Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

A GUERRA DOS IRMÃOS - EPISÓDIO 02: O COMEÇO

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A fábrica de civis de Tawnos era um clamor de humanos e máquinas, uma cacofonia a qualquer hora do dia e da noite. Artífices e trabalhadores de todos os níveis e classificações cruzavam o enorme chão de fábrica, empurrando carretas e conduzindo civis mais velhos carregados com rolamentos recém-produzidos, parafusos, placas modulares, revestimento de lona e prateleiras de novas armas. As formas erguidas dos novos civis que estavam sendo reequipadas para a guerra pendiam de esteiras transportadoras barulhentas e suportes que se moviam lentamente. O ambiente de produção regimentado que Tawnos havia projetado, com seu piso de pedra vazada e linhas pintadas destinadas a guiar pessoas e máquinas pelos caminhos mais seguros e eficientes, nunca havia visto uma comoção tão frenética e mal ordenada. Ele estava em pé acima daquilo tudo, observando da cúpula de seu escritório atrás do vidro enquanto seu sonho de uma paz mecanizada levantava seu véu, revelando a verdade sangrenta.

Urza e Mishra nunca projetaram nada além de máquinas destinadas a matar. Tawnos não podia falar pela tutela de Mishra, mas Urza tinha sido um professor por exemplo; Tawnos tinha sido inteligente em sua juventude, um fabricante de brinquedos de habilidade excepcional e um engenheiro prodígio, mas ele era apenas uma vela perto do brilho solar de Urza. Tudo o que Tawnos sabia ele devia à instrução de Urza. De esperto fabricante de brinquedos a mestre artífice, a mão firme de Urza moldou Tawnos tão habilmente e remotamente quanto Urza moldou a face do mundo.

Tawnos apertou as juntas dos dedos como se estivesse tentando espremer a água da grade de metal do deck de observação de seu escritório. Seus civis — como ele poderia ter mentido para si mesmo que aquelas máquinas seriam usadas para qualquer outro propósito que não a guerra? Tawnos tinha esboçado os projetos originais para os civis de Penregon, mas a própria teoria de seu projeto era baseada em máquinas que Urza havia inventado – máquinas destinadas apenas a queimar, destruir e arruinar. Os dedos delicados, porém robustos, dos civis, refinados para guardar ferramentas de construção e carregar recursos coletados, foram tão facilmente adaptados ao uso de armas, porque haviam sido projetados inicialmente para os vingadores de Urza. As juntas e pontos de montagem dos civis eram universais não porque precisavam aceitar peças de reposição do estoque de Penregon, mas porque Urza exigia que suas máquinas de guerra fossem capazes de serem reparadas em campo. Tawnos se virou de sua observação solitária, encarando uma grotesca reviravolta de raiva e dor. A revelação mais terrível o atingiu com clareza inabalável: de todos os aspectos das máquinas, nenhum era mais ruinoso do que sua fonte de alimentação. As pedras de energia dos Thran. Cuidadosamente clivadas e polidas, essas pedras de energia animaram os civis como tinham feito com as máquinas de guerra de Urza e Mishra. Em um momento amargo, Tawnos percebeu que o estoque de Penregon secaria nos próximos anos. Sem uma fonte ou método alternativo para alimentar Penregon, o apetite do povo não diminuiria — ele se enfureceria. Por sua ânsia de oferecer ajuda, ele apenas reajustou o cenário: um retorno à condição em que o mundo estava antes do início da Guerra dos Irmãos parecia inevitável.

Sem outra maneira de manter as luzes acesas, com a chegada do inverno, a guerra voltaria a acontecer. Era apenas uma questão de tempo.

Tawnos afundou ainda mais em sua cadeira, olhando para o monte de papéis e textos em sua mesa. A única biblioteca que coletava o conhecimento de um mundo há muito desaparecido. Ele olhou para os velhos portfólios, plantas enroladas, cadernos e pergaminhos encadernados; qualquer coisa que ele pudesse pegar antes do fim, qualquer coisa do trabalho do seu mestre. Contra este arquivo de brilhantismo, Tawnos era um adivinho. Um áugure, não um engenheiro. Pior, um fabricante de armas. Tawnos cerrou os punhos e um profundo sentimento de queda o tomou. Em sua juventude, sua ambição o levou a alturas elevadas. Seu ego não o deixava ficar contente como fabricante de brinquedos. Agora, com uma dor terrível, ele reconhecia que, se tudo o que ele tivesse feito fosse refinar o trabalho dos outros, ele seria menos culpado pela morte do mundo. Se ele tivesse passado a vida lendo os órgãos fumegantes de touros abatidos para reis e rainhas inocentes, ele teria causado menos mal.

Arte de Matt Stewart

Os olhos de Tawnos caíram no canto de um caderninho familiar para ele, parcialmente enterrado em sua mesa. Não era um dos de Urza – era seu próprio caderno. Nele estavam seus projetos originais — falcões e cobras mecânicas, complicações intrincadas, mecanismos para uso eficiente de pedras de energia e projetos de uma arma viva que misturava argila e artifício em um assassino. Tawnos puxou aquele livro de debaixo da pilha de papel, abriu e folheou. Estava cheio de diagramas maravilhosos, linhas desenhadas com precisão e figuras bem fundamentadas. Anotações, rabiscadas rapidamente em diferentes cores de tinta e grafite desbotado, falavam dos momentos relâmpagos de inspiração, revisão, iteração. Sua caligrafia, mais rápida e confiante em sua juventude, não mostrava nenhum indício de dúvida. Naquela época, ele tinha certeza do seu trabalho. Completo pela elegância das armas que ele projetou. Justificado por seu propósito: a defesa do reino, a derrota de seus inimigos. Então o que havia mudado dessa época para agora, exceto o uniforme de seus inimigos?

O mundo mudou. Ele havia mudado.

Atrás de Tawnos o som da criação, abafado pelos grandes painéis de vidro que cercavam seu escritório, era interminável. Os trabalhadores amarravam lonas grossas e tratadas contra intempéries sobre as juntas vulneráveis dos civis e soldaram placas de blindagem pesada sobre componentes críticos. Brilhantes jovens artífices compilaram e revisaram as ordens e comandos que os soldados em campo usariam para dirigir os civis na guerra. Oficiais dos batedores e da guarda da cidade caminhavam em pequenos grupos, aprendendo com os engenheiros as limitações e habilidades operacionais daquelas máquinas de guerra adaptadas. Por toda a cidade, postes de luz e aquecedores municipais escureciam enquanto os técnicos arrancavam até mesmo aquelas pequenas lascas de seus suportes para que pudessem ser instaladas nos peitorais dos civis, nos punhos de suas espadas de corrente elétricas, nos núcleos das lanças incandescentes. Transformando a paz em guerra mais uma vez, tudo sob as ordens de Tawnos.

Ele fechou seu caderno e o colocou em cima da pilha de desenhos de Urza.

“Mande todos eles para o mar,” Tawnos sussurrou. Ele pensou em Kayla e esperou que ela permanecesse fiel à sua promessa. Ele pensou em outra mulher, Ashnod, e se perguntou se agora, depois do fim do mundo, ainda havia tempo.

Primeiro, porém, ele tomaria sua primeira ação corajosa em muitos anos. Sua primeira ideia original. Tawnos lideraria, finalmente; ele mudaria o mundo para melhor. Ele olhou para as poucas páginas que havia arrancado de seu livro: uma cobra mecânica, um pássaro, um rato. Seus brinquedos. Um método diferente. Ele os enfiou no bolso.

No escuro, Tawnos sorriu.

Ninguém no chão de fábrica viu o fogo até que fosse tarde demais. Ele consumiu o escritório de Tawnos. As chamas lambiam o vidro, afogando tudo dentro de uma conflagração fedorenta e turva de papel e tinta em chamas.

