivianos de volta ao Mardun. Ele prometeu um saco de moedas de ouro ao primeiro soldado de sua companhia que chegasse à trincheira argiviana, uma homenagem a quem capturasse uma bandeira argiviana. Se algum covarde ficasse para trás, ele prometeu fazer com que provasse o aço de Tomakul.
As vidas da Companhia D estavam empacotadas em suas costas. Se esse ataque fosse bem-sucedido – o que os oficiais exigiram e garantiram que seria – eles se moveriam para a trincheira limpa. Se eles morressem, seria fácil para os intendentes e oficiais de suprimentos recolherem. A Companhia D usava seus casacos, suas facas compridas, elmos de latão, se os tivessem, ou capas macias, se não os tivessem. Eles carregavam suas lanças curtas e bandoleiras com extras pontas explosivas, porretes, pregos de trincheira. Qualquer coisa para torná-los melhores assassinos.
Os lançadores de bombas ficaram em silêncio, os últimos relatos de bombas ecoavam pelo vale.
Outro assobio. Os latidos dos sargentos e os berros dos oficiais fizeram a segunda onda sair do degrau da fogueira, subir as escadas, passar pela beirada da trincheira e entrar na fumaça rodopiante. Não há terreno além da borda da trincheira, pensou Farid enquanto se aproximava do degrau da fogueira. Ele celebrou junto com o resto dos homens, gritou até sua garganta doer para que os oficiais não se voltassem contra ele. Aiman berrou, a voz de Ehsan falhou e vacilou. Karrak xingava repetidamente.
Eles eram os próximos.
“O que nós fazemos?” Ehsan ergueu os olhos para Farid, segurando sua lança com as juntas dos dedos brancos.
“Vamos devagar,” Farid sussurrou. Não era seguro falar aqui. “Fique comigo. Seja minha sombra. Não vá a lugar nenhum que eu não vá. Se eu morrer, procure por Karrak ou Aiman.” Farid olhou para Ehsan. “Se você não encontrar nenhum de nós, desça e fique até a noite. Não lute, apenas fique vivo.”
Ehsan assentiu. Aproximou-se de Farid, que pôs um braço em volta de seu ombro.
“Preparado, lanceiro!” O oficial atrás deles gritou, batendo no braço de Farid com a parte plana de sua espada. Farid xingou e tirou o braço do ombro de Ehsan.
Gritaria para cima e para baixo na linha. Mensageiros correndo com pedidos de última hora. Os oficiais apertavam assobios entre os dentes, mas não sopravam, lendo os pequenos pergaminhos.
O vento mudou. O fedor podre de decomposição invadiu a trincheira por trás enquanto os oficiais gritavam para os soldados pegarem suas máscaras. Farid e o resto da companhia tiraram as máscaras de musselina das bolsas e as amarraram. O tecido era fino e pouco fazia para banir o fedor dos transmutadores. Livres de suas correntes, eles trotaram em passos lentos sobre pontes estreitas de tábuas colocadas sobre a trincheira. A não ser pelo som de seus pés nus de carne e metal batendo na madeira ou chacoalhando na lama fria, eles ficaram quietos.
Farid, felizmente, não estava debaixo de uma das pontes. Ele arriscou um olhar para o cruzamento mais próximo e observou horrorizado enquanto os transmutadores avançavam; embora produzidos em massa em algum ossuário, cada um parecia ser um corpo individual, um casamento único de carne morta e ferro. Cada um era um pesadelo.
Farid apertou mais a máscara de pano e fixou os olhos na escada à sua frente. Quando o apito soou, ele subiu, empurrado pelos que estavam atrás dele. Perto do topo da escada, ele estendeu a mão e pegou a mão de Karrak, puxando-se sobre a borda da trincheira. Ele se virou e ajudou Ehsan a se levantar, e então deixou o oficial para trás para subir sozinho.
A investida foi lenta, apesar dos silvos dos apitos dos oficiais e do grito rouco da terceira onda. Fumaça pairava sobre tudo, encolhendo o mundo até ser um anel nebuloso de uma dúzia de metros de diâmetro. Farid, Aiman, Karrak e Ehsan avançaram lentamente, as lanças niveladas, espaçadas apenas alguns metros, marchando em vez de correr em direção à linha argiviana. Cerca de uma dúzia de lanceiros caminhava ao lado deles, desaparecendo na fumaça dos dois lados. Um oficial caminhava atrás deles, espada desembainhada.
