Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

A GUERRA DOS IRMÃOS - EPISÓDIO 03: PRIMEIRA LÂMINA

28 AR

Kroog morreu em uma manhã escarlate.

Para Sanwell era como um dia de festival, só que a multidão aplaudia em tom mais baixo, e os estrondos e estalos não eram fogos de artifício explodindo, e a fumaça subindo sobre a cidade fedia a fábricas em chamas e tijolos fumegantes.

Arte de Steve Prescott

O pátio principal do orniário fervilhava de atividade. Técnicos e artífices corriam de um lado para o outro carregando parafusos anti-blindagem, pedras de energia e espadas vingadoras. Esmagadores e outras unidades autônomas esperavam em fileiras de prontidão, lotando a praça. Montes de munição, peças sobressalentes e outros materiais estavam em pilhas apressadas. Os cinco alunos pilotos e sua instrutora estavam na frente dos suprimentos cobertos de lona, de frente para uma fileira de vingadores antigos e reformados.

O sol da manhã estava baixo e quente no céu, queimando o resto da chuva morna da noite. Sanwell, em posição de sentido, cambaleou, tonto. Seu estômago embrulhou, e ele vomitou no tijolo entre suas botas.

“Piloto Sanwell, endureça sua postura,” Llora gritou. A instrutora dos cadetes estava com o rosto vermelho e severo, vestida com um uniforme limpo e engomado, apesar da hora adiantada e da reunião apressada.

“Desculpa, senhora,” Sanwell disse. Ele cuspiu o resto de seu enjoo na praça de pedra e passou as costas da mão na boca. Ele não tinha nada para tossir além de água e nervosismo; o ataque ocorrera antes do café da manhã.

“Está bem, San?” Rica murmurou.

O rosto de Sanwell ardeu de vergonha. Rica permaneceu inabalável ao seu lado, tão estoico como se tivesse sido esculpido no próprio tijolo vermelho de Kroog.

“Tudo bem,” Sanwell disse. Ele queria morrer. “Acho que comi algo estragado na noite passada.”

Rica não disse mais nada. Os sinos de alerta de Kroog soaram por toda a cidade. O som revirou o estômago de Sanwell quase tanto quanto o desinteresse de Rica.

“Estou preocupado com meu irmão,” Sanwell disse. “Rendall está na capital – ele é um aviador, não foi treinado para lutar.”

“Olhos para a frente!” Llora bradou, interrompendo a conversa unilateral de Sanwell com Rica. A velha Suwwardi andava diante da pequena fila de aprendizes vingadores, encarando cada um por vez. A mulher era resistente como couro novo e áspera como a cal que o curou, fina como um junco e afiada como uma agulha.

Sanwell sentiu que estava desmaiando. Ele notou que estava se aprofundando nas metáforas para se afastar da sensação.

“Vocês cinco, cadetes,” Llora começou, “têm a honra de serem os únicos da infantaria da cidade capazes de tripular um vingador e manter a cabeça sobre os ombros.” Llora apontou para o chão sob suas botas. “Vocês estão sendo convocados, rapazes. O treinamento acabou. Hoje é o dia em que vocês salvam Kroog.”

Sanwell olhou por entre as próprias botas para os tijolos vermelhos, cuidadosamente dispostos em padrões de estrelas em espiral. Levou algum tempo para Sanwell se acostumar com aquilo – os yotianos decoravam tudo. Isso significava que tudo – desde cozinhar até construir – demorava um pouco mais, porém para o jovem Sanwell valia a pena. Em Kroog, como em grande parte de Yotia, até as ruas eram arte. Ao contrário dos blocos estoicos de sua Penregon natal, Sanwell podia andar com a cabeça baixa ou os olhos erguidos e, de qualquer forma, encontraria um pouco de majestade. Era como uma cidade deveria ser, pensou Sanwell: cheia de pequenas maravilhas, encantos escondidos às claras, todos guardados por poderosas conquistas.

Ele estava pronto para lutar e defendê-la?

Não era uma questão teórica. Llora tinha acabado de se inclinar, cara a cara, para perguntar a ele.

Sanwell piscou e vacilou.

“Eu perguntei,” Llora rosnou, “você está pronto para lutar por Kroog?”

“Uh, sim, estou,” Sanwell disse.

“Sim, senhora,” Llora corrigiu Sanwell. “Você está na linha de combate agora, Sanwell. Acabou o treinamento, acabou a prática. Você está pronto para lutar?”

“Sim, senhora,” Sanwell disse, mais alto.

Llora assentiu. “Mostre-me,” ela disse. Ela pressionou um dispositivo fino na mão de Sanwell e deu um passo para trás. Os outros quatro alunos — pilotos, Sanwell corrigiu. Mentalize. Mude sua mente, mude a realidade. Você é um piloto agora — os outros quatro pilotos caminharam até Llora, tomando posições de descanso, mas atentos, atrás da instrutora.

Sanwell pegou o dispositivo portátil — uma haste de comando, mas um modelo novo — e o verificou. Era do comprimento de seu antebraço, marcado em uma extremidade para segurar, afunilado levemente na extremidade oposta. Um pequeno interruptor tátil descansava sob seu polegar quando ele segurava a haste. Sanwell acionou a haste e um zumbido suave aqueceu a ferramenta. Uma alavanca e um gatilho repousavam sob o indicador e os dedos anelares; mais controles. Sanwell acionou o botão e escutou uma ligeira mudança no som. Ele apontou a haste para a mão, puxou o gatilho e viu o breve flash de luz na palma da mão.

“Ativado,” Sanwell disse. Ele levantou a haste de comando. Parou. “Uh, senhora,” ele disse para Llora. “Com qual unidade estou pareado?”

Llora apontou com o queixo. “Aquela,” ela disse.

Sanwell virou-se. Seu queixo caiu.

Um vingador novo e brilhante, um dos protótipos espadachim, ainda abaixado em seu trenó de transporte. Sanwell só tinha visto os projetos deles, passado os olhos na bagunça durante as refeições. Eles eram maiores, mais leves, mais rápidos, mais poderosos – indestrutíveis, gabavam-se os artífices. O melhor que fizeram até hoje.