O cerco de Penregon durou um único dia e, ao cair da noite, se transformou em duas lutas menores: a primeira era a luta esperada, o resultado sangrento da tentativa fracassada dos cruzados de Tal de tomar a cidade do lado de fora. À medida que o sol descia sob um horizonte cinzento, os defensores de Penregon saíram da brecha solitária e cheia de sangue nas muralhas da cidade para derrotar a infantaria talita. Os cruzados não conseguiram explorar sua única abertura; agora os sobreviventes cambaleavam noite adentro, deixando os mortos para trás e os feridos gemendo e rastejando atrás deles. Ao longe, entre o grande corpo da marcha agora descampada e os defensores vitoriosos de Penregon, cavaleiros sombrios em armaduras pesadas esperavam com armas limpas e olhares sombrios voltados para a cidade. Civis rearmados abriram caminho através dos blocos de pedra caídos da brecha, suas armas e núcleos brilhando com o calor lançado por suas antigas pedras de energia. Em menor número pelas máquinas e suas contrapartes humanas, a cavalaria talita só podia assistir enquanto os defensores de Penregon faziam prisioneiros e recolhiam os mortos.

Arte de Ryan Pancoast

A segunda batalha foi mais ampla: as forças de Raddic em algum momento — provavelmente no ano anterior, mas ninguém podia ter certeza — levaram fanáticos de sua fé para os bairros residenciais e comerciais de Penregon. Durante os longos, escuros e frios meses de inverno, esses evangelistas fizeram proselitismo, cultivando cultos secretos dos fiéis. Esses seguidores da palavra de Tal amaldiçoaram tanto a máquina quanto a magia. Animados pelo fervor evangélico, eles viram demônios na armadura de metal liso dos civis de Tawnos, demônios nos poucos eruditos remanescentes da Trilha. Embora não houvesse magia em Penregon, o artifício era combustível suficiente para os fiéis. O estado de suas vidas, tendo eles vivido a guerra ou nascido depois dela, foi uma faísca perfeita.

A conflagração foi deflagrada com a chegada do corpo principal dos cruzados de Tal. Com a declaração de Raddic recusada e os portões da cidade fechados, os talitas da cidade entraram em ação. Nas primeiras horas da madrugada do cerco, enquanto o exército talita se formava nos campos à frente de Penregon, explosões e incêndios abalaram a cidade. A fábrica de Tawnos, muitos dos bairros residenciais e vários navios mercantes no porto foram queimados. Fanáticos vestidos de preto correram para a multidão, atacando a guarda da cidade e velhos civis que vieram para apagar o fogo. Os defensores da cidade demoraram a responder, mas se mobilizaram em massa, reforçados por reforços da muralha. Os talitas eram movidos pelo fervor, mas o povo de Penregon lutava por suas casas. Beco por beco, rua por rua, os civis e as milícias de Penregon levaram os talitas de volta aos seus esconderijos. Ao meio-dia, centenas estavam mortos e incêndios assolavam a cidade, combatidos por brigadas de bombeiros voluntários. À noite, o pior da luta estava concluído, e apenas um punhado dos cultistas mais obstinados permaneceram na cidade, barricados e cercados.

Kayla passou o dia brutal em um posto bem defendido com os comandantes da guarda da cidade e da milícia. Jarsyl estava com ela. Deixar o neto em qualquer lugar que não fosse ao seu lado em tal perigo era impensável; ela havia perdido um filho para a guerra e estaria condenada a arriscar outro de seu sangue nas lâminas, mesmo que isso significasse que Jarsyl a via não como sua avó, mas como sua rainha.

Como líder da cidade, Kayla não foi apenas uma testemunha do cálculo frio dos militares. Quando seus comandantes se aproximaram puxando civis rearmados da muralha para lutar contra os cultistas dentro, eles se voltaram para Kayla para resolver o impasse. Quando os batedores imploraram por reforços, eles se voltaram para Kayla para ordenar que as tropas da milícia de Penregon entrassem na brecha. Quando amanheceu e viram as muralhas defendidas com sucesso, sua equipe precisava saber: eles executariam os talitas capturados, prenderiam ou os exilariam? As táticas precisas do dia cabiam a seus comandantes; Kayla estava lá para ser a consciência da cidade, a porta-voz de Penregon, aquela que determinava quem vivia e quem morria.

Na manhã seguinte, Kayla estava com um pano amarrado na boca e no nariz, examinando as ruínas enegrecidas pelo fogo da fábrica de Tawnos. O esqueleto carbonizado do grande edifício se projetava para o céu cinza, úmido e fumegante, fedendo a óleo e aos produtos químicos fétidos que se alimentavam e eram consumidos pelo incêndio. Pilhas de escória e torrões marmorizados de civis parcialmente derretidos ocupavam a área do edifício.

“O incêndio começou durante o último turno,” Myrel disse, a voz abafada por sua própria máscara de pano. “O supervisor com quem falei disse que começou no escritório de Tawnos.” Myrel apontou para um emaranhado de metal e escória não identificável. “Sinto muito, senhora, mas não o encontramos – aqui, em seus aposentos, ou entre os mortos.”

Kayla assentiu. Tawnos se foi. “E os trabalhadores?”

“Todo mundo conseguiu escapar,” Myrel disse. “Alguns que tentaram extinguir o fogo sofreram com a inalação da fumaça, mas ficarão bem com descanso e ar puro. No entanto, perdemos os civis do chão – pelo menos uma dúzia.”

“Isso não foi um ataque,” Kayla disse.

“O incêndio foi repentino,” Myrel disse, franzindo a testa. “E todos os projetos antigos de Urza, o trabalho de Tawnos da guerra—”

“Olhe ao redor, Myrel,” Kayla interrompeu seu capitãe. “Nada mais queimou. Ninguém mais morreu. Os trabalhadores disseram que o fogo começou no escritório de Tawnos enquanto ele estava lá. Não foi uma explosão, e ninguém percebeu até que a fumaça inundou os andares superiores.”

Myrel grunhiu, concordando.

“Tawnos fez isso,” Kayla disse. Ela entrou nas ruínas sem esperar uma resposta de sua capitãe escoteire. A máscara de pano que ela usava cortava um pouco o fedor, mas o fogo tinha sido forte, e o cheiro de metal queimado ainda enrugava seu nariz. Os poucos trabalhadores vasculhando as ruínas úmidas pararam seus trabalhos e se apoiaram em suas ferramentas, observando Kayla com interesse desapegado.

Kayla parou diante da pilha que tinha sido o escritório de Tawnos, agora uma massa fumegante de cinzas emaranhadas e metal que desmoronou depois de queimar durante a noite. Nenhum papel ou livro permaneceu, nada além de algumas lascas sujas e levemente brilhantes de pedras de energia que ele deve ter mantido em sua mesa.

“Seu velho egoísta,” Kayla sussurrou para as cinzas.

O estalo e o resfriamento de metal queimado. O silvo da água pingando, caindo em pilhas de cinzas ainda quentes. O raspar de pás na pedra enquanto os trabalhadores voltavam ao trabalho. Essas foram as únicas respostas. Nenhuma risada alegre ou murmúrios solenes, nenhuma tosse educada ou voz forte e firme. Outra conexão com sua antiga vida foi cortada.

“Você não me deixou nada,” Kayla disse. Não restou nenhum diário meio queimado ou portfólio de projetos maravilhosamente preservado do qual pudessem recriar seus civis ou inventar novos autômatos para ajudar Penregon a enfrentar o inverno que se aproximava. Uma temporada de bom tempo e colheita se estendia diante dela, e se não fossem as dezenas de civis que restavam, a cidade seria forçada mais uma vez a retornar ao trabalho humano. Kayla sabia por assombrar o escritório de Tawnos durante o último inverno que os poucos civis restantes tinham vidas curtas pela frente – suas pedras de energia eram velhas e gastas, colhidas de máquinas de guerra que as usaram e depois morreram uma década atrás. Ela considerou o estresse que o combate do dia anterior deve ter colocado sobre elas, e uma reviravolta amarga a percorreu.

