Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

A Guerra dos Irmãos - Episódio 01: O Fim

69 AR

Estava nevando em Penregon.

Cinco anos após a guerra que acabou com o mundo, os sobreviventes descobriram que nada havia acabado realmente; após as máquinas, os terremotos e as ondas devastadoras, a primavera ainda chegou. Soldados perambulavam de volta das distantes frentes apocalípticas com seus uniformes esfarrapados implorando por arroz e pão. Os mercadores negociavam seus produtos e despachavam seus navios para as costas distantes, cobrando ouro por produtos, erguendo feudos e anotando as dívidas de seus clientes. Guardas policiavam as ruas e as fronteiras dos bairros nobres, com as mãos nas espadas e os olhos arregalados com o mesmo medo de sempre. Os campos ainda precisavam de semeadura e colheita; trabalhadores magros ainda se arrastavam para colher grãos sob o olhar severo dos supervisores. O preço do pão e do leite subiu, o gado e a caça escassearam, o salário que se ganhava do trabalho nos campos não era tão bom, e à noite o horizonte a sudeste nunca escurecia de verdade. A vida continuou em Terisíare, embora as estações da primavera e do verão parecessem estar mais curtas, os meses quentes se comprimindo em semanas quentes, e no inverno, agora nevava em Penregon.

Todos que testemunharam o cataclismo — isto é, todos em Terisíare — sabiam que o mundo havia acabado naquele dia. Então eles acordaram na manhã seguinte e descobriram que a vida continuava, só que nunca parecia mudar para melhor. O melhor que as pessoas podiam esperar era que as coisas não continuassem a piorar.

Arte de Lucas Staniec

Cinco anos após a explosão, Kayla bin-Kroog estava sentada sozinha nas câmaras do conselho da casa do governo de Penregon, ouvindo o crepitar quente do fogo desvanecente da sala. Com a agenda do dia completa, exceto por uma última reunião particular, seus conselheiros e membros do comitê tinham saído para caminhar pela neve de volta para suas casas. Eles a deixaram sozinha com os últimos livros contábeis, números do censo e relatórios de expedição de Penregon — um círculo de pesadelos rabiscados com tinta diluída em papel esfregado. Já tinha se despedido de Jarsyl, enviado para estudar à noite com seus tutores.

Enfim só. Kayla segurou um relatório sobre grãos, os números terríveis, e olhou para um mapa recém-desenhado do Mar Visceral a leste, estendido sobre a mesa à sua frente.

Vazio.

A outrora verdejante ilha de Argoth, a sudeste, havia desaparecido, reduzida a torres monolíticas de pedra de basalto açoitadas por ondas. A guilda mercantil exigiu essa expedição mais recente, na esperança de reviver as antigas rotas comerciais entre Penregon e os distantes reinos do outro lado do oceano, mas as pequenas ilhas que costumavam reabastecer sua água e mantimentos haviam desaparecido; as estrelas estavam erradas agora, ou aquelas ilhas tinham sido engolidas pelo mar.

Kayla jogou o relatório para o lado. Ela já sabia o que ele diria – as colheitas estavam no início e menores do que no ano passado, assim como os relatórios do ano passado foram menores do que no ano anterior, e assim por diante, até quando o mundo como eles o conheciam havia acabado. Os papéis caíram no chão a alguma distância perto de uma janela entreaberta com vista para a cidade, onde se misturaram com os flocos de neve derretendo.

Neve. Kayla lembrou-se de raras caminhadas em seus anos mais jovens no sopé das colinas ao redor de sua torre. As montanhas, as florestas alpinas, o vento – o inverno tinha uma beleza severa que ela tentou relacionar com o porte austero de Urza, mas não conseguiu. A verdade era que Kayla odiava o inverno.

Embora os aquecedores a vapor bombeassem calor suficiente para que toda a sala ficasse confortável, Kayla ainda sentia um frio profundo. O conselho a deixou de mau humor.

“Quão distantes seus deuses estão agora,” Kayla murmurou. Quando foi a última vez que os deuses pareceram próximos dela? Em Kroog, antes de ser saqueada. Suas torres arejadas e mercados lotados. Um lar, arrancado dela. Kayla fechou a janela. A nostalgia agarrou-a pelo coração hoje. Uma pitada de desgosto pela memória, não pelo que ela lembrava, mas pela dor da lembrança; havia uma razão para seu devaneio, prestes a irromper em alguns instantes.

Uma batida educada nas portas da câmara chamou sua atenção. A amarga torrente de adrenalina que se seguiu foi inesperada, atípica e indesejável, apesar dos preparativos da noite anterior.

“Pois não?” Kayla disse, respondendo à batida.

Um jovem pajem entrou nos aposentos e pigarreou.

“Senhora, o convidado da sua última reunião está aqui.”