“Fiquem firmes, rapazes,” Farid disse. “Firme. Cuidado com o chão.” Uma chuva quente havia caído, lama e água vindo do poderoso bombardeio da manhã. Aqui e ali, eles se depararam com os corpos caídos de seus companheiros, dilacerados e queimados. Vítimas das granadas que erraram o alvo e caíram entre suas próprias fileiras.
A investida pelo terreno neutro foi uma lenta queda de equilíbrio e recuperação. Eles escorregaram e deslizaram por crateras lamacentas e usaram suas lanças como bengalas. Gritos soaram em cima e embaixo na linha, flutuando na fumaça durante o avanço. Juntos, eles cruzaram o campo de crateras e passaram pelo ornitóptero caído. À frente estava quieto, sem o som usual de batalha. Sem gritos de dor ou medo, sem berros, sem choque de metal contra metal, sem grandes estrondos ou sonoras de bombas ou das armas maciças das máquinas. Apenas o crepitar do fogo, o suave chacoalhar de seus equipamentos e o encorajamento silencioso dos oficiais atrás.
Eles chegaram à trincheira argiviana e a encontraram vazia. O bombardeio foi eficaz e terrível, transformando as ameias bem projetadas em uma confusão de arame, madeira em chamas e equipamentos abandonados. Alguns soldados Fallaji levemente feridos da primeira e segunda onda sentaram-se fumando ou descansando em caixotes capturados de equipamentos argivianos. Eles saudaram a terceira onda com acenos exaustos e aplausos sarcásticos.
“Onde estão os argivianos?” um tenente gritou para os soldados feridos. “Onde está o inimigo?”
“A frente foi movida,” disse uma cabo ferida. Ela sinalizou por cima do ombro, descendo o vale em direção ao distante Mardun. “O restante do Terceiro foi para a próxima trincheira. Parece que os argivianos estão correndo de volta para Kroog.”
O oficial esbravejou e fungou, depois ordenou à Companhia D que verificasse a trincheira enquanto ele descobriria o que deveria fazer. Farid, Karrak, Aiman e Ehsan foram juntos, os quatro vagando por uma parte da trincheira que estava praticamente intacta.
Eles descobriram o que era um espelho deles mesmos. Buracos e pequenas câmaras para os soldados se agacharem e dormirem. Prateleiras vazias onde teriam guardado as armas para acesso rápido caso ocorresse um ataque. Muitas pequenas coisas deixadas para trás na pressa de escapar. Nem uma única alma permaneceu. Farid e Ehsan encontraram um transmutador que caiu na trincheira e se partiu ao meio. Farid o golpeou com a lança, pensando em acabar com o sofrimento da besta, mas ele apenas agarrou a arma e voltou seu olhar sem olhos para ele. Farid soltou a lança e cambaleou para trás. O transmutador estremeceu, como se tentasse se levantar, mas não fez nenhum som. Aiman puxou Ehsan da criatura, afastando-o sem palavras antes que o menino pudesse tentar usar sua própria lança na criatura caída.
“Ei, Farid,” Karrak chamou. Ele estava no meio do caminho de um abrigo, lança debaixo do braço. “Olha o que eu achei.” Ele ergueu um pequeno pacote de papel de embrulho, preso com um pedaço de tecido familiar. Farid se aproximou e viu que era uma tira de seda Fallaji – uma das faixas que haviam trocado com Laria e seus soldados.
“O que é isso?” perguntou Farid.
“Não faço ideia.” Karrak disse, oferecendo a ele.
Farid pegou o pacote. Por um momento, ele temeu que fosse uma armadilha, mas esse momento passou. Karrak, Aiman e Ehsan o cercaram, curiosos. Farid puxou a seda, enfiou-a no bolso e desembrulhou o conteúdo, revelando um pedacinho de chocolate e um bilhete.
Nossa gratidão, escrita em caligrafia Fallaji por uma mão argiviana.
Farid sorriu. Uma coisa pequena e humana. Tinta, borrando a página.
Os apitos dos oficiais recomeçaram. Para frente, era a ordem.
Onze milhas das cúpulas douradas de Tomakul, o fronte estava em movimento novamente.
44 AR
Teferi apareceu à noite em um lugar muito parecido com o inferno. O fogo queimava baixo em todos os lados do local onde ele tornou-se consciente. Ele estava grato pois, como espírito, não podia sentir o cheiro do que via: os mortos estavam tão compactados que em alguns lugares não havia solo visível, apenas corpos em cima de corpos. Máquinas destruídas tiquetaqueavam e esfriavam. Terraplenagens, outrora poderosos testemunhos de engenharia e brilhantismo humano, estavam vazias e abandonadas. Um campo de batalha à noite, depois de um preço sangrento pago. Teferi olhou em volta, carrancudo, e tentou se orientar; os dois últimos saltos o haviam abalado.