“Você não nos deixou nada,” disse Kayla, de pé. Ela olhou ao redor das ruínas da oficina de Tawnos. Penregon precisava dele mais do que ela. Sim, a conexão que ele forneceu à sua antiga vida fora tão dolorosa quanto uma queimadura curada, mas familiar. Com aquela ferida cortada de sua alma, ela poderia curar; mas uma cidade não era uma pessoa. As cidades nunca se curavam, ou viviam ou morriam. Tawnos, ao levar o trabalho de sua vida e o conhecimento coletado do artifício de Urza com ele, pode ter levado Penregon com ele. Não agora, não por anos, provavelmente, mas o inverno não iria parar. O gelo se aproximava cada vez mais; se as estações continuassem a se comprimir, então em algum futuro não distante o bastante haveria uma era de nada além do inverno. Uma Penregon sem civis e sem pedras de energia morreria.

Kayla se virou do amontoado de cinzas e foi embora. Ela tinha trabalho a fazer. Uma cidade para salvar, se pudesse, do fim que agora parecia quase inevitável.

Uma dupla de civis danificados, mas funcionais, juntou-se aos trabalhadores no final do dia. Equipados com pás largas projetadas por Tawnos para limpar a neve das ruas de Penregon, eles limparam rapidamente as ruínas. As cinzas foram despejadas no porto de Penregon, juntando-se aos corpos arruinados de civis destruídos no cerco e às máquinas cujos corações de pedra de energia haviam se esgotado. A era do artifício morreu na baía escura de Penregon, sob ondas suaves, antes do inverno.

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O fim de Penregon veio dez anos após o cerco, superando as previsões mais otimistas de Kayla, mas não sua certeza. Os anos intermediários foram pontuados por breves momentos de caos e medo, mas nada como o cerco.

Primeiro veio o primeiro verão sussurrante. Os jardins e pomares de Penregon, tipicamente repletos do zumbido das cigarras — os verdadeiros leões rugidores de Penregon, brincavam os argivianos — não cantaram naquele verão. Embora muitos tenham achado isso um alívio no início, o verão subsequente tranquilo acabou com qualquer humor. Os pássaros seguiram os insetos, e o silêncio do verão deu origem a fontes silenciosas.

Sinais estranhos se acumulavam. Em um inverno apenas alguns anos após o cerco, o porto de Penregon sofreu seu primeiro congelamento sólido. As águas do mar daquela baía protegida congelaram, prendendo as frotas de pesca e comércio da cidade no gelo denso da baía. No início, as pessoas se desesperaram. Houve tumultos: falta de trabalho, falta de comida. Quando essas manifestações se acalmaram, as pessoas começaram a construir cabanas e choupanas ao lado dos cascos congelados, criando aldeias informais e dispersas de pescadores; se eles não pudessem levar seus navios para o mar, eles iriam para o mar. A princípio, os comerciantes e proprietários de navios contrataram a guarda da cidade para retirar as pessoas, mas como ficou claro que o gelo não seria quebrado, eles cederam e deixaram o povo pescar. A cada inverno que se seguia, a baía se tornava uma nova terra para os proprietários arrendarem, fornecedores para equipar e trabalhadores para trabalhar: as pessoas encontravam peixes, os proprietários transformavam o trabalho das pessoas em ouro – mas não muito ouro – e a vida continuava.

No interior, os batedores de Penregon continuaram suas expedições. Logo depois dos talitas, eles procuraram por perigos distantes. À medida que os invernos começaram a se prolongar, os batedores começaram a caçar por terras mais quentes. Kayla defendeu a tarefa dos batedores, e o povo de Penregon olhava para suas aventuras com esperança. Contra as crueldades do inverno, para os proprietários do porto de Penregon, os chefes dos celeiros da primavera e os comandantes dos navios do verão, os batedores eram heróis.

Arte de Sam Burley

Essa esperança foi recompensada. Perto do fim, batedores voltaram com notícias de terras verdes ao oeste distante: além da estrada de fuga das Khers do Sul, a grama ainda crescia espessa e forte. Havia cidades e aldeias ali, construídas pelos descendentes das antigas Yotia, Korlis e Tomakul, e cheias de pessoas que nunca tinham visto neve mais baixa do que os picos das montanhas. Aquelas pessoas asseguraram aos batedores que ainda mais longe, através dos oásis e areias do Grande Deserto e a oeste das ruínas de Tomakul, havia cidades. Além do Grande Deserto havia um mundo que havia sido isolado do pior do cataclismo. Os batedores tinham certeza disso, e então Kayla – que se cansou das brigas de mercadores, proprietários de terras, mestres de guildas e soldados – proclamou ao povo de Penregon que sua salvação estava no distante oeste.

Essa notícia provocou uma empolgação generalizada. Caravanas foram organizadas, suprimentos negociados e trocados, casas desconstruídas e embaladas em carroças. Na direção oeste aos milhares, os colonos-refugiados partiram, e ninguém que foi por aquele caminho jamais retornou a Penregon. A cidade ficou quieta. Aqueles que ficaram, se agarraram ao que sabiam com determinação e extrema dificuldade — certamente os deuses aliviariam esse frio antes que a ruína os encontrasse — ou resignação sombria; ou não podiam ou não queriam deixar a cidade.

O inverno adentrava cada vez mais no verão. Antes agradáveis, aqueles meses intermediários se tornaram secos; presságios prontos. Embora geralmente temperado, de vez em quando uma tempestade escurecia Penregon por uma semana, enterrando a cidade em montes mais altos do que os prédios escuros de dois andares dos bairros residenciais. Os poucos civis remanescentes de Penregon removiam montes de neve das ruas da cidade, limpavam os paralelepípedos para os pedestres solitários que corriam de prédio quente em prédio quente. Quando esses civis morreram, eles simplesmente pararam no meio do trabalho. Equilibrados, eles se tornaram pilares de gelo quando a neve caiu sobre eles, derreteu e depois congelou novamente.

O fim de Penregon — a Penregon de Lady Kayla, a última Rainha de Argive — veio no outono. Os batedores retornaram de uma expedição ao extremo norte de Terisíare, onde ouviram rumores de uma ameaça gixiana, uma remanescente daquela ordem imunda esquecida em Terisíare após o fim da guerra. Lá, disseram os batedores que retornaram, a terra estava enterrada sob montanhas de gelo ambulantes, grandes geleiras que se moviam mais devagar que o tempo, mas eram igualmente imparáveis. Tremendo, os batedores contaram histórias das Khers mais ao norte desmoronando, o rugido de sua passagem ecoando por dias a fio. Em desespero, eles fugiram para a costa nordeste, onde observaram com horror que o próprio oceano havia congelado em uma massa de terra cinza e suja. O mar havia vomitado montanhas de gelo, caindo e congelando novamente, tão alto quanto as próprias Khers; o estalo do oceano congelado soava como se fosse os próprios ossos dos deuses se partindo. Aquecidos por peixe frito e café fumegante, os batedores disseram a Kayla que o mundo estava acabando. O gelo, embora distante por gerações, não seria parado.