“Mande-o entrar,” Kayla disse. Ela acenou para ele. “E traga-nos aperitivos, tenho certeza que nosso convidado está com fome.”

O pajem curvou-se e saiu da câmara, fechando a porta suavemente atrás.

A porta se abriu novamente, e seu convidado entrou. Kayla olhou e viu um homem morto. Esfarrapado e ressecado pelo vento, o nariz e as orelhas enegrecidos com manchas de congelamento, as saliências altas de suas bochechas descascando onde o gelo havia esfregado. O homem robusto e firme que ela conheceu décadas atrás murchou em um esqueleto torto com cabelos brancos e crespos. No entanto, seus olhos permaneceram brilhantes e sua voz inconfundível.

“Olá, Kayla. Você parece bem.”

Kayla permitiu um sorriso educado e vazio. “Tawnos,” ela disse. “Eu pensei que você estava morto.”

O ex-assistente de Urza fez uma reverência. “De certa forma, eu estava,” ele disse. Tawnos falou com uma rigidez nova para Kayla. Em sua juventude, ele sempre pareceu um contraste caloroso com Urza, um homem afável estragado por seu amor e devoção ao marido dela. Agora Tawnos era quase um espelho de Urza, até mesmo em seus cabelos brancos.

Kayla acenou para ele se sentar na mesa do conselho, para a qual ele mancou e se sentou.

“O mundo mudou desde a última vez que fiz parte dele.” Tawnos disse, colocando a capa em volta de si. “Nunca imaginei que nevasse tão perto do mar.”

“O mundo mudou,” Kayla o corrigiu.

“Sim, acho que você está certa,” Tawnos fez uma careta. “Mas isso é passado – eu tenho tanta coisa para lhe dizer, e muito para te mostrar.” Seu sorriso era o de um crânio despojado de sua carne. Kayla tinha visto muitos sorrisos assim desde o fim da guerra, esticados nos rostos dos soldados que voltaram e dos mortos empilhados em carroças mortuárias.

“Nada é passado,” disse Kayla. “Como evidenciado por você cambaleando em Penregon.”

A porta da câmara do conselho se abriu, salvando Tawnos de ter que responder. Dois pajens empurravam um carrinho que trazia chá de menta e pequenos salgadinhos, fumegantes e saborosos. Serviria de jantar, por agora.

“Eu estava com ele pouco antes do final,” Tawnos disse, pegando um salgado do carrinho.

“Você sempre foi próximo do meu marido.”

“Ele impediu um demônio de dominar este mundo,” Tawnos disse, quieto mas firme, olhos baixos. “Seu irmão estava…” Tawnos procurou a palavra e a encontrou na memória amarga. “Transformado por aquela criatura. Fundido com uma máquina.” Tawnos olhou para cima, lágrimas transbordando. “A mesma coisa teria acontecido com o resto de nós se Urza não tivesse agido. Ele nos salvou.”

Kayla serviu-se de chá. “Você me disse que ele manteria meu filho seguro,” ela disse. Sem erguer os olhos de sua xícara, ela ofereceu a xícara para Tawnos. “Nunca mais o vi.”

“Ele-” Tawnos limpou a garganta. “Harbin foi um exemplo para seus homens – um oficial corajoso e um bom piloto.”

“Ele teve uma boa morte?” Kayla disse. Sua voz estava calma e reta, porém mais fria do que o vento que tinha cortado as orelhas de Tawnos e queimado seu nariz. “Se meu filho fosse um exemplo, eu esperaria que ele fosse um bom exemplo e salvasse outras mães da dor de perder seu primogênito para a guerra.”

“Como piloto ele-”

“Tudo o que Harbin sempre quis fazer foi deixar seu pai orgulhoso,” Kayla disse, interrompendo Tawnos. “Ele sempre se preocupou, porque era apenas um piloto e não um artífice como você, que seu pai pensasse menos dele,” Kayla disse. “Antes – quando ele era jovem – Harbin me contava sobre seus sonhos. Ele sonhava que podia voar, e que sempre que voltasse para casa, seu pai ficaria orgulhoso de seu menino voador. Ele alguma vez fez meu marido sorrir, Tawnos? Antes de morrer, ele deixou o pai orgulhoso?”

“Urza nunca quis colocar Harbin em perigo-”

“Então por que ele começou uma guerra para o meu filho morrer?” Kayla disparou. A raiva queimava através dela, um incêndio. Ela jogou sua xícara contra a parede, estilhaçando-se, ecoando por toda a câmara. Tawnos não disse nada enquanto ela se acalmava.

“Tawnos.” Kayla falou, compondo cada palavra, moldando cada sílaba do som primordial ao significado. “Então, vou deixar bem claro: eu nunca vou perdoá-lo por me convencer a permitir que meu filho partisse e morresse na guerra de meu marido. Seu caminho de volta à minha benevolência é dez vezes mais longo e frio do que a trilha amarga que você seguiu até aqui.”