Atrás deste vingador esperavam mais quatro. Técnicos e artífices apressaram-se a retirar os restos da embalagem — palha, bainhas de lona, almofadas de couro e óleos protetores — das máquinas que esperavam, preparando-as para a ativação.

Sanwell sorriu, os nervos momentaneamente suprimidos pela excitação.

“Você achará esses modelos espadachim muito mais intuitivos do que as unidades com as quais você treinou, mesmo sendo protótipos,” Llora disse. Sanwell achou que podia ouvir o orgulho na voz de sua instrutora.

“Qual o nome dele?” Sanwell perguntou a Llora.

“Primeira Lâmina,” Llora disse.

Sanwell ergueu sua barra de comando e clicou no botão de transmissão. A haste aumentou.

“Primeira Lâmina, atenção!”

A Primeira Lâmina se desdobrou, levantando-se de seu trenó. A máquina era humanoide, com cerca de quatro metros e meio de altura no ombro. Sanwell achava que o protótipo do vingador parecia um cavaleiro ágil animado pelo fogo mágico: uma couraça polida espelhada cobria seu núcleo de força central, as aberturas de exaustão vibrando, liberando o excesso de calor de seu motor torácico. O rugido de seu núcleo de poder provocou um calafrio em Sanwell. Isso era poder, e aguardava seu comando.

Primeira Lâmina,” Sanwell falou com firmeza e clareza, como havia sido treinado. As próprias hastes de comando eram pequenas maravilhas, capazes de captar a voz de seu operador em meio ao caos da batalha ou de uma multidão. “A postos!”

O vingador moveu-se em uma torção fluida e silenciosa para uma postura baixa e pronta, posicionando uma mão no punho de sua lâmina primária, a outra para equilibrar. Sanwell balançou para trás, o cabelo despenteado pela corrente de ar deslocada pela velocidade da manobra da Primeira Lâmina.

Primeira Lâmina, saque e guarde!”

Primeira Lâmina empunhou sua lâmina primária, chicoteando-a em uma guarda média, uma mão no eixo da lâmina para guiá-la e estabilizar contra ataques recebidos. A lâmina era maior que uma pessoa, com dois metros e meio de comprimento e trinta centímetros de largura na base. Como sua couraça, era polida com um brilho espelhado e captava o sol, reluzindo enquanto se movia.

Sanwell não conseguiu reprimir sua excitação. Com um desses, eles poderiam virar a situação. Com cinco? Ele levantou o bastão uma última vez.

Primeira Lâmina,” Sanwell comandou. “Até mim!”

O vingador disparou em direção a Sanwell, parando em um agachamento defensivo acima dele, espada em punho.

“Bom trabalho, Sanwell.” Uma voz diferente.

Sanwell se virou e viu Tawnos, o aprendiz-chefe de Urza, parado com Llora e os outros pilotos.

“Senhor,” Sanwell saudou. Ele apertou duas vezes a haste de comando e, junto com os mais velhos, Primeira Lâmina baixou sua postura defensiva, descansando.

“Vejo que você já conhece nosso novo modelo.” Tawnos disse. Ele falou com um sorriso, embora Sanwell tenha lido o rosto corajoso do aprendiz-chefe.

“É um sonho, Chefe,” Sanwell disse. “A fidelidade ao movimento parece de um para um – como Urza fez isso?”

“Depois, filho,” Tawnos disse. Ele estava sem fôlego, como se tivesse acabado de parar de correr.

Sanwell percebeu que provavelmente era o que tinha acontecido: o motivo dessa promoção não era feliz. Kroog estava sob ataque. Ele caminhou até o grupo de alunos e entrou na fileira com eles.

“Vocês cinco são os melhores do nosso corpo estudantil,” Tawnos disse, dirigindo-se a Sanwell, Rica e os outros. “Llora aqui me disse que cada um de vocês possui as habilidades, temperamento e esperteza necessários para comandar nossos vingadores espadachins, e por isso é com grande orgulho que eu, oficialmente, os promovo a pilotos integrais.”

Os cadetes se entreolharam com entusiasmo por terem suas promoções confirmadas – e nada mais, nada menos, pelo próprio assistente de Urza!

“Não podemos passar pela devida cerimônia agora, nem podemos nos preocupar com a colocação de unidades,” Tawnos disse. Ele se curvou um pouco enquanto falava, pedindo desculpas, uma formalidade rígida sobre sua apresentação. Ele realmente quis dizer aquilo, pensou Sanwell, ele realmente lamentou que não poderia haver nenhuma cerimônia naquele dia. O coração de Sanwell se aqueceu – Urza podia ser o brilhante, mas Tawnos era quase tão inteligente, e ele ainda se importava com os outros. Isso fazia toda a diferença.

“Kroog está sob ataque,” Tawnos disse. “As primeiras ondas do exército de Mishra cruzaram o Mardun; eles controlam as Alas do Rio. A ponta de lança de seu ataque é um destacamento de dragões mecânicos – grandes autômatos capazes de cuspir fogo. Acreditamos que eles não sejam pilotados.”

Os alunos — pilotos, Sanwell lembrou a si mesmo, dessa vez de verdade — trocaram olhares preocupados. Rica, Sanwell sabia, era yotiano, assim como Carlo, que era da Ala do Rio de Kroog. Sanwell olhou para Carlo e viu que ele havia empalidecido, um olhar exangue de medo e preocupação caindo sobre ele. Sanwell colocou a mão em suas costas, esperando acalmá-lo.

“Obrigado.” Carlo disse, baixinho.

“A guarda da cidade e a guarnição de Kroog traçaram uma linha defensiva ao redor do distrito da capital,” Tawnos continuou. “Evacuações dos outros distritos estão em andamento.”

“Isso significa que desistimos da cidade?” Carlo disse, a voz vacilante. “E as Alas do Rio?”

“Significa que estamos defendendo o que podemos,” Tawnos disse, ignorando a segunda pergunta de Carlo. “Mas ficar parado não vai nos ganhar o dia, que é onde você e seus novos vingadores entram: vamos montar um contra-ataque para ganhar mais tempo para as evacuações.” Tawnos acenou para Llora, que colocou uma longa caixa no meio do grupo. Ela abriu o caixote, revelando quatro hastes de comando embaladas em palha.”