Apesar de tudo, Kayla estava calma. Seu comportamento estoico era necessário para que Penregon permanecesse unida enquanto essas mudanças portentosas e imparáveis no mundo se acumulavam. Permanecer como um bastião público contra a resignação sem esperança exigia uma quantidade incrível de trabalho, e não havia caminho que Kayla não explorasse. Ela rezou para os deuses de Yotia, antigos e novos – uma vez chegando até mesmo a Tal – mas os argivianos eram tão ímpios quanto qualquer um, e ela não sentiu nada além disso, então parou. Ela pensou em imitar a destreza marcial e a postura de seu falecido pai, então treinou seu corpo na força de um guerreiro, mas não encontrou paz em correr, cavalgar ou balançar uma espada. Longe das artes marciais, Kayla mergulhou em textos e erudição, arte e outras disciplinas. Ela dirigiu a construção de uma grande mansão fora de Penregon, uma propriedade que provaria sua dedicação a Argive como um presente para seus futuros governantes – um exercício, ela percebeu após sua conclusão e sua realocação, de negação. Ela deixou a mansão e voltou para a cidade depois de apenas um ano.

Para o público e seus conselheiros, tudo isso falava do impulso e determinação da Senhora Kayla, a Rainha de Argive. Em público, ela era um exemplo para todos: uma estoica sem o frio do estoicismo, um mártir que não morreu, mas queimou como um farol. Essa persona era uma prisão. Apenas em particular, na calada da noite, que Kayla estava livre para ter medo. Nessas horas sombrias, Kayla deixou seu medo no mundo. Esta provou ser a única saída pela qual ela poderia continuar.

Nos primeiros anos após o cerco da morte de Penregon e Tawnos, esse medo era cru e sem foco: uma ansiedade de suor frio que a roubava o sono. Uma raiva incandescente, gritada em um travesseiro, esperando que ninguém pudesse ouvir. Ela pensou que nunca poderia se esvaziar da dor, da raiva, do luto. Todas as manhãs ela acordava com os pulmões em carne viva, o maxilar latejando e a cabeça doendo. Era como se ela usasse uma coroa de agulhas pesadas, um espartilho de pregos, e só pudesse ajustar onde suas pontas cravavam. Nenhuma quantidade de oração fervorosa trazia alívio. Nenhum combate de contato ou escalada alpina clareava sua mente. Nenhuma pintura ou poema poderia prendê-la. Nenhuma caminhada solitária pelos grandes e vazios salões de sua mansão lhe concedeu indulto. Kayla passava o dia assegurando aos outros que sua dor, sua tristeza, seu medo não os venceria, que Penregon precisava deles, que o mundo precisava deles. Não havia verdade por trás de seu conselho: ela não sentia nada, não conseguia nem mesmo demonstrar amor pelo neto e começou a pensar que sua dor poderia matá-la.

Em uma noite fria de inverno, muitos anos após o cerco, quase aconteceu.

Sozinha, tremendo de frio, encharcada de suor, Kayla apertou um punhado de capa enrolada no rosto e gritou novamente. Ela não temia ser ouvida. Ela se retirou para sua mansão, marchando sozinha pela neve para limpar sua mente das pequenas discussões de seu nobre conselho e dos príncipes endinheirados de Penregon. O mundo estava acabando, e aqueles respeitáveis capangas ainda discutiam sobre arrendamentos e aluguéis devidos. Carrapatos míopes, tolos gananciosos. Kayla os odiava. Por que eles conseguiram viver quando todos que ela amava morreram? Ela sentia falta de Yotia, de sua família, de seu futuro e até das malditas cigarras. Era demais.

Kayla – deixando apenas um bilhete para capitãe Myrel para que elu não enviasse os batedores para localizá-la – abandonou a cidade para encontrar alívio em sua mansão abandonada.

Envolta em uma capa velha, uma vestimenta carmesim empoeirada resgatada de Kroog, Kayla deitou em uma bola no chão da grande entrada da mansão e gritou com a garganta em carne viva. Fazia um dia desde que ela deixou a cidade, e ela não tinha sequer entrado na mansão. Ela convocou todos os sentimentos horríveis e não conseguia parar de invocar os adoráveis também – todas as lembranças de Urza, de Tawnos, de Harbin, Jarsyl, sua mãe e seu pai, de Kroog queimada e de Kroog radiante, de Raddic e do gelo, gritando até que o som a deixou e ela só pôde resmungar, apenas soluçar, e então ela sentiu algo estalar.

O calor fluiu através dela. Fogo subiu de algum nó profundo de seu intestino, chiando em cada nervo de seu corpo. Ela engasgou, aterrorizada, e conseguiu tirar a capa antes que faíscas saíssem de suas mãos. Um calor de fornalha brilhou no espaço acima de suas palmas, estourando como um festival de fogos de artifício e deixando seus ouvidos zumbindo e o rosto avermelhado pelo calor.

Magia.

O zumbido desapareceu de seus ouvidos. Ela soube no momento em que aconteceu. Quando menina, ela tinha ouvido falar de maravilhas como esta. Toda a sua vida, ela tinha ouvido sussurros de algum poder além do artifício. Até Urza falava sobre isso, murmurando xingamentos sobre algum poder esotérico manipulado em cantos distantes do mundo. Ela havia descartado isso como fantasia – como todos os outros nos reinos combinados – mas naquela noite todas as dúvidas a abandonaram. A magia havia se espalhado pelo mundo quando Urza o matou; no limiar do seu desespero, Kayla canalizou o fogo.

Tremendo e chamuscada, sozinha, Kayla olhou para as palmas das mãos. Fumaça fina subia do ar acima delas. Elas empolaram. O ar fedia. Ela sorriu. Pela primeira vez em anos, Kayla riu.

Um novo regime privado substituiu suas noites de desespero. Ela voltou para a cidade, retomou seus deveres e despachou seus mordomos para procurar nas bibliotecas de Penregon por quaisquer livros ou pergaminhos sobre magia. Para sua surpresa, eles encontraram muitos. Sobreviventes da Cidade de Terísia – a antiga sede daquela ordem esotérica, o Terceiro Caminho – se estabeleceram em Penregon, trazendo consigo uma quantidade modesta de seus escritos. Entre eles estava uma cópia de um texto, uma exploração das técnicas de um estudioso da faculdade de Lat-Nam e uma das líderes do Terceiro Caminho, Hurkyl, que – se as histórias de guerra fossem verdadeiras – uma vez fez desaparecer os primeiros regimentos do exército de Mishra que atacou a cidade de Terísia. Kayla tinha ouvido falar disso durante a guerra, mas assumiu que era uma fantasia, esperança gerada pelos sobreviventes sitiados daquele longo e sangrento cerco. Depois de sua própria canalização, no entanto, ela pensava de outra forma.

A nova prática noturna de Kayla seguia os preceitos das técnicas meditativas de Hurkyl, conforme apresentado no livro. Ela leu que seu controle da magia poderia ser melhorado primeiro através de um foco, então ela recuperou uma pedra de sua amada Kroog dos arquivos de Penregon e aprendeu a derramar tudo nela, canalizando essa energia até que a pedra brilhasse e ficasse quente demais para segurar. Então, ela aprendeu a obliterar a dor. Ela se queimava com frequência enquanto praticava, mas isso não a impedia. Em vez disso, ela enrolava as mãos em gaze limpa e continuava sua prática até que a canalização dessa energia não queimasse mais sua carne ou lhe causasse dor; então, ela pressionou ainda mais, aprendendo como direcionar esse calor, a moldá-lo em chamas selvagens e luz fria, a reparar suas próprias feridas.

Esses exercícios eram exaustivos ao mesmo tempo em que eram revigorantes. Tocar na alma como Hurkyl descrevia estava abrindo-a para uma fonte crua de memória e emoção. Mesmo quando as lágrimas secaram e sua pedra de treino esfriou, algum indício do desespero de Kayla permanecia. Ela não podia queimar esse sentimento final. Este fantasma permanecia com ela mesmo enquanto sua confiança crescia da prática vacilante de uma noviça para a segurança de uma mestra. Ela poderia acender uma vela apenas com um movimento de seu dedo, fazer um corte de papel em seu dedo, ou transformar uma pedra em brasa na palma de sua mão, mas era o simples fato de que isso poderia acontecer – e que isso ela podia controlar — que a assegurava de sua maestria.