“Sim, senhora,” Tawnos disse.

“Agora me diga o que você veio aqui me dizer.”

Tawnos enfiou a mão nas dobras de sua capa e tirou um rolo de tecido. Ele o desenrolou sobre a mesa, revelando um pequeno maço de papéis velhos, grossos e amarelados pelo tempo. Alguns danos causados pela água enrugaram as bordas, mas não o suficiente para estragar seu conteúdo. Kayla os reconheceu imediatamente.

“Projetos,” Kayla disse. “Trabalho do meu marido?”

“E alguns meus,” Tawnos disse. “Eu os mantive comigo enquanto estava fora. Vingadores, estátuas de barro – você se lembra deles? Ornitópteros também, todos os tipos.” Tawnos tirou cuidadosamente as páginas de seu rolo de pano e as exibiu sobre a mesa. “Motores a vapor, torres de comunicação — navios, máquinas e dispositivos que ele havia projetado. A maioria para a guerra, com certeza, mas alguns para uma paz na qual ele esperava viver um dia.”

“E tudo inútil sem as pedras de energia,” Kayla disse. “A menos que desejemos criar uma… indústria inovadora de ratos mecânicos em Penregon.” Ela balançou uma folha com os desenhos esboçados de um roedor de brinquedo de Tawnos.

Tawnos riu, e então percebeu que Kayla não estava brincando com ele. Ele tossiu. “De fato, sim, claro, e até esse ponto, tenho boas notícias. Consegui recuperar um punhado de pedras de energia e descobrir onde podemos encontrar mais.”

Kayla nivelou seu olhar para Tawnos. Ela juntou os dedos, pressionou-os sob o queixo. Fechou os olhos. Suspirou. “Não importa quantos grãos colhemos ou quantos peixes pescamos, homens como você sempre estarão com fome. Diga-me.”

“Antes do colapso, Argive tinha o maior estoque de pedras de energia de Terisíare,” Tawnos disse. “Seus depósitos foram enterrados, mas nos documentos de Urza, eu encontrei um mapa. Com as pedras de energia que tenho comigo e esses projetos, eu poderia construir novas máquinas para desenterrá-las.” Tawnos estava entusiasmado, tão animado quanto Kayla se lembrava dele em sua juventude. Seu cabelo selvagem e olhos arregalados, combinados com seu nariz congelado, o faziam parecer uma criatura de um conto de fadas – bestial, quase grotesco.

“Nada de armas, apenas ferramentas,” Tawnos disse. “Podemos usar as pedras para alimentar autômatos que nos ajudarão a minerar e colher. Podemos usá-las para iluminar a cidade à noite, ou ligar aquecedores para manter o frio afastado.” Tawnos se inclinou para frente, alcançando Kayla. “Nós poderíamos reconstruir Penregon. Seus guardas me disseram quando cheguei que qualquer um que viu a luz de Penregon era bem-vindo nesta cidade.” Tawnos apontou para o outro lado da sala em direção às paredes de Penregon. Kayla sabia que ele estava falando do farol com vista para o porto. “Eu ofereceria meu conhecimento e esses projetos para espalhar essa luz por Terisíare.”

Kayla não respondeu, nem pegou nas mãos de Tawnos.

O primeiro ano após o cataclismo foi um ano de tumulto. Em Penregon, a explosão causou terremotos terríveis que arrasaram a maioria dos edifícios de pedra e tijolo da cidade, derrubando-os em cima de seus ocupantes. O rei e sua corte, abrigados no Salão do Leão – a poderosa cidadela erguida nos penhascos vertiginosos com vista para o Porto de Penregon – desmoronaram no mar. Ondas gigantescas se seguiram, atingindo os distritos costeiros, quebrando nas ruas da cidade, limpando-as de escombros e sobreviventes.

Quando o tremor parou e a água recuou, Kayla bin-Kroog foi uma dos poucos nobres que restaram vivos. Como esposa do líder da aliança e princesa, o governo da cidade recaiu sobre ela. Seis longos anos depois, ela ainda era a guia de Penregon, a cidade dos vestígios.

“Você parece meu marido,” Kayla finalmente disse. “Tudo o que ele queria fazer era tornar o mundo um lugar melhor.”

“Se me permite,” Tawnos disse. “Ele me pediu para transmitir uma mensagem para você.”

Kayla arqueou uma sobrancelha.

“Ele me pediu para te dizer que, ah” – Tawnos tomou um gole de seu próprio chá – “‘não se lembrasse dele como ele era, mas como ele tentou ser.’”

Kayla riu, um som afiado e cristalino que foi contido pela quebra de sua voz. Por um momento Tawnos pensou que era uma risada genuína, mas esse momento desapareceu assim que Kayla falou.