“Cada um de vocês pegue uma e forme uma dupla,” Llora disse. “Sanwell, você fica com a Primeira Lâmina.” Ela passou a Sanwell um coldre vazio.

“Precisamos de vocês e seus vingadores para derrubar os dragões mecânicos,” Tawnos disse. “Assim que os dragões estiverem abatidos, teremos a chance de expulsar as forças de Mishra.”

Sanwell ouviu as instruções de Tawnos enquanto colocava o coldre. A haste de comando se encaixava perfeitamente na bainha de couro. Aquele momento tornou este momento real, percebeu Sanwell. Ele olhou para os outros cadetes — pilotos — e os observou se juntarem a seus vingadores. Rica ficou com Segunda, Carlo com a Terceira. Os outros eram cadetes de um ano diferente, logo após o de Sanwell, e desconhecidos para ele. Eles emparelharam com a Quarta e Quinta.

“Ótimo,” Tawnos disse quando todos os pilotos estavam emparelhados. “Eu tenho que ir, mas dei instruções para Llora para sua saída.” Ele olhou para os cinco pilotos, hesitante. “Teremos soldados para escoltá-los, então não se preocupem em serem exposto à luta,” Tawnos disse. Sua voz estava rouca, como se estivesse gritando, embora tudo o que ele fez foi falar. “Com esses vingadores, o alcance visual é idêntico – qualquer coisa que você disser na haste de comando, eles poderão pegar. Não chegue muito perto, mire com a haste e lembre-se de ficar atrás de sua escolta. Boa sorte, cadetes-” Tawnos disse. “Pilotos,” ele corrigiu. “Boa sorte, pilotos. Fiquem seguros e, se estiverem em perigo, não pensem, apenas corram. Hench, no leste, é onde me disseram que o exército se reunirá.”

O rosto de Tawnos era uma máscara pálida, acinzentada como se estivesse ferida. Sanwell procurou o otimismo que normalmente animava Tawnos, mas não o encontrou. Uma pontada de preocupação amargou seu interior: Tawnos estava com medo. O calmo e firme Tawnos, aquele que vinha brincar e rir com os cadetes, estava com medo. Ele não conseguia nem olhar para eles. A preocupação se transformou em medo, um pouco do medo que o atormentava. Quão ruim estaria lá fora, realmente? Uma súbita explosão de adrenalina, e Sanwell se encolheu, movendo-se para levantar a mão como se ainda estivesse na aula.

“Mestre Tawnos, senhor?” Sanwell perguntou. “Meu irmão mais novo, Rendall, ele é um cadete do corpo de ornitópteros, estacionado no palácio.”

“Rendall,” Tawnos disse, franzindo a testa. “Eu posso conhecê-lo, mas não se preocupe – todos os nossos tópteros estão posicionados com as forças de Urza em outro lugar ou prestes a partir,” Tawnos disse. “Se ele está no corpo de tópteros, ele vai sair daqui em breve.”

Sanwell exalou um longo suspiro que não tinha percebido que estava segurando. Ele não teve tempo de agradecer a Tawnos, no entanto, pois uma explosão repentina e tremenda rugiu do outro lado da cidade ao longo do Mardun, onde a luta estava mais pesada.

A comoção no pátio do orniário parou quando todos se viraram para olhar, até mesmo Tawnos e Llora, para a calamidade distante.

Fumaça vermelha turva saltou para o céu. Um quarteirão inteiro da cidade ondulava com fogo. Sanwell podia ver uma forma mais escura movendo-se no centro daquela chama crescente, uma conflagração tão grande que as chamas engoliram o topo dos campanários que permaneciam de pé. Eles desmoronaram quando a forma escura se moveu e outro rugido dividiu o céu, uma gota de fumaça e fogo atravessando os quarteirões ao longo do Mardun.

Um dragão mecânico.

Tawnos xingou. Ele colocou um pequeno pergaminho de pedidos nas mãos de Llora, com instruções para entregá-los ao capitão em seu posto. Ele saiu do pátio com uma rápida saudação aos pilotos, apressando-se a ponto de correr.

“Certo,” Llora disse, observando-o ir. “Vamos nos mexer – dobro de velocidade, vingadores funcionais e vigilantes.” Sanwell notou que Llora havia colocado uma espada no cinto em algum momento durante as instruções de Tawnos.

Ao mesmo tempo, os cinco pilotos e seus vingadores saíram do pátio. Sanwell olhou por cima do ombro enquanto partiam; atrás, as equipes se apressavam para reaproveitar os trenós de transporte para transportar quaisquer mercadorias, materiais, chassis e suprimentos que pudessem caber. Eles estavam se preparando para evacuar o orniário.

Um grito de Llora. Sanwell estava ficando para trás.

“Comigo, Primeira,” Sanwell disse ao seu vingador. Juntos, os dois correram para alcançar o resto dos pilotos enquanto desciam para a cidade.

Arte de Josu Hernaiz

Kroog estava queimando e as pessoas sufocavam nas ruas, fugindo do fogo. Sanwell não conseguia parar de pensar nos dias de festival, onde desfiles para os muitos deuses de Yotia concorriam e rugiam nas largas avenidas de tijolos e multidões aplaudindo se aglomeravam nas calçadas laterais. O toque dos sinos do festival ressoava e clamava pela cidade, um som alto e forte de alegria caótica que impelia e se entrelaçava com a música que preenchia o ar. Sanwell ficou impressionado durante sua primeira temporada de festivais em Kroog; em seu segundo ano na cidade, ele se apaixonou por eles. Longe das pesadas cerimônias em Argive, os festivais em Kroog e em Yotia eram exuberantes, vivos. Nunca em sua jovem vida Sanwell viveu em um lugar onde os deuses estavam tão próximos – e nunca se imaginou se tornando alguém que amasse essa proximidade.

Mas hoje, nas ruas de tijolos vermelhos escorregadias de sangue, os deuses pareciam bem distantes. Este dia era um espelho invertido daqueles dias de celebração, e a cada quarteirão que os pilotos avançavam os mergulhava mais fundo naquele espelho horrível; os sinos que tocavam hoje eram os mesmos sinos que tocavam em dias de festa, só que agora eles gritavam.