Kayla percebeu isso: se ela pudesse controlar sua magia selvagem e repentina, então ela poderia voltar da escuridão. Ambos exigiam o mesmo esforço, e ela era uma estudante diligente.

Kayla esfriou como sua pedra de treino, noite após noite, sessão por sessão. Em vez de se enfurecer com sua dor, Kayla imbuiu sua pedra com seu fogo, tocou-a em uma vela e controlou sua raiva enquanto a vela queimava. Ela encontrou aquela dor familiar, refletiu sobre ela, aceitou e então a deixou de lado. O desespero não a abandonou, em vez disso, Kayla o ouviu e depois se despediu; o sol nascia todas as manhãs, apesar do gelo, e todas as manhãs, pessoas mais assustadas e menos capazes do que ela vinham lhe pedir ajuda, orientação, ajuda e conforto. Todos os dias, ela fazia o que podia para ajudá-los. A cada dia, a mulher que ela conhecia como Kayla bin-Kroog – não Senhora Kayla – não morria. Ela mudou. Ela sobreviveu. Ela ainda estava com medo, mas não mais desesperançada; não tinha medo da noite quando sabia que carregava dentro de si uma chama sempre ardente.

Então, quando os batedores voltaram com notícias de esperança no oeste, Kayla cuidou para que qualquer um de seu povo que quisesse fazer a jornada fosse abastecido e protegido, ordenando que Myrel e seus batedores levassem quaisquer bens que os peregrinos precisassem dos depósitos dos mestres de guilda e senhores de grãos. Havia pouco que pudessem fazer para resistir à ordem da Senhora Kayla, embora alguns tentassem; eles descobriram que estavam sozinhos com seu ouro e mercenários contra o povo, e os senhores que viviam cederam. A maioria dos batedores deixou Penregon como vanguarda da migração, seguido por quase metade da população da cidade disposta em longas carruagens. Myrel foi com eles; Kayla se despediu delu, beijando Myrel nas duas bochechas como uma mãe faria com um filho amado, assegurando-lhe que se veriam novamente algum dia no oeste.

Penregon acalmou-se depois que o último comboio de carroças partiu, escurecendo à medida que os invernos mais longos se instalavam. Tempestades castigavam a cidade. Durante uma nevasca especialmente amarga, os cruzados talitas retornaram. Kayla ordenou que os portões fossem abertos e os convidou para as ruas escuras de Penregon. Eles exigiram que ela dissesse onde ela escondeu as máquinas, e ela informou aos cruzados que eles haviam caminhado pelo gelo. Kayla disse a eles que Penregon não tinha nada a esconder e nenhum demônio além de pessoas famintas; ela se ofereceu para protegê-los, e os talitas finalmente entraram em Penregon. Curiosa, ela perguntou por Raddic, que não estava entre as fileiras dos cruzados ferrenhos.

“Morto,” disse seu novo líder. Ele era um homem magro e frio, sem nada do charme de Raddic. Kayla o encontrou nas ruas do mercado, comprando bebidas e vinhos.

“Depois da Torre de Ferro nós marchamos para a forja de Mishra,” ele disse a ela. “Os demônios lá eram grandes em número e fúria, mas graças a Tal, nós matamos todos eles. Muitos dos fiéis morreram, Raddic entre eles.” Ele enterrou garrafas de destilados em seus alforjes. “O que ele era para você?”

“Ninguém,” disse Kayla. “Um lembrete do velho mundo.”

O homem esquelético e seu séquito foram embora, e a longa coluna de talitas vestida de preto – o que restava deles depois de anos em campanha – seguiu, marchando para o oeste através da neve em direção ao vazio branco.

O ano passado acabou. A cada dia que passava, as pessoas saíam da cidade, despojando-a de vida, calor e som. Os distritos desapareceram e a cidade encolheu.

Kayla foi uma das últimas a deixar Penregon. Era sua cidade, mas ela não morreria em suas ruas frias e vazias. Essa dor ela derramava em sua pedra Kroog; ela saiu quando ela teve algo pelo que sair. Seus batedores voltaram com folhas secas de grama e flores prensadas e prometeram oceanos de verde, um mundo vivo além do deserto, além das Khers cobertos de neve e ruínas do leste. Havia vilas e cidades, asseguravam-lhe seus batedores, e havia algo mais: uma história, terna e cruel, de um homem e uma máquina voadora no céu ocidental.

Harbin.

Kayla derramou todo o seu luto. Com isso fugiu a dor que pôde ser tingida de esperança. Então, ao ouvir essa história, Kayla não deixou seu coração explodir. Ela não correu sozinha de Penregon para atravessar montanhas e rios para encontrar seu filho. Ela preparou uma última caravana do seu povo e foi para o oeste com eles, deixando para trás apenas os proprietários sombrios e ensanguentados do porto de Penregon, que se recusaram a sair de suas miseráveis mansões, onde ficaram contando seu ouro até que o gelo os levasse.

Kayla deixou Penregon e sua mansão para trás e marchou ao longo da rota – agora bem definida – com o resto do êxodo. Até as Khers uivantes, sua caravana lutou, escolhendo a mais baixa das passagens e ainda perdendo um quarto do seu número para o frio, a escuridão e as criaturas desesperadas de lá. Descendo daquelas amarguradas passagens, eles cambalearam, rolando pelos corpos congelados de centenas que morreram neste caminho antes. As elevações mais baixas trouxeram algum alívio quando a migração finalmente chegou às margens daquele oeste verde. Aqui, na sombra das implacáveis Khers, Kayla estava mais uma vez na terra de sua juventude. Yotia, seu domínio por direito, a terra que ela uma vez teria governado como rainha. Ela sempre odiou os títulos sangrentos e marciais de Comandante e Senhora da Guerra. Quão vis eles eram, e quão corruptores. Como alguém poderia governar uma terra em paz quando seu título dado pelos deuses os nomeava de mestres da guerra?

Kayla sabia que teria sido uma boa rainha.

O Mardun fluía inchado e mais largo do que ela se lembrava, rico com a água derretida da primavera. Sua migração seguiu o velho rio por suas novas margens, serpenteando ao longo de suas curvas e cruzando nos pequenos vaus e cidades de balsas que encontraram. Ninguém havia construído pontes ainda, mas pelos cálculos de Kayla, elas não estavam longe. A neve e o gelo não ameaçavam as terras a oeste das Khers tanto quanto ameaçavam Penregon e o leste; o longo inverno estava chegando, atrasado apenas por aquela muralha continental, e por enquanto ainda havia dinheiro a ser ganho à sombra das montanhas. Alguns de sua caravana, fatigados e doloridos, interromperam sua migração nessas cidades emergentes. Havia solo rico para ser cultivado aqui, ouro para garimpar, metais velhos para limpar, caça para caçar e peixes para colher. Podia-se fazer uma vida aqui; uma vida na esteira das civilizações, mas era uma vida que se podia viver, em vez de apenas sobreviver.

Os contrafortes e as densas florestas logo se transformaram em pradarias secas. Sob céu aberto, os últimos cem refugiados do êxodo de Penregon continuaram para o oeste, passando pelas ruínas cobertas de musgo de velhas máquinas de guerra e redutos abandonados. A rota os levou através das ruínas de pedra de cidades mortas e de antigos campos de batalha – trincheiras e crateras agora lagoas rasas onde sapos cantavam à noite, os ossos dos mortos há muito deteriorados cobertos por lírios e galhos de juncos onde pequenos pássaros esvoaçavam. A rota para o oeste era tanto um cemitério quanto uma estrada; ocasionalmente eles passavam por esqueletos de madeira apodrecida de carruagens e carroças, os corpos de seus donos e animais de tração que uma vez os arrastaram há muito tempo comidos por carniceiros ou enterrados onde haviam caído.