“Ele acha que eu ainda sou a princesinha que ele ganhou?” Kayla disse. “Tudo o que ele sempre tentou ser – tudo o que ele e seu irmão tentaram ser – foram príncipes do mundo.” Kayla apontou para Tawnos. “Você sabia disso tão bem quanto eu sei agora; durante todo o nosso casamento, você passou mais tempo ao lado dele do que eu.”

Tawnos permaneceu em silêncio.

“Meu marido e o irmão dele forçaram escolhas cruéis sobre seus povos,” disse Kayla. “Eles incendiaram o mundo porque nenhum deles conseguia falar um com o outro.” Ela estendeu a mão sobre a mesa e pegou um dos desenhos de Tawnos. Um autômato ereto, uma das formas de guerra que ela se lembrava de Urza projetando após o saque e ruína de Kroog. Kayla olhou para a escrita precisa do marido. Suas linhas perfeitamente desenhadas. A máquina, renderizada em tinta velha sobre papel fino, parecia poder sair da página se alguém pronunciasse seu comando de ativação.

“Agora devemos reconstruir das cinzas desses irmãos,” ela disse, pousando a página. “Olhe para mim, Tawnos.”

Tawnos fez o que foi ordenado. Lágrimas escorriam de suas bochechas envelhecidas.

“Pare de chorar,” Kayla disse. “Você e eu e todos os outros vivíamos à sombra do meu marido e do irmão dele. Terisíare foi despojada de tudo pela guerra deles. Perdi meu pai, meu filho e meu reino. Tudo o que era bom e gentil que compunha minha vida eu perdi por causa dele.” Ela gesticulou ao redor da sala – o papel de parede descascando, os canos de vapor borbulhantes. A neve que ainda caía lá fora. “Eu não gosto da morte do meu marido. Já houve mortes suficientes. Mas estou feliz que ele se foi e não o perdoo pelo que ele fez. Não vou me lembrar dele como ele queria ser lembrado. Eu vou me lembrar pelo o que ele era.” A voz de Kayla era firme como ferro. Ela viu algo nos ombros caídos de Tawnos – uma hesitação, distinta do afundamento de seu espírito. “Tawnos?” Ela perguntou. “O que você não está me dizendo?”

Tawnos mordeu o lábio inferior rachado pelo vento. Lágrimas brotaram novamente, mas ele piscou para afastá-las. “Urza não está morto, senhora.”

A pulsação na têmpora de Kayla acelerou, e o aperto de sua mandíbula poderia ter quebrado uma pedra. Para Tawnos, que só conhecia Kayla como a brilhante e adorável princesa de Kroog, a força na mulher que estava sentada à sua frente era aterrorizante. Urza tinha arruinado o mundo, mas quem ele mais machucou foi Kayla bin-Kroog.

“O que?” A raiva na voz de Kayla foi afiada com a precisão de uma agulha.

“Ele não está morto,” Tawnos disse. “Ele se tornou… outra coisa.”

“Essa ‘outra coisa’ é um homem melhor?”

“Eu… eu não tenho certeza do que ele se tornou,” Tawnos admitiu, baixando o olhar. Lentamente, ele se levantou e começou a juntar seus papéis soltos, colocando-os de volta no rolo.

“O que você está fazendo?”

Tawnos parou. “Saindo, senhora.”

Kayla balançou a cabeça. “Não, Tawnos. Sente-se. Por favor.”

Tawnos sentou-se.

“Recuperamos o que pudemos das fábricas do meu marido após a explosão,” Kayla disse. “Máquinas, chassis, pedras – as coisas que ele usou para construir seus autômatos em grande número. Ninguém aqui sabe como usá-los, mas com a sua chegada, parece que isso mudou.” Kayla juntou seus pequenos itens e acompanhou Tawnos até a porta. “Amanhã, vou pedir a Myrel, meu capitão escoteiro, para levá-lo aos armazéns para que você possa começar.”

“Obrigado, Kayla,” Tawnos disse, parando na porta.

Os lábios de Kayla se contraíram, não oferecendo nem mesmo um fantasma de sorriso. “Um longo caminho, Tawnos,” ela disse. “Vá. Está frio.”

Tawnos saiu, seguindo a pajem na escuridão iluminada por velas, deixando Kayla sozinha mais uma vez.

A primavera chegou meses depois, e Penregon voltou a ser uma cidade viva. Os cumes irregulares das Montanhas Kher podiam ser vistos perfurando a sempre presente mortalha de névoa da cordilheira, seus chifres brancos com a neve do inverno. Descendo a encosta, uma nova vegetação estava entre os tocos de raízes que antes eram florestas antigas, abatidas durante a guerra para se tornar combustível e carvão. Córregos, inchados com o derretimento da neve, desciam pelas montanhas, derramando-se nos campos além de Penregon, onde enchiam as velhas trincheiras defensivas, criando novos lagos finos e regimentados. Aquelas velhas linhas de batalha, outrora um panorama infernal de pedra, metal e terra desnudada pelo fogo, eram agora oceanos de grama onde floresciam delicadas flores silvestres. Sob as flores, os incontáveis mortos jaziam desconhecidos, mas nunca esquecidos. Aves reuniam-se, empoleirando-se nas velhas e decadentes torres de comunicação que Urza ergueu, tantos esses anos atrás.