“Ouçam,” Llora ordenou a Sanwell e ao restante dos pilotos. “Fiquem perto de mim e ordenem aos seus vingadores que façam o mesmo – eles evitarão os civis melhor se vocês deixarem-nos navegar na multidão por conta própria. Vocês se concentrem em ficar perto de mim.”

Llora e os pilotos correram pelas ruas da cidade, abrindo caminho entre a multidão que fugia enquanto se dirigiam para o distrito norte. Sanwell penava sob o peso de seu kit de piloto, vestido às pressas naquela manhã. A menos de dois quarteirões da cidade propriamente dita, seu macacão estava encharcado de suor sob a couraça leve. As bolsas que ele carregava – pedras de energia sobressalentes para a Primeira, um par de ferramentas, peças pequenas e delicadas de reposição – juntas pareciam o peso de uma bigorna sobre seus ombros. Os poucos gritos de encorajamento que Sanwell registrou do pandemônio geral não fizeram nada para animá-lo; ao contrário, pareciam gritos fracos e sem esperança. Houve um segundo tom mais baixo borbulhando entre a multidão que se empurrava e se apressava, um medo mais terrível sob o pânico imediato. Não era apenas um ataque: era o começo de uma guerra, e eles estavam perdendo. Talvez Kroog morreria e, com isso, toda Yotia.

Quanto mais se aproximavam dos distritos do norte, mais finas eram as multidões e mais alto o som da luta. Menos sinos tocavam aqui, mas eles ainda eram audíveis, ecoando dos outros distritos que ainda tentavam evacuar. Quanto mais perto os pilotos chegavam do distrito norte, mais corpos eles encontravam. A princípio, eram corpos amassados de pessoas que haviam sido pisoteadas na corrida inicial para fugir; quando os pilotos chegaram ao ponto de encontro, começaram a encontrar os mortos ensanguentados e queimados — tanto soldados quanto civis.

“Esperem aqui, pilotos!” Llora gritou, chamando-os para parar. Os cinco pilotos e seus vingadores pararam em uma praça de mercado abandonada. Barracas e estandes derrubados espalhavam especiarias, frutas e legumes pelo chão. Um pequeno incêndio consumiu as ruínas carbonizadas de uma loja onde o carrinho de um vendedor de comida tombou, derramando brasas no interior da loja. As pessoas fugiram no meio de suas rotinas matinais, deixando tudo para trás.

No outro extremo da praça havia uma barricada improvisada, mas substancial, defendida por, pelo menos, duas dúzias de soldados yotianos, manchados de fuligem e ensanguentados depois de retomar a praça. A barricada não deteria um dragão mecânico, mas impediria qualquer soldado humano de atacar. O esquadrão yotiano olhava para os vingadores com esperança, e seus pilotos com preocupação. Sanwell tentou não olhar para a pilha de yotianos mortos, tanto civis quanto soldados, amontoados ao lado da pequena fonte no centro da praça. Os escombros esvoaçavam com o vento quente agitado pelos incêndios violentos. Um punhado de soldados Fallaji mortos se espalhavam de qualquer jeito no outro extremo da praça, flechas saindo de seus corpos.

Llora conversou com o oficial de lá — um tenente, por suas faixas; o capitão que Tawnos tinha designado aos pilotos havia sido morto. Sanwell imaginou que o tenente fosse apenas um ano mais velho que ele, embora fosse difícil dizer sob sua armadura pesada.

Sanwell ouviu o tenente dizer que ali era um posto médico de segunda linha antes de uma luta amarga disputar a pequena praça. Os yotianos agora planejavam usar a praça como uma trincheira para o contra-ataque: pilhas de bombas incendiárias, flechas e dardos estavam perto da barricada. Ocasionalmente, um mensageiro vinha deslizando até a praça, conversava com o oficial de suprimentos e depois voltava correndo com um monte de bombas incendiárias jogadas por cima do ombro ou um curandeiro a reboque.

“Piloto Sanwell,” Llora chamou, acenando para ele. “Sanwell, este é o tenente Markos-” A introdução de Llora foi abafada por um rugido alto o suficiente para fazer todos na praça se protegerem. Uma longa e vibrante série de explosões seguiram os próximos minutos, gritos ecoando pela cidade.

Arte de Fariba Khamseh

Os sinos próximos silenciaram. Sanwell e o resto dos pilotos, incluindo Llora, ficaram deitados, seus vingadores os vigiando. Alguns dos soldados se levantaram, pegando suas lanças e ajustando suas bainhas, espiando por cima da barricada, rastejando de volta para seus postos.

O tijolo estava seco e quente. Sanwell apertou a haste de controle contra o peito. As batidas de seu coração contra o chão combinavam com o ronco do dragão mecânico que se aproximava.

Os sinos começaram a tocar novamente e Llora se levantou, gritando para os pilotos se levantarem. O tenente Markos gritou para o resto dos seus soldados irem até às muralhas. Sanwell ficou com as pernas trêmulas, ajudado por Rica e Carlo. Os dois pilotos mais jovens ficaram perto de Llora e já haviam enviado seus vingadores para a barricada.

Explosões grandes e estrondosas atingiram a praça, lançando fragmentos de metal assobiando e deslizando no ar. Sanwell estremeceu quando uma lasca de tijolo da praça saltou e cortou sua bochecha, arremessada contra ele por algo que ressoou no chão quando passou por ele.

Estilhaços – os Fallaji estavam atacando!

Sanwell, travado no local, observou os soldados yotianos lançarem bombas incendiárias sobre a barricada em direção aos Fallaji invisíveis. Fumaça e flashes brilhantes se seguiram, explosões trovejando e ecoando nas fachadas das lojas, chovendo vidro e nuvens de poeira na rua em frente à barricada. Gritos misturados com o brado crescente dos Fallaji atacantes enquanto eles revidavam, lançando pesados virotes de besta e flechas assobiando nos yotianos. Sanwell se abaixou bem a tempo atrás do braço estendido da Primeira, encolhendo-se a cada gemido que ressoava na armadura do vingador.