Eventualmente, eles chegaram a Nova Yotia, a primeira cidade do oeste. Uma extensão de madeira construída no topo de um planalto com vista para a vasta extensão de terra a oeste, Nova Yotia empoleirada acima das águas turbulentas do velho Mardun. Grandes rodas de pás giravam no rio, girando moinhos e alimentando todo tipo de indústria ribeirinha. A cidade não tinha muros além da elevação natural do planalto e terraplanagem voltada para as montanhas; era cercada por campos cultivados e pequenos coletivos de agricultores. Altas torres de sinalização marchavam em direção à cidade em intervalos regulares, ganhando vida quando seus operadores viam o comboio de carroças se aproximando.

Nova Yotia os acolheu como Penregon uma vez acolheu aqueles que vieram aos seus portões. A maioria das pessoas de Kayla se estabeleceu lá, achando a cidade um conforto acolhedor e familiar. Kayla quase fez o mesmo; ela estava cansada e Nova Yotia a lembrava de sua juventude. Os aromas, a comida, a música, a linguagem – até mesmo os prédios, embora fossem simples objetos de madeira – eram yotianos de ponta a ponta. Nova Yotia não era Kroog – o cadáver de Kroog jazia muitas dezenas de quilômetros adiante – mas estava perto.

Kayla permaneceu em Nova Yotia pelo resto do inverno, vivendo em relativo conforto acima de uma pequena casa de chá em um bairro movimentado da cidade. No verão, ela decidiu que era hora de continuar para o oeste. Nova Yotia era um porto fluvial movimentado para os caçadores, mineradores e fazendeiros que subiam e desciam o lado ocidental das Khers. Alguns vinham de lugares ainda mais distantes, e foi por meio desse turbilhão de pessoas que Kayla descobriu que havia de fato outras cidades mais a oeste: Lat-Nam, Sumifa e outras cidades antigas e novas, intocadas pelo cataclismo que condenava o leste. Além disso, Kayla ouviu mais histórias. Uma de uma máquina elegante, prateada como um espelho e rápida como o flash da luz, e o último homem voador que voou no azul ocidental. Ele era um herói, diziam as pessoas. Ele voou para o sol para roubar seu ouro, alguns diziam. Ele morreu no cataclismo, disseram, e renasceu como o arauto do vento. Harbin, seu filho, lenda do céu ocidental.

Morto ou vivo, fantasma ou espírito, Kayla resolveu atravessar o continente para descobrir a verdade. Coisas estranhas estavam acontecendo em Terisíare – com Tawnos ela viu os mortos retornarem. Dentro dela e Jarsyl, ela tinha visto magia. O velho mundo estava morrendo, lembrando, tremendo; um novo mundo estava nascendo.

80 AR

Na noite anterior à partida de Kayla para o oeste, seu neto, Jarsyl, foi ao seu modesto apartamento. Eles comeram um jantar privado da refinada cozinha yotiana em sua varanda com vista para um mercado movimentado, atendido por um único servo que Kayla mandou embora depois que o prato final foi colocado. Foi uma refeição leve, e os dois comeram em silêncio, deixando o som da multidão noturna abaixo preencher o espaço até que Kayla não aguentou mais a tristeza do neto.

“Jarsyl,” Kayla disse, colocando seus talheres na mesa. “Você está comendo como um passarinho.”

“Desculpa, vovó,” Jarsyl disse. Ele sentou-se curvado tanto quanto seu treinamento em postura permitia. Sua comida, exceto por cortes superficiais, estava intocada.

“Você não olhou para mim nenhuma vez,” Kayla disse. “Você está atormentado. É uma paixão, seu treino, ou outra coisa?”

“Outra coisa,” seu neto disse. Jarsyl olhou para o mercado. “Por que você escolheu este lugar?” Ele perguntou. “Você é rainha – você poderia ter se alojado no novo palácio.”

“Verdade,” Kayla disse. “Mas eu fui afastada do meu povo por tanto tempo. Eu queria viver entre eles.” Ela voltou para sua refeição.

“Mas você não tem guardas.”

“Sou uma senhora,” disse Kayla, “e estou feliz que minha era do perfume tenha passado. Quero cheirar a especiarias, óleo e incenso; não preciso de guardas, e não os quero.”

“E os talitas?” Jarsil disse. Ele vasculhou o mercado abaixo e apontou para alguns soldados talitas, negociando com um vendedor de chá. “Eles dizem que estão caçando magos agora.”

“Eles dizem isso.” Kayla assentiu, dando uma mordida em sua comida.

“Você não está preocupada?”

Kayla riu. “Claro que não. Toda velha já foi chamada de bruxa por alguém, especialmente aquelas velhas azaradas o suficiente para liderar nações. Além disso, eles não podem pegar todos nós.” Ela piscou, e uma suave vibração de energia encheu o apartamento. Ao mesmo tempo, as lamparinas a óleo que Kayla tinha deixado queimando se apagaram, então reacenderam.

Os olhos de Jarsyl se arregalaram. Ele olhou para os talitas no mercado abaixo. Eles não tinham notado. Ninguém percebeu.

“Os talitas não me preocupam.” Kayla disse, sorrindo. Ela acenou para o prato quase cheio de Jarsyl. “Sua falta de apetite me preocupa – isso e sua deflexão. O que te atormenta?”

Jarsyl cutucou sua comida fria.

“Chega disso,” Kayla disse, gentil, mas firme.

“Eu não posso ir com você.”

Kayla arqueou uma sobrancelha. Jarsyl podia ser um homem, mas neste momento, ele estava tão tímido quanto um estudante. Por um instante, seu sangue gelou, mas ela conseguiu se recompor antes que seu rosto pudesse quebrar.

Jarsyl parecia tanto com seu pai. Harbin estava diante dela, uma vez, no dia em que lhe disse que pretendia se juntar ao corpo de tópteros. A pontada de medo – não do que poderia ser, mas de como ela responderia – prendeu a voz de Jarsyl em sua garganta da mesma forma que Harbin tantos anos atrás.

Ela respirou fundo. Não houve guerra. Jarsyl, o menino brilhante, não era Harbin.

“Eu ouvi histórias,” Jarsyl começou, “de uma escola ao norte, nas margens do Lago Ronom.”

“Não há nada em Ronom,” Kayla disse. “Os gixianos foram expulsos há uma década pela primeira cruzada talita.”

“Certo, sim,” Jarsyl disse. “Mas ouvi dizer que há algo mais lá agora – uma escola para pessoas que podem… fazer o que fazemos.”

“Uma escola de magia?”

Jarsyl assentiu. “Magia e artifício, ambos. Eles estão ensinando pessoas como nós a serem melhores. Mais fortes.”

Kayla considerou isso. Jarsyl era, pelos costumes do velho mundo e pelas exigências do novo, um adulto – embora muitas vezes ela ainda pensasse nele como um menino. Sua vida fora vivida ao lado dela, abandonado pelo pai e crescido no fim do mundo. O fim do mundo dela. Seu mundo, embora perigoso, era jovem como ele e ainda crescia — os rumores que ele perseguia eram menos críveis do que as histórias que ela seguia?

“Magia e artifício,” Kayla repetiu. Ela se perguntou – poderia ser? “Eles disseram quem coordena esta escola?”

“Uma mulher artífice, Nod, e um mago que eles chamavam de Duck,” Jarsyl disse. Ele esfregou a nuca, como se tivesse vergonha de falar os nomes em voz alta. “Eu acho que ele pode ser do oeste, é um nome engraçado.”

Nod e Duck. Velhos amigos e novos. Kayla sempre se perguntou se Tawnos realmente morreu naquele dia. Ela sorriu para Jarsyl. “Vá para o norte. Se houver professores melhores do que eu, procure-os.”

Jarsyl se iluminou, como se um peso fosse tirado de seus ombros. Ainda assim, lágrimas brotaram de seus olhos.