Perto da base de Khers e nas marchas ao sul de Penregon, feridas estéreis marcavam a terra onde as piores máquinas de guerra morreram. Grandes carcaças corroídas atoladas em poças de água escura, escorregadias com líquens horrivelmente mutantes que pingavam e nunca congelavam. Nenhum pássaro cantor fez suas casas de inverno dentro daqueles cadáveres mecânicos. Nenhuma besta bebia da água escorregadia de óleo. Um fedor erguia-se no ar ao redor deles, e os batedores de Penregon tiveram o cuidado de marcar um perímetro ao redor de qualquer resto que encontrassem em seu alcance.

Kayla caminhou ao longo do topo da nova muralha interior de Penregon com Tawnos ao seu lado, olhando por cima do parapeito para o trabalho que estava sendo feito ao longo desta parte das fortificações da cidade. Centenas de operários trabalharam para preencher as lacunas na velha muralha de pedra, partes inteiras haviam deslizado para o antigo fosso de Penregon quando a terra tremeu durante o cataclismo. A muralha, antes um poderoso testemunho da habilidade dos engenheiros de Penregon, desmoronou em minutos. Sua reconstrução era de baixa prioridade até que o inverno começou a diminuir. Esta primavera traria mais do que clima quente e flores: outro perigo ameaçava Penregon.

Um destacamento de batedores de longo alcance havia retornado à cidade nas primeiras horas da manhã. Kayla, esperando sua chegada, os encontrou na muralha para ouvir o relatório. Tawnos estava fechando o turno da tarde em sua fábrica e se apressou para atender a convocação dela. O pequeno grupo no topo da terraplenagem era uma coleção heterogênea: Kayla em calças e um casaco acolchoado contra o frio, Tawnos em seu avental de fundição e Capitãe Batedore Myrel em seu uniforme enlameado sob um poncho escuro. Myrel havia retornado do campo esta manhã e ainda usava uma couraça e uma espada embrulhada em tecido.

Arte de Nicholas Elias

“Quantos?” Kayla perguntou para a capitãe.

“Minha melhor suposição é dez mil,” Myrel disse. “A frente da marcha atingiu o sopé antes que a retaguarda tivesse levantado acampamento, mas a coluna era estreita, não mais do que cinco lado a lado.”

“E quantos guerreiros?”

“Não parecia haver distinção, senhora,” Myrel disse. “A maioria deles carregava alguma coisa: um porrete, uma lança, velhos quebra-armaduras e lanças antimecânicas da guerra. Cerca de duzentos ou trezentos cavaleiros montados.” Myrel deu de ombros. “Não é um exército profissional, mas havia muitos vestidos com armaduras. Vi velhas armaduras Fallaji, couraças korlisianas, placas argivianas, até alguns em malha yotiana. É como você pensou – eles são organizados, mas não regimentados.”

Kayla observou a construção abaixo. Operários e engenheiros trabalhavam ao lado de alguns dos primeiros modelos dos autômatos civis de Tawnos, arrastando blocos de pedra maciços, mas recuperáveis, do fosso inundado por meio de polias. Outras equipes transportaram blocos recuperados, madeira fresca e cestos de cascalho e terra para as brechas na parede, preenchendo as lacunas. Esse trabalho se estendia por toda a muralha interior de Penregon, por ordem de Kayla. Trabalho lento no ano passado, porém, com a adição dos novos autômatos de Tawnos, os reparos ganharam velocidade.

“Minhas equipes devem terminar a muralha até o final do mês,” Tawnos disse, como se estivesse ouvindo os pensamentos de Kayla.

“A cidade depende desse trabalho,” Kayla disse. “Reporte ao conselho o que você precisa para fazer isso. Capitãe Myrel,” Kayla disse, virando-se para capitãe batedore. “A marcha mostrou alguma cor?”

“Eles hastearam bandeiras de ambos os lados,” disse Myrel. “Embora o mais comum era uma bandeira preta simples. Eles também içaram restos de máquinas.”

“Restos?” perguntou Tawnos.

“Peças de autômatos,” Myrel disse, e fez uma careta. “Assim como as criações da Mulher Vermelha, carregadas em gaiolas ou amarradas com arame.”

“Transmograntes,” Tawnos disse. “O trabalho hediondo de Ashnod.”