Acima de tudo estava o dragão mecânico. A máquina de Mishra. Sanwell viu através da fumaça o rosto deformado pelo calor da máquina titânica, reptiliana, uma fera de artifício e guerra elevando-se bem acima dos topos dos prédios do distrito norte. Ele rugiu, faminto, cruel, vivo, e avançou na direção deles, envolto mais uma vez na fumaça espessa.

“Sanwell!” Llora gritou para ser ouvida sobre a cacofonia do combate. “Leve Rica e Carlo por aquela rua lateral,” ela ordenou, apontando com sua espada para um beco estreito. “Encontre uma maneira de flanquear a máquina e derrubá-la, piloto!”

“Sim, senhora!” Sauwell saudou. Ele começou a pedir mais orientação, mas Llora já havia se apressado em direção à muralha, uma bandoleira de bombas incendiárias jogada por cima do ombro.

“Peguem suas Lâminas,” Sanwell disse para Rica e Carlo. “Vamos matar um dragão.”

Sanwell liderou o ataque pela rua lateral seguindo a Primeira. Rica e Carlo seguiram atrás, Segunda e Terceira do lado. O som da batalha na barricada da praça certamente dava alguma cobertura a seus movimentos. Eles se moveram rapidamente, não silenciosamente.

Eles chegaram na metade do beco antes que o dragão mecânico disparasse uma explosão na praça atrás deles.

Um rugido como o céu se abrindo, um crescendo ondulante de explosões. A névoa vermelha fervente percorreu a praça, explodiu a barricada yotiana e incinerou seus defensores.

Sanwell, Rica e Carlo se viraram, olhando horrorizados enquanto a explosão carmesim varria sua estreita visão da praça. Llora e os outros pilotos, o tenente Markos e seus soldados – mortos em uma baforada.

Arte de David Auden Nash

A fumaça permaneceu, sem se mover, apesar do fedorento e uivante vento da fornalha. O próprio ar chiava, contorcia-se de dor, crepitava com relâmpagos torturados pelo calor.

Um corpo cambaleou para o beco vindo da praça em chamas. Nenhum dos pilotos sabia dizer quem era. O pobre soldado ricocheteou na parede do beco, tropeçando como um bêbado, e caiu, despedaçando-se em cinzas quando atingiu o chão. Então todos os pensamentos de vingança e glória abandonaram Sanwell; a preocupação parou de roer e começou a consumir.

A praça ecoou com o som de botas de ataque: soldados emergiram da fumaça fervente, elmos batendo contra o ar ardente, suas lanças antimecas erguidas em direção às Espadas Quarta e Quinta. Seus pilotos se foram, explodidos e deformados pelo calor da baforada ardente do dragão mecânico, as máquinas, no entanto, permaneceram firmes, as espadas brilhando. Um punhado de soldados morreu, mas os vingadores foram reduzidos a nada. Eles desaceleraram as máquinas de Mishra por um momento, mas quase nada do avanço de suas forças.

Um momento. Sanwell lembrou-se dos anos de treinamento; os outros pilotos, cujos nomes ele nunca soube, conseguiram um momento.

Carlo começou a gritar e nem Sanwell nem Rica conseguiram acalmá-lo. Não havia como saber se os Fallaji podiam ouvi-los, mas eles não podiam correr o risco. Rica rasgou um curativo de linho de seu kit médico e amarrou na boca de Carlo enquanto Sanwell o segurava firme. Os dois arrastaram Carlo para a escuridão do beco, rezando para que o dragão mecânico não os seguissem.

Seus vingadores espadachins os seguiram, cinzas empilhadas em seus ombros blindados.

Sanwell e Rica, com um Carlo alternando entre mudo e gritando logo atrás, seguiram seus vingadores pelo beco para outra praça pequena e sem nome. Esta era uma encruzilhada cercada por construções de dois e três andares por todos os lados. O beco que eles estavam continuava atravessando a praça; a rua que cruzava era uma estrada adequada, grande o suficiente para três carroças lado a lado. A certa altura da manhã, fora fortificada por uma barricada na saída norte da praça, bloqueando o acesso ao resto da cidade contra qualquer um que se aproximasse do Mardun. Agora a barricada estava em ruínas. Yotianos e Fallaji mortos, espalhados pelos destroços fumegantes, moscas já fazendo suas refeições. Um cão sem dono fugiu quando os vingadores e seus pilotos entraram correndo na praça.

Sanwell e Rica ordenaram que seus vingadores ficassem de guarda no lado Mardun da encruzilhada, então cambalearam até o final da praça em frente à barricada, arrastando Carlo com eles. Seu vingador estava parado no final do beco, aguardando ordens. Os três sentaram em um carroça virada e recuperaram o fôlego. O dragão mecânico não os seguiu. Por enquanto, neste canto tranquilo da Kroog sitiada, eles estavam seguros.

“O que nós fazemos?” Rica perguntou.

“Não podemos lutar contra o dragão,” Sanwell disse. “Nem mesmo com nossas Lâminas – precisaríamos de um exército delas para lutar contra aquilo.”

“Então, o que fazemos?” Rica perguntou novamente.

Sanwell olhou de volta para o beco de onde eles tinham acabado de sair, de volta para a praça limpa. Ele olhou para cima, para o céu escurecido pela fumaça. O sol, tão claro perto do orniário, queimava um laranja fraco e doente. Cinzas caíram, pretas e descoradas.

“Nós corremos,” Sanwell disse. “Como Tawnos nos disse – se estivermos em perigo, corremos.”

Rica fez seu próprio levantamento dos arredores. “Para onde?”

O dragão mecânico berrou novamente, ensurdecedor, estremecendo a visão. Sanwell e Rica taparam os ouvidos com as mãos, os olhos lacrimejando com a intensidade do rugido. Passou, como trovões de uma tempestade em movimento, os dois meninos ouviram para identificar sua fonte; parecia que o dragão estava se afastando deles e de seus vingadores, indo para o centro da cidade.

“Para longe,” Sanwell disse, um pouco alto demais enquanto sua audição lentamente voltava ao normal. “Para qualquer lugar menos aqui. Tawnos não disse algo sobre alguma cidade? Hinge?”