A Última Batalha ocorreu em Argoth, uma ilha destruída e enterrada pela explosão do Sílex. Histórias registradas por sobreviventes em outros lugares de Terisíare falavam dela como uma joia verdejante, o último lugar verde onde os irmãos lutaram. Este lugar não era aquele. Um pedaço de muralha estava sozinha em um vale despojado de árvores e vegetação, transformado em lama e atravessado por trincheiras cercadas de arame. Incêndios queimavam qualquer superfície que pudesse alimentar o fogo. Não era Argoth; provavelmente algum lugar do continente.
O nó do tempo em torno da Última Batalha era um atoleiro confuso de loops recursivos, potencialidades e caminhos ramificados. Navegar por eles, mesmo com a ajuda da brilhante Âncora Temporal de Saheeli, era um pesadelo. Ou era o que Teferi achava, até se realinhar aqui neste campo de batalha. Este era o verdadeiro pesadelo. Pior ainda do que as ruas em chamas de Kroog. Ele voltou abalado com aquela experiência, mas o tempo – mesmo para ele, e mesmo com a âncora à sua disposição – estava se esgotando. Ele tinha que voltar, rápido.
Teferi supôs e, contra os protestos de Kaya e Saheeli, havia engajado a âncora mais uma vez, buscando a Última Batalha na multiplicidade do tempo que era a Guerra dos Irmãos. No papel, sua busca era bastante simples: encontrar o que ele passou a chamar de “tempo borrado”, onde dezenas de milhares de vidas se encontravam e chegavam ao fim. Para Teferi, o tempo borrado parecia como buracos mastigados em uma cortina suspensa, ou estrelas no céu noturno. Sua causa foi a grande mortalidade – as infinitas possibilidades de todas aquelas vidas terminarem em um momento, levando consigo um pedaço da grande tapeçaria do tempo.
O tempo estava se esgotando; o momento que Teferi procurava era difícil de encontrar. Ele era apenas um observador; ele não era um deus. Todas as outras possibilidades estavam escapando dele.
O que ele sabia da Última Batalha? Urza trouxe um colosso de pedra e ferro, e lutou contra um titã de madeira e resina e os mortos de Argoth. Então Urza e o Sílex mataram o mundo.
Teferi deslizou sobre o chão, dando a si mesmo alguns minutos antes de voltar e tentar novamente. Ele não viu um colosso de pedra ou uma criatura titânica da floresta, como o poema de Kayla havia mencionado. Não havia oceano. Apenas lama e os mortos.
E os carniceiros.
Teferi não os viu quando chegou, mas os viu agora. Figuras solitárias espreitavam pelo campo, curvando-se de vez em quando para examinar algum corpo. Sozinhos ou em pequenos grupos, eles arrastavam corpos atrás deles, empilhando-os em carrinhos que outros empurravam para a noite. Alguns recolhiam algumas partes arruinadas dos autômatos caídos, tirando pedras de energia de soquetes e juntas de corpos despedaçados.
“Quem é você?”
Se Teferi tivesse sangue, teria congelado. Ele se virou, lentamente, e olhou para o rosto horrivelmente aprimorado de um dos carniceiros vestidos de preto.
“Você é aquele do nosso sonho?” a pessoa sussurrou. Eles deram um passo à frente, um zunido grave e um clique saindo deles. Seus olhos eram lascas pretas de vidro cravadas em órbitas inchadas e vermelhas. A boca deles era sem lábios, sem dentes, substituída por um cilindro cravejado e giratório que clicava finas tiras de metal enquanto girava. O som era monotônico, suave e hediondo.
Eles não pareciam estar com dor. Em vez disso, parecia que eles estavam sorrindo.
Teferi flutuou para trás, evitando os carniceiros que se aproximavam dele. A bainha da manga caiu, revelando um braço que terminava em um aglomerado de dezenas de pequenos dedos.
“Irmãos,” o carniceiro gritou. “Vocês o veem?”
Teferi já tinha visto o suficiente. Esta não era a Última Batalha, apenas uma nota de rodapé perdida no grande vazio da tapeçaria do tempo que foi a Guerra dos Irmãos.
Era a hora de ir.
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