Kayla se levantou e deu a volta na mesa para Jarsyl, pegando-o em um abraço. “Meu menino,” ela sussurrou, apertando-o com força. “Você e eu temos histórias diferentes. A minha pode estar acabando, mas a sua está prestes a começar.”

“Estou com medo de ir,” Jarsyl disse, sua voz abafada pelo abraço dela.

“Eu também,” Kayla disse. Ela beijou a bochecha do neto. “Mas eu também estou animada. Vamos deixar a emoção nos guiar, certo?”

Jarsyl assentiu. Ele deu um passo para trás e enxugou o nariz. “Você vai contar a ele sobre mim?” ele perguntou. Ele não precisava dizer seu nome para Kayla saber a quem ele se referia.

“Vou,” Kayla disse. “Se você contar ao Diretor Duck sobre mim. Agora, quando você vai embora?”

“Há um grupo partindo amanhã de manhã,” Jarsyl disse, a curiosidade sobre o desejo de sua avó desaparecendo enquanto ele desabafava seus planos. “Vou ter que correr para os fornecedores, mas já disse ao desbravador sobre o meu interesse – eles estão me esperando.” Suas lágrimas secaram, e ele já começou a falar em torno da respiração. Quando estava animado, ele queimava positivamente com a energia.

Estudar, se de fato houvesse uma escola de magia, faria bem a ele, Kayla pensou. “Você não deve demorar,” Kayla disse. Ela fez sinal para ele ir. “Apresse-se e junte suas coisas, deixe o desbravador saber que você certamente se juntará a eles pela manhã.”

“É difícil dizer adeus, vovó,” Jarsyl disse. “Eu não quero.”

Kayla assentiu. “Então não vamos dizer adeus,” ela disse. Ela o abraçou mais uma vez e o beijou na testa. “Até mais tarde, meu menino.”

“Até mais tarde,” Jarsyl sussurrou.

Kayla mandou seu neto embora. Na manhã seguinte, ela partiu antes do amanhecer.

O caminho mais rápido e seguro para o oeste era através do Mardun. Esse grande rio passaria pelas ruínas de Kroog e as desembocaria na beirada do deserto, onde seguiriam pelas estradas principais pelas ruínas de Tomakul e além.

Kayla estava curiosa para ver sua antiga casa. Os novos yotianos lhe contaram que o Mardun há muito tempo inundou a cidade, tendo sido sacudidos de suas margens pela tremenda detonação cataclísmica que abalou Terisíare. Exceto pelos distritos do sul de Kroog, onde ficavam o palácio real e os bairros nobres da cidade, grande parte da cidade permaneceu submersa. A grande e antiga capital era agora um lago ao longo do novo curso do rio, alimentado pelo distante derretimento da neve do sul das Khers.

Kayla não ficou surpresa ao saber que um comandante governava Kroog novamente. Este era um bruto que se intitulava como os poderosos líderes do passado. Suas gangues de invasores ameaçavam as estradas e os campos ao redor da cidade; era melhor pegar um barco fluvial veloz, guardado por arqueiros de Nova Yotia e mercenários talitas. A Igreja de Tal era densa em Nova Yotia, numerosa como as flores silvestres da pradaria. Aqueles severos penitentes e caçadores de demônios eram um incômodo para as alegrias brilhantes de Nova Yotia, mas sua ordem era grande e provia a defesa comum da cidade. Kayla entendeu que a presença deles era necessária para combater a ameaça de invasores de Kroog. Além disso, ela entendia que sozinha não poderia extirpá-los e expulsá-los desta cidade que poderia ser seu lar – nem mesmo com sua magia. Então ela não protestou quando um destacamento de soldados vestidos de preto entrou em seu barco. Os talitas usavam uniformes limpos de um azul profundo e escuro, suas armaduras pretas, suas espadas lubrificadas e livres de ferrugem. Muito diferente da ralé desesperada que uma vez atacou Penregon; parecia que sua primeira derrota não impediu sua fé.

Os talitas ocuparam o convés inferior e o porão, enquanto os passageiros e os arqueiros de Nova Yotia ocuparam o convés superior. Se a luta ocorresse, o pior cairia sobre os talitas; eles não se importavam com esse arranjo, nem Kayla. Abaixo dela, os talitas rezavam, comiam, mantinham suas armas, dormiam e vigiavam. Nenhum deles olhou para ela. Nenhum deles sabia quem ela era, e nenhum deles parecia se importar. Isso foi bastante do agrado de Kayla também.

Uma vez a caminho, Kayla dominou o segundo andar do barco, ignorando as ordens do capitão de retornar à sua cabine durante a noite. Ela não tinha companhia a não ser a sua e resistia à conversa. O contingente de novos yotianos reconheceu o sotaque e a postura do velho mundo de Kayla e não considerou a distância deles como um insulto: uma velha excêntrica, eles presumiram, um dos poucos anciões que viveram até o fim do mundo. Os novos yotianos pararam suas investigações e avanços após as primeiras noites no rio. Deixada sozinha, Kayla estava livre para descansar e ver o mundo passar.

As ruínas de Kroog estavam um dia à frente. No colo, as últimas páginas de um poema que estava trabalhando. Um épico, uma história dos homens que mataram o mundo, para que nunca fossem esquecidos ou perdoados.

Risadas empolgadas dos novos yotianos praticando arco e flecha chamaram sua atenção, o zumbido e o tamborilar de seus arcos enquanto atiravam em alvos ao longo da margem – árvores, postes de cercas de fazendas abandonadas há muito tempo, restos enferrujados da guerra – fazendo uma competição de sua formação. No convés abaixo, um dos talitas começou a cantar e logo o resto se juntou, suas vozes subindo juntas em coro.

Outra semana disso não parecia tão ruim. Kayla estava bastante curiosa para ver Tomakul – mesmo que aquela grande cidade fosse apenas ruínas – e estava ansiosa para explorar aquelas terras mais a oeste, das quais ela só tinha ouvido falar em histórias.

Kayla bateu o pé no convés no ritmo do canto. Ela fechou seu caderno, decidindo fazer uma pausa na escrita do dia. O suave movimento de balanço do barco a acalmou. O sol estava quente em seu rosto. Ela fechou os olhos e sorriu.

Kayla estava livre.

85 AR

A própria Kroog não se parecia em nada com a grande cidade que já foi. Suas orgulhosas torres de pedra haviam quase desmoronado, exceto por um punhado de monólitos ocos que agora abrigavam apenas pássaros em nidificação. Aquelas sentinelas solitárias do lago continuavam sendo as estruturas mais altas de Kroog, mas não eram vistas como parte da nova cidade que se estendia ali; Kroog depois do cataclismo era uma pilha de prédios e passarelas amontoadas umas sobre as outras, construída acima da água em uma floresta de palafitas. Tudo na cidade era dedicado a uma de duas coisas: colher a recompensa do lago ou invadir o rio para cima e para baixo para adicionar moedas, cativos e resgate à riqueza do Comandante Fask, o Tirano de Kroog.

Fask era um bruto inteligente. Um senhor da guerra em título e porte, ele havia feito seu caminho até o topo com mortes, na década seguinte ao cataclismo. Agora Fask governava um pequeno reino que se estendia das ruínas de Zegon na costa sudoeste de Terisíare até a fronteira do deserto verdejante no norte. A leste, sua terra era mal definida, contestada por Nova Yotia e os talitas que ainda conseguiam manter seus saqueadores à distância. Dentro de suas fronteiras, todos prestavam homenagem a ele, um sistema simples de “Quatro-de-dez” – quatro de quaisquer bens eram dados ao seu tesouro e baú pessoal, e o restante se espalhava entre seus súditos leais. Ele era, para desgosto do povo que sofria seu reinado, o mais justo dos comandantes que contestaram esse terreno. Assim, Fask comandava a lealdade de seus guerreiros favoritos e a submissão do resto de seus súditos até sua morte.