“Hench,” Rica corrigiu. “Alguma cidade de caravanas, eu acho. Um lugar para cavalos pegarem água.”

“Talvez lá,” Sanwell disse.

“Teríamos que atravessar a cidade”, Rica disse, mordendo o lábio. “O oeste pode ser melhor – poderíamos correr para os portões ocidentais e ir para a costa, encontrar um navio.”

Sanwell abaixou a cabeça. Ele pensou em seu irmão, Rendall – será que ele estava voando?

“Para onde eles enviariam os desabrigados?” Sanwell perguntou a Rica. “Korlis ou Penregon?”

“Korlis está mais perto,” Rica disse. “Mas eles são mercadores, e são neutros. Além disso, eles não têm um exército permanente, apenas mercenários. Meu palpite é Penregon. É mais longe, mas é onde Urza e-”

Um barulho repentino e um grito soaram da entrada norte até a encruzilhada – o lado Mardun onde seus vingadores montavam guarda.

Sanwell e Rica olharam e viram uma fileira de elmos Fallaji se aproximando da encruzilhada. Atrás deles, Sanwell podia ver o que parecia ser uma floresta de lanças sob a qual brilhavam os elmos de latão polido de toda uma coluna de soldados em marcha.

Arte de Joshua Cairos

“Sanwell,” Rica disse, levantando-se. Ele não estava chamando a atenção de Sanwell, apenas fazendo uma constatação. Um suspiro reflexivo, dito com a descrença do que viu: o exército Fallaji, desimpedido, marchando na direção deles.

“Primeira Lâmina,” Sanwell gritou. Ele apunhalou sua haste de comando em direção aos Fallaji e apertou o gatilho. Um fino facho de luz visível apenas na fumaça que passava ofuscou a fileira da frente das tampas de latão. “Ataque!”

A Primeira Lâmina saltou em direção aos Fallaji, seguida um segundo depois pela Segunda Lâmina. Carlo, catatônico, acionou sua haste de controle, fazendo piscar o chão a seus pés. A Terceira Lâmina não se moveu; a máquina estava parada, a espada pronta, mas não levantada.

Os soldados em marcha não conseguiram formar uma parede de lanças antes que os dois vingadores colidissem com eles. As fileiras da frente morreram no caos, suas lanças deslizando sobre a blindagem dos vingadores. Os dois vingadores usavam suas grandes espadas com a eficiência de um açougueiro, parando o avanço Fallaji na barricada arruinada.

Sanwell assistia com horror e admiração enquanto os vingadores cortavam os elmos de latão. O som de suas espadas zumbindo no ar, o baque pesado e denso das lâminas se encontrando e separando carne, esmagando ossos, triturando a orgulhosa e brilhante armadura Fallaji como se fosse pouco mais que uma folha fina. Sanwell só podia cambalear para trás, com a haste de comando nivelada e apontada, e observar o vingador interpretar seu comando mais básico. A Primeira Lâmina atravessou os soldados à sua frente com ataques rápidos. Golpes curtos, uma mão segurando o punho de sua espada e a outra ao longo da lâmina para guiá-la.

Rica pilotava a Segunda com precisão, direcionando seu vingador para oficiais e alvos que representavam uma ameaça às suas máquinas. Soldados com lanças pesadas e bestas com pontas explosivas, oficiais com suas bandeiras de comando e vozes firmes — a Segunda Lâmina, sob o comando de Rica, os caçava em meio ao caos criado pelo ataque da Primeira Lâmina.

Quem ensinou a Primeira Lâmina a lutar?

Sanwell golpeou sua haste de controle na direção de uma dupla de elmos de latão que tinham conseguido contornar a Primeira Lâmina. Ele acionou a haste, ofuscando seu feixe sobre os soldados, e a Primeira Lâmina imediatamente intercedeu, empalando os dois com uma estocada intensa. A Primeira Lâmina os ergueu e os jogou para longe de sua arma, lançando seus corpos na coluna que ainda avançava.

Em algum momento, a Primeira Lâmina teve que aprender a se mover assim, Sanwell pensou, mirando em outro alvo. Ela recuou, acompanhando Rica, arrastando Carlo com eles, aumentando a distância entre eles e a luta.

Quem ensinou a Primeira Lâmina a interpretar seu simples comando e traduzi-lo em movimentos que Sanwell não conseguia fazer sozinho? Ele tinha visto como era dentro dos modelos mais antigos durante seu treinamento – eles, como a Primeira Lâmina, não estavam vivos. Pelo que ele entendia, eles não conseguiam pensar. Eram máquinas, conjuntos humanoides de mil cálculos complexos e delicadas intercorrências; milhares de horas de genialidade, perspicácia técnica e trabalho humano com um único propósito, alcançado com uma graça misteriosa: brandir uma espada e acabar com uma vida.

Genialidade. Loucura.

Primeira Lâmina ejetou sua espada cega na direção dos elmos de latão que avançavam, então puxou uma espada nova do compartimento em suas costas. O vingador se movia tão suavemente que Sanwell quase podia acreditar que era uma pessoa gigante em uma armadura, um guerreiro que não podia ser detido pelo medo, pena ou fadiga. Lanças e virotes de besta se estilhaçavam nas pernas da Primeira Lâmina e desviavam de suas placas de armadura braquial e torácica, cada golpe de relance revelando o quão indestrutível o vingador era.

Outro sentimento misturado com o medo de Sanwell: alívio. Alívio que as Espadas estavam do seu lado.

Uma explosão atingiu a metade superior da Segunda Lâmina, que cambaleou na direção da Primeira Lâmina. A Primeira graciosamente evitou sua companheira, e a Segunda caiu na praça, atingindo o chão com força suficiente para quebrar pedra.

Rica xingou e Sanwell viu o porquê: uma bomba explodiu o braço direito da Segunda. Fluidos hidráulicos e óleo escuro foram pulverizados do equipamento danificado, esguichando no ar até que os sistemas internos da Segunda cortaram o fluxo. Desembainhando uma lâmina nova com o braço restante, a Segunda Lâmina lutou para voltar a ficar de pé, mas era tarde demais. A lacuna estava aberta.