Kayla conhecia o nome, embora apenas de passagem. Alguma artífice que trabalhou para Mishra durante a guerra – sua torturadora, quando ele foi capturado. Sua amante também, se os rumores fossem verdadeiros.

“Tawnos,” Kayla chamou a atenção do velho artífice. “Os autômatos – seus civis. Eles podem ser convertidos para a defesa de Penregon?”

Tawnos franziu a testa. “Você quer dizer, se eles podem lutar?”

“Sim.”

“Podem. Com algum tempo, eu conseguiria redirecionar os civis para manejar armas.” Ele hesitou. “Eu devo?”

“Ainda não,” Kayla disse. “Mas fique pronto.”

“Vou preparar meus artífices para a tarefa.”

“Capitãe?” Kayla disse a Myrel. “Cuide para que você e seus batedores descansem. Volte amanhã, quero olhos firmes nesta coluna e relatórios diários sobre o movimento deles. Precisamos saber se eles estão indo para Penregon ou outro lugar. Kayla olhou para as montanhas ao sul. Atrás daqueles cumes invernados, a marcha se reunia. Dentro de um mês, as passagens descongelariam, e certamente a marcha irregular chegaria às muralhas de Penregon logo depois.

Pela primeira vez em anos, Kayla sentiu mais do que a dor maçante do pesado fardo da reconstrução. O que ela sentiu foi mais agudo, mais amargo. A sensação a despertou da cama esta manhã bem antes do amanhecer, embora tivesse dormido apenas uma hora no máximo: medo.

Dois meses depois, a marcha cambaleante atravessou os campos lamacentos fora de Penregon, o som de sua passagem um estrondo baixo de botas, cavalos e longas carruagens. Em vez de poeira da estrada, gritos distantes se ergueram acima da coluna, o conflito de muitas canções e berros, todos competindo para ser a voz da marcha. Os gritos e brados de humanos e animais, vozes levantadas em oração ou angústia, fome ou protesto, alegria ou – para os ouvidos de Kayla – alguma expressão sem sentido. Era o som do delírio, do pandemônio, da guerra, do medo e da redenção. Isso trouxe à mente de Kayla a memória da manhã em que as forças de Mishra atacaram Kroog, de como a cidade de seu nascimento soava enquanto morria e se tornava outra coisa: uma ruína, um túmulo, um símbolo.

Dez mil almas tinha sido uma estimativa sóbria, Kayla percebeu; se ela tivesse avistado a marcha, teria chutado cem mil. O movimento de pessoas parecia interminável e avassalador, uma coluna vestida de preto serpenteava do sul para cruzar as pastagens ribeirinhas entre Penregon e as Khers. A marcha a lembrava das formigas migratórias, como elas formavam um fio ininterrupto de trabalhadores e guerreiros ao viajar da colmeia velha para a nova, a rainha escondida entre os plebeus. Era a mesma coisa com esta marcha? Quem era sua rainha e onde estavam seus guerreiros?

Kayla simpatizava com a incerteza de capitãe em chamar essa grande assembleia de exército ou migração. Com a ajuda da luneta de Myrel, Kayla viu velhos e crianças, massas de pessoas vestidas com armaduras abandonadas ou improvisadas, alguns vestindo apenas trapos – todos marchando juntos em uma massa pesada, agitada, organizados por impulso. Como as colunas de refugiados de sua juventude, esse rio fervilhante de humanidade era uma criatura, um ser cujo único impulso era ficar junto e continuar em movimento. Depois de um tempo, Kayla notou alguns padrões em sua observação da marcha: cavaleiros corriam ao lado do grande destacamento, transportando mensagens, distribuindo água e cobertores extras, carregando aqueles que estavam exaustos demais ou incapazes de continuar sozinhos de volta à longa comboio de carroças que seguiam a marcha. Esses cavaleiros mantinham o curso da grande coluna como cães de pastoreio guiariam o gado.

“Senhora,” Myrel chamou a atenção de Kayla. Elu apontou para um pequeno grupo de cavaleiros vestidos de preto que tinham se separado e começado a cavalgar para os portões de Penregon. Havia apenas cinco deles, todos armados e blindados. Um carregava uma lança alta – um antigo padrão antimecânico de guerra – com uma bandeira preta esvoaçando em sua ponta de aço cônica, um parafuso branco amarrado embaixo.

“Emissários,” Kayla disse. “Capitãe, traga um esquadrão de seus batedores. Vamos conhecer esses manifestantes.”