O fim de Fask deixou seu reino dividido entre domínios em ascensão e comandantes famintos. Nova Yotia e os talitas conquistaram e anexaram a metade oriental de seu domínio, enquanto os rivais de Fask destruíram a metade ocidental. Ninguém sabe se a luta ali parou; esses registros, se alguma vez foram mantidos, foram perdidos no tempo e no gelo, ou foram enterrados nos arquivos da Igreja de Tal. Perdida também estava a história do fim de Fask, a história noturna do tirano e do fantasma.

Comandante Fask, o Tirano de Kroog, acordou no poço mais profundo da noite. Um som em seus aposentos: latas, moedas e medalhões chocalhando juntos.

Fask jogou fora seu cobertor fino e agarrou sua espada, nu como estava na cama ao lado dele, e caminhou em direção ao som. Seus aposentos estavam irreconhecíveis de seus habituais compromissos espartanos, mas ele ordenou que fossem lotados como qualquer depósito ou tesouraria. Seus guardas sussurraram sobre a paranoia e a loucura do comandante, mas Fask estava desesperado. Precisava provar o que tinha visto.

Uma teia de fios cruzava a grande sala, e deles todos os tipos de pequenas coisas brilhantes estavam suspensas: latas, moedas, utensílios de prata e estanho, medalhões, facas, camisas de corrente, pontas de flechas – qualquer coisa que criasse uma comoção alta e inconfundível quando perturbada pelo toque de uma pessoa. Essa era a armadilha de Fask, seu sistema para provar que não era louco, mas perceptivo.

Durante meses, Fask foi atormentado por vozes na noite. Passos e sons de conversas, construindo e caindo. Exteriormente, ele temia um assassino – essa era a razão do seu sistema de alarme, ele disse a seus guardas – mas interiormente, ele temia outra coisa, algo mais mortal: o destino.

Fask enxugou o suor dos olhos e recordou espontaneamente as palavras do oráculo mais uma vez:

Os mortos não esquecem seu assassino, ela gargalhou com os dentes ensanguentados. Nós nos encontraremos novamente algum dia – cada corte de sua espada será devolvido mil vezes!

Fask havia encontrado a oráculo em uma noite escura e chuvosa durante sua conquista das Sword Marches, enquanto ele e seus saqueadores destruíam uma vila sem nome que havia se oposto a eles. A praga que ela jogou sobre ele o perseguiu por uma década; embora estivesse sentado em um trono que construiu durante a guerra, nada desde o cataclismo pesava tanto em sua mente.

Nos tranquilos minutos que se seguiram ao seu despertar, Fask sentiu uma cortina de vergonha descer sobre suas costas frias de suor. Ele foi um tolo por temer aquela velha anciã. A espada era uma arma fina e orgulhosa, afiada como uma navalha, e seu quarto vazio. Ele era Fask, o Tirano de Kroog, o Comandante da Velha Yotia! O vento, certamente tinha sido o vento sobre o lago-

O chocalho veio do pé de sua cama.

“Quem está aí?” Fask gritou, a espada segura com as duas mãos diante dele. O medo o comandava, e ele não conseguia parar de tremer.

“Diga-me quem você é,” Fask exigiu. “Quem te enviou, espírito?”

Silêncio. Uma pausa longa o suficiente para Fask pensar em círculos. Talvez fosse o vento — um vento forte sim, mas talvez fosse apenas isso. Não, impossível! Teria que ser um vendaval lá fora para mover aquelas linhas – certamente o que o havia perturbado estava vivo; estava amarrado na altura do peito, com latas e cacos de vidro espalhados pelo chão. Era impossível alguém não fazer barulho se movendo nos aposentos de Fask.

Outro chacoalhar ao pé de sua cama. O breve silvo de algo, algo raivoso, como se uma fera se aproximasse dele, as presas à mostra e a boca babando.

Fask ficou de pé e pressionou as costas contra a parede, afastando-se o máximo possível do som. Ele não viu nada, apesar da luz brilhante do luar que entrava pela estreita janela gradeada de seu quarto. Mudando sua pegada para segurar a espada em uma mão, ele estendeu a outra sobre sua cama para alcançar uma lamparina a óleo que ele mantinha lá. Ele girou uma maçaneta na lâmpada, e sua sombra se abriu. Um feixe de luz quente atravessou a escuridão, iluminando o pé da cama.

Um homem estava ali. Não era um homem — uma sombra tênue, um hematoma na escuridão do quarto não desfeita pelo brilho da lamparina a óleo. Era um espírito, semi-corporificado, uma névoa que oscilava entre a fumaça disforme e a figura sólida de um homem. Fask conseguia distinguir o cabelo cortado rente na cabeça do espírito, a barba bem aparada. O espírito o encarou, imóvel.

Fask gritou. O Tirano de Kroog largou a espada e tapou os olhos com as mãos. Ele caiu de joelhos. Este era o destino que ele temia, o fantasma dos mortos, vindo para arrastá-lo para baixo das águas frias de Kroog, o cemitério sobre o qual ele construiu seu reino.

O espírito flutuou para trás, o movimento transformando-se em passos enquanto sua metade inferior se transformava de névoa à forma física. Ele esbarrou em outra fileira de latas e medalhões, que tilintaram suavemente.

Guardas invadiram a sala, espadas desembainhadas, mas viram apenas seu senhor gritando e arranhando seu próprio rosto. Eles se olharam confusos. Alguns decidiram ajudar Fask e correram para o lado dele. Outros, olhares sombrios nublando seus rostos ásperos, foram embora. Eles tinham visto o suficiente.

“Kaya,” Teferi disse, sussurrando sem ser visto e ouvido das sombras. “Puxe-me para fora.”

“Você está aí há apenas alguns minutos, Teferi,” Kaya respondeu, sua voz suave como a brisa ao longe. “O que você fez?!”

“Nada!” disse Teferi. “Acho que ele me viu.” Ele observou o homem nu gritando rolar ao redor da cama, atacando os outros homens – seus guardas, ao que parecia – que estavam tentando acalmá-lo.

“E eu posso ficar, ah, consistente,” Teferi disse. Ele testou essa teoria estendendo a mão e puxando uma das linhas de armadilha. Ela saltou, suavemente, como se uma brisa tivesse balançado a linha — movimento demais para seu conforto — ele deveria ser insubstancial, nada mais do que um espírito, não fisicamente presente. Teferi balançou a cabeça. “A Âncora Temporal não está calibrada corretamente, Kaya, e acho que não alcançamos nosso alvo – não recuamos o suficiente. Puxe-me para fora.”

Kaya murmurou algo que Teferi não conseguiu entender.

“O que é que foi isso?”

“Nada,” Kaya disse. “Saheeli teve alguns pensamentos.”

Teferi podia ouvir Kaya revirando os olhos.

“Tudo bem,” Kaya disse. “Puxando você de volta.”

O espírito de Teferi se dissolveu em névoa, deixando a noite imperturbável, exceto pelos gritos do Tirano de Kroog.

Muitos séculos depois, um velho homem presenteou seus netos com a história daquela noite. Ele falou com eles sobre a luta que se seguiu, os reinos que surgiram e caíram por causa de um fantasma, e a importância de presságios e magia.

Nenhum de seus netos achou sua história mais do que apenas uma história, mas eles adoravam os rostos e os sons que seu avô fazia ao contá-la, e por isso pediam muitas vezes. As histórias mantinham os ânimos em alta durante as noites extremamente frias nas geleiras de Terisíare.

A Era Glacial estava sobre Dominária e, embora todos esses netos tivessem vidas longas e contassem várias versões dessa história para suas próprias dinastias, nenhum deles sobreviveu ao gelo, nem a história do tirano e do fantasma.

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