Os escudeiros Fallaji avançaram, conduzidos por seus oficiais atrás, aplaudindo, roucos, animados pelo golpe desferido na Segunda Lâmina. A Primeira tentou interceder, mas não conseguiu segurar a rua sozinha. A princípio, apenas um punhado de elmos de latão conseguiu passar; a Segunda tentou afastá-los, mas os Fallaji dispararam uma saraivada de flechas explosivas na cabeça e nas pernas. As explosões vieram umas sobre as outras, ondas de pressão derrubando a máquina ferida novamente. Ao cair, soldados invadiram a Segunda Lâmina, enfiando lanças explosivas em suas juntas e entre as placas de blindagem, interrompendo seu movimento. Do outro lado do pátio, mais elmos de latão levaram a inativa Terceira Espada para o chão, lanças anti-mecas espetando e cortando partes internas vitais, articulações e mecanismos.

Sanwell gritou algo sem palavras, uma mistura de terror e fúria, enfiando sua haste de comando no Fallaji, lançando um facho deslumbrante sobre eles de novo e mais uma vez. Nenhum comando, nada de seu treinamento, apenas dando voz ao pânico bruto enquanto o inimigo inundava a encruzilhada. A Primeira Lâmina lutou, como foi projetada para fazer.

Os elmos de latão detonaram suas lanças explosivas e destruíram a Segunda Lâmina. A pedra de energia do vingador explodiu, um clarão brilhante que cobriu a praça com luz branca.

Sanwell saiu voando, cego pela explosão. De alguma forma, ele segurou sua haste de comando, e enquanto estava deitado de costas recuperou sua visão de queimada para embaçada. Ele podia ver Carlo deitado parado, perto da carroça virada, o uniforme fumegando. Ele viu Rica se levantar, as maçãs do rosto e o nariz queimados em carne viva. Um vento abrasivo açoitou as ruas de Kroog, varrendo o rosto e as mãos queimadas de Sanwell. Ele gritou de dor, a voz abafada enquanto sua audição demorava a retornar.

Os sinos ainda batiam e soavam. Outras explosões se espalharam pela cidade.

Distantes, gritos.

Distantes, os rugidos dos dragões mecânicos.

Arte de Svetlin Velinov

O mundo de Sanwell era uma névoa de fumaça cinzenta e nublada sob um céu ocre. O sol parecia uma calêndula moribunda, grande e próxima, ameaçando escorregar do céu, a gema de um ovo desprendida de sua clara. Tudo cheirava a madeira queimada, óleo queimado, carne queimada. Cinzas caíam como neve.

Quando Sanwell chegou em Kroog, enviado com seu irmão quando criança para aprender artifícios no orniário, ele foi educado nos costumes e crenças yotianas. Cultura, seus pais lhe disseram. Necessária para qualquer criança do oriente, para que os jovens descendentes da civilização entendessem o mundo que estavam destinados a governar; nestas aulas, Sanwell aprendeu que dos muitos deuses de Yotia e seus domínios, nenhum governava sobre um submundo ou pós-vida amaldiçoado. Uma alma humana era miríade demais para ser lançada no inferno pela palavra de um deus: a condenação para os yotianos não era tão simples. Uma pessoa tinha muitas almas ao longo de sua vida, e cada uma delas recebia seu próprio julgamento.

Sanwell agora sabia que os yotianos tinham deixado passar um aspecto. Eles haviam esquecido um deus em algum lugar nas suas celebrações: aquele que condenou sua alma viva a esta cidade do inferno. Sanwell imaginou aquela divindade mórbida voando sobre a cidade com asas rasgadas, expelindo uma névoa vermelha em suas ruas em chamas.

Primeira Lâmina,” Sanwell sussurrou na haste de comando. “Venha até mim.” Fosse um inferno ou um pesadelo, Sanwell queria sair.

Formas escuras espreitavam pela neblina, embora nenhuma tinha o perfil tranquilizador da Primeira Lâmina. Silhuetas paradas e curvadas sobre suas longas lanças, elmos largos girando lentamente, ouvindo, procurando.

Sanwell agachou-se, afastando-se ainda mais das formas em movimento. Ele passou por Rica e assobiou para que ele o seguisse.

Rica balançou a cabeça e levou um dedo aos lábios. Ele apontou, direcionando o olhar de Sanwell.

Carlo. Ele rastejou em direção a Sanwell e Rica. As queimaduras nas costas e nas pernas eram terríveis, transformando-o em uma mistura de carne empolada e aço derretido.

“San?” Carlo gritou, soluçando. “Rica?”

Rica foi em direção a Carlo, mas Sanwell o agarrou e o empurrou para trás.

As formas escuras na névoa de tijolos pararam, escutando. Suas cabeças largas se viraram. Suas lanças sondaram as cinzas que caíam suavemente.

“Onde estão vocês, gente?” Carlo chorou novamente.

Uma rajada de virotes atingiu as costas de Carlo, matando-o. Uma segunda saraivada o atingiu segundos depois, dardos soltos silvando e ricocheteando no chão coberto de cinzas. Os elmos de latão gritaram, informando uns aos outros a localização do piloto morto.

Primeira Lâmina, matar!” Sanwell gritou em sua haste de comando, sua voz falhando. “Matar!”

Rica se virou, agarrou Sanwell e o empurrou para correr. Por cima do ombro, Sanwell ouviu soldados Fallaji gritando de terror sob o gemido crescente de uma máquina ferida e funcional. Ele se virou, retrocedendo por três passos curtos, e viu a forma alta e blindada da Primeira Lâmina erguendo-se da escuridão.

Primeira Lâmina era um cavaleiro deformado pelo calor da luz amarelada, a morte dourada salpicada de fuligem e cinzas. Embora terrivelmente ferida, a Primeira Lâmina não estava morta e, até que estivesse, obedeceria à última ordem de Sanwell. Salpicada de sangue, destemida, a terrível máquina poderia ter sido outro deus yotiano esquecido: o da guerra e das encruzilhadas, das máquinas e da nova era.

Sanwell largou sua haste de controle. Não havia mais nada para comandar.