Descendo das muralhas remendadas e entrando nas ruas lotadas de Penregon na primavera, Kayla e sua escolta de batedores empurraram a multidão do meio-dia, todos ansiosos e correndo para os muros para assistir a distante procissão. As pessoas gritavam quando Kayla e seus guardas passavam, berrando perguntas e encorajamentos. Ser visto e reconhecido pela Dama de Penregon era o suficiente para a maioria; os ansiosos estendiam as mãos, animados pelo toque de Kayla. Ela tinha uma ideia do que havia se tornado para as pessoas que liderava – uma mártir viva, a esposa esquecida do assassino do mundo que, na sombra de sua morte, liderava os sobreviventes na construção de um santuário. Não é um lugar gentil, mas seguro. Secretamente, Kayla odiava como as pessoas pensavam dela: ela era mais do que uma esposa esquecida e enlutada. Mesmo assim, cada pessoa animada, cada rosto esperançoso ou amedrontado por onde passava a caminho dos portões, cravava nela um prego de ferro de determinação: ela garantiria que Penregon ficaria a salvo de qualquer adversidade que lhe fosse apresentada.

A abertura dos portões exigiu alguns gritos e empurrões, mas os batedores conseguiram conduzi-la até a frente, onde o pequeno portão para Penregon — uma porta recortada em uma porta levadiça de pedra e ferro muito maior — estava aberta. Ela se abaixou e caminhou para a estrada de paralelepípedos onde uma fila de guardas da cidade esperava. Capitãe Myrel correu para o lado de Kayla e gritou ordens para seus batedores fazerem o mesmo. Assim organizada, a comitiva de Kayla se separou para permitir que ela passasse. Os emissários vestidos de preto da marcha esperavam para encontrá-la em frente a um pedaço de terra estéril com poucos metros de largura.

Kayla torceu o nariz com o fedor deles, se recompôs depois que o reflexo passou. Os emissários não pareciam se importar. Eles se curvaram sobre os chifres de suas selas, olharam de soslaio para a cidade atrás dela e esperaram.

“Bem-vindos a Penregon,” Kayla disse, levantando a voz para atravessar o espaço. O som da marcha retumbando atrás dos emissários era um substrato indesejável, um novo pano de fundo que fez os pequenos cabelos da nuca de Kayla se arrepiarem.

“Todos são aceitos dentro de nossos muros com três condições. Entreguem suas armas, mantenham-se e contribuam para o bem-estar de Penregon,” Kayla disse. Ela procurou quem entre os emissários seria seu líder, mas não encontrou apoio nas marcas de posição ou ornamento, pois os homens usavam uma mistura eclética de sigilos, cores e armaduras. O antigo conhecimento de Kayla sobre protocolo, faixas, placas de casas – todos aqueles identificadores do mundo há muito desaparecido – serviu apenas para aumentar sua confusão. Ela escolheu o homem com o conjunto remendado de armadura de soldado, assumindo que ele era o líder por seu tamanho, equipamento e porte.

“Somos penitentes.” Um homem com um casaco com armadura de ferro falou primeiro. Ele era mais velho e enrugado por uma vida difícil. Ele tinha cabelos grisalhos finos, uma barba escura crescendo entre uma teia de aranha de cicatrizes superficiais de queimaduras. Kayla tinha visto essas feridas antes em alguns veteranos da guerra: aqueles que estiveram lá no final, quando as máquinas se chicotearam com terríveis armas de energia.

“Somos peregrinos honrados,” o homem continuou, falando para além de Kayla, dirigindo-se às pessoas e guardas dispostos ao longo das muralhas de Penregon. “Somos os vivos de Terisíare, que procuram limpar esta terra da sujeira das máquinas.” Ele olhou para as ameias, focando sobre a pedra escura, olhando cada pessoa ali uma por uma. “Nós libertamos Korlis e marchamos em uma ferrenha peregrinação. Nós nos aproximamos de vocês como parentes, com paz e um pedido: que todos os que têm ódio e medo das máquinas se juntem a nós em nossa cruzada.” A voz do homem era clara e firme, a voz de um líder, com um fio de navalha. Ele não estava falando com ela, mas com o povo de Penregon; Kayla podia ouvir sua crueldade. Ela esperava que seu povo também ouvisse. “Nós somos como vocês – sobreviventes das máquinas demoníacas e da destruição que seus criadores trouxeram sobre nós. Muitos de nós lutamos em lados opostos durante a guerra, mas após o fim, agora reconhecemos nossa humanidade compartilhada. Não tenham medo nós – juntem-se a nós.”

Um dos manifestantes da comitiva do líder, um homem carregando uma bandeira preta, esporeou seu cavalo para a frente. Os batedores de Kayla recuaram, levando as mãos às lâminas, preparando-se para sacar. O porta-bandeira girou seu cavalo em um pequeno círculo, erguendo a bandeira negra bem alto, uma saudação para Penregon. Os outros cavaleiros aplaudiram, três gritos para a glória de sua ordem.

Nenhum aplauso se seguiu da multidão curiosa ao longo da muralha. Em vez disso, o som distante da marcha preencheu o espaço. O vento crescente golpeou o tecido escuro, tão alto quanto um chicote estalando. Kayla franziu a testa e leu o estandarte, percebendo que era mais do que apenas um simples tecido preto. Bordados nele em um azul profundo, tão escuro que era difícil ver de longe, estavam dois círculos, lado a lado.