“San!” As mãos de Rica agarraram a gola de Sanwell, o outro garoto tentando puxá-lo. Sanwell tropeçou, mas não caiu.

Juntos, os dois meninos correram.

Kroog morreu em uma manhã carmesim; a guerra começou ao nascer do sol.

Arte de Kamila Szuntenberg

28 AR

Aiman estava deitado de costas e apertou os olhos contra a luz pálida do sol de girassol. O céu era de um horrível tom alaranjado, escuro como o marrom queimado de uma pimenta chamuscada na fumaça de fogueiras acesas. Tudo fedia. A beleza coagulada pela morte, o doce céu azul enferrujado, sinos brilhantes alterados para gritar.

Aiman precisava de água.

O trovão retumbante de botas com sola de pregos. Um tumulto de botas. Centenas, milhares, um milhão, o mundo inteiro correndo na direção dele. Uma delas chutou sua cabeça com força suficiente para derrubá-lo, assim como as ondas anteriormente. Argiviana ou Fallaji, ele não sabia dizer. A alça do seu elmo de latão estalou e seu elmo ricocheteou para longe. Alguns reforços, ele pensou, correndo para a batalha.

Para a batalha!

Kroog, cidade em chamas, cidade dos invasores, dos ladrões. Por que eles estavam lá? Mishra, a língua de cobra, faminto, invejoso. A ambição do qadir.

Aiman precisava de água.

Ele gemeu e tentou se mover, mas quando ele tentou se sentar toda a força foi drenada dele. Ele tossiu, estremecendo de dor. Ele não conseguia enxergar bem. Ele olhou para baixo em seu corpo.

Aiman soltou um grito fraco de medo e choque. Três flechas. Ele foi atingido. Uma na parte superior da coxa, uma prendendo o braço no peito e outra na cintura. A da coxa era a mais profunda, bem no músculo. O braço estava transfixado, mas seu braço e a couraça por baixo impediram que a flecha o ferisse mais profundamente. A da cintura era pouco mais que um corte profundo, presa em sua armadura, no tecido acolchoado por baixo – assim que a flecha fosse retirada, um curativo seria suficiente. Seu rosto latejava, e uma sensação horrível lhe disse que ele também havia sido ferido ali.

Aiman caiu de volta.

“Eu preciso de água,” Aiman gritou. “Água,” ele exclamou, e percebeu que a sua era apenas uma das muitas vozes que se somavam a um coro de gemidos, choros e gritos feridos. Ele olhou ao redor, a lucidez voltando com a dor.

Ele estava no inferno. Corpos empilhados no espaço entre os prédios, enchendo a estrada onde eles lutaram. A garganta da cidade, na qual os soldados de ambos os reinos foram reduzidos à carne moída.

Ele tentou se lembrar do que aconteceu. Algum enorme cavaleiro dourado, alguma máquina brilhante de terror. A coluna marchando, empurrada pelas fileiras de trás, aterrorizada com a morte à frente e os oficiais de Mishra atrás. Explosões, dor. Os barcos antes daquilo, as mãos tremendo, a oração silenciosa do soldado ao lado dele, o frio do rio enquanto eles avançavam pelas margens, os gritos e os berros.

Aiman precisava de água. Ele precisava fugir. Mãos o agarraram, e um morto gemeu em seu ouvido, implorando por sua mãe. Aiman afastou as mãos com o braço bom, ofegante. Ele chutou e arranhou, afastando-se do cadáver suplicante.

Ofegante, Aiman rastejou, ganindo onde as flechas batiam e se arrastavam no chão. Ele caiu contra o lado do beco, tremendo violentamente, visão turva.

“Água,” Aiman lamentou. Ele estava morrendo. Ele podia sentir isso. Uma dor ardente e profunda pulsava em sua perna, seu olho, sua cintura-

Aiman acordou. Era noite. Ele havia desmaiado.

O beco estava em silêncio. Os mortos cobriam todas as superfícies. As fogueiras iluminavam a noite, lançando tudo no brilho ocre do próprio fosso. Nenhum sino tocava, embora Aiman pudesse ouvir a batalha ainda acontecendo nos distantes bairros de Kroog.

Aiman gemeu quando o avistou. Um fantasma. Um espectro, brilhando em um azul suave enquanto atravessava o beco fétido. Aiman começou a rezar.

O fantasma olhou para ele.

A oração de Aiman ficou presa em sua garganta.

O fantasma caminhou na direção dele, a forma azul escura deixando um rastro através do ar quente da noite. Morte, Aiman sabia. Era a própria morte, reivindicando almas para viajar com ela.

A morte agachou-se sobre um homem terrivelmente ferido. O peito do homem subia e descia, encheu e depois desinflou. Aiman podia ouvir o chocalho de onde ele se escondia.

A morte se levantou. Sua cabeça percorreu o beco, como se estivesse absorvendo a paisagem. Uma colheita, Aiman pensou. Uma colheita para aquele ceifador gélido.

“Ainda não,” a Morte disse. Ela falou com o beco vazio, mas Aiman sabia que a Morte falava com ele. A morte tinha um sotaque estranho, como algo do extremo oriente. Quando menino, Aiman cuidava do navio mercante de seu pai, navegando por todos os cantos de Terisíare. O austero porto de Penregon era uma parada bastante frequente, e Aiman havia levado alguns argivianos; a linguagem da morte soava semelhante.

“Chegamos muito cedo,” a Morte disse. “Estamos a anos de distância, décadas pelo menos. Não acontece aqui.”

Alívio e confusão o inundaram. Aiman deixou-se ter esperança.

A Morte suspirou, e então desapareceu.

Duas semanas depois, a febre de Aiman finalmente cedeu. Ele saiu mancando da tenda médica arejada, o lado direito de seu corpo doendo e coçando, mas se curando. Ele havia perdido um olho; exceto por aquele ferimento, ele não sofreria mais do que cicatrizes onde as flechas o haviam perfurado.

A brisa seca do deserto esfriou o suor em sua testa.

A guerra de Aiman estava terminada. Sua vida, ele sabia com certeza, estava apenas começando. Ele olhou para o céu azul pálido, rastreou nuvens finas em suas alturas e observou os pássaros voando.

A morte lhe dissera: ainda não.

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