“Senhora Kayla,” o orador finalmente se dirigiu a Kayla. Por um momento, ela ficou surpresa por ele saber o nome dela – ela assumiu que eram bandidos, invasores, talvez até mesmo um dos senhores da guerra ocidentais que seus batedores lhe disseram que agora governavam o interior de Terisíare. “Eu sou Raddic de Kroog.” Sua voz não tinha sotaque para os ouvidos de Kayla, colocando-o de qualquer lugar de Yotia no sul até as pequenas fortalezas argivianas no extremo nordeste. “Você não me conhece, mas servi seu pai durante a segunda campanha de Suwwardi.” Raddi disse. Ele falou com uma elegância áspera, como a maioria dos oficiais comuns que Kayla conhecia. Seu pai, em sua melhor forma, tinha sido como eles — um homem de elegância rude, simples em sua compreensão de liderança e governo.

Não era de admirar, então, que esse homem parecesse familiar.

“Você é yotiano?” Kayla perguntou.

“Eu era, sim,” Raddic disse. “Eu vaguei para o sul das Khers depois do saque de Kroog. Encontrei um lar lá até que os korlisianos nos convocaram para a Campanha de Tomakul de 955.” Ele acenou para o homem de elmo de latão. “Encontrei o velho Arah nas trincheiras, mas não nos vimos novamente até depois do Cataclismo.” Raddic sorriu o quanto suas cicatrizes permitiram. “Depois de nossa derrota, passei o resto da guerra em um campo de trabalho Fallaji.”

“Que jornada,” Kayla disse secamente.

“Todos nós, vivos, passamos por uma assim,” Raddic concordou.

“E o que é isso?” Kayla perguntou, apontando para a coluna em marcha à distância. “Outro exército, reunindo velhos soldados? Ou outra coisa?”

Raddic olhou para cima, olhando para além dela e para as muralhas, como se estivesse constrangido sob o olhar das multidões que observavam sua pequena conversa.

“Eu falei a pura verdade, Senhora Kayla.” Raddic disse. “Somos guerreiros da humanidade. Cruzados contra a magia, os mortos-vivos e as máquinas demoníacas.” Raddic levou a mão esquerda ao coração, e Kayla viu que seus dedos haviam sido encurtados – provavelmente cortados em alguma batalha. “Começamos nossa cruzada com um expurgo das terras gixianas no extremo norte, esvaziando aquele templo miserável do óleo e máquinas,” Raddic disse. “Nós então marchamos pelo deserto onde ficava o antigo império Fallaji, e então pelas ruínas da bela Kroog. Korlis se seguiu; nós a libertamos de um cruel comandante de máquinas e recrutamos muitos para nossa causa. Agora estamos com destino à Torre de Ferro, onde o Lorde Protetor,” Raddic praticamente cuspiu o antigo título de Urza, “uma vez deu à luz seus demônios mecânicos ao mundo. Nós buscamos apenas comida, água e quaisquer outros suprimentos que você possa dispensar. Também peço que meus sacerdotes sejam acolhidos em suas ruas para pregar para o povo e chamar os fiéis às armas.”

“A Torre de Ferro?” Kayla perguntou, ignorando o pedido de Raddic.

“Você a conhece?” ele perguntou, sem uma sugestão de a pergunta suavizar suas palavras.

Se ela conhecia? Ele falava da antiga torre de Urza. “Fui levada para lá uma vez, anos atrás,” Kayla disse. “Mas eu não poderia lhe dizer o caminho. Está bem escondida nas montanhas em algum lugar a oeste ou sudoeste. Você saberá pela névoa espessa que a cerca.”

“Seu marido não era um homem de confiança,” Raddic disse.

Kayla se eriçou. “Urza não era um homem de confiança, não mesmo.”

“Por que não vem com a gente então?” Raddi disse. “Mostre-nos o caminho, empreste-nos seus soldados. Venha e limpe este mundo das máquinas.”

Kayla olhou além de Raddic em direção à marcha lenta à distância, aquela massa de humanidade. Todo mundo carregava alguma coisa — mochilas pesadas, armas, idosos fracos demais para andar ou crianças pequenas demais para andar sozinhas. A guerra tinha destruído tanta coisa. Aquelas pobres pessoas. Kayla não os temia mais; ela compreendeu. O ódio de Raddic pelas máquinas era o mesmo ódio que ela tinha, só que ele estava livre para seguir aquela veia ardente até o maldito fim. Kayla tinha uma cidade para liderar, um mundo para reconstruir – não um túmulo para preencher.

“Eu não posso,” Kayla disse, tirando os olhos da visão. “Eu sou a rainha regente de Penregon, não sou uma guerreira, nem uma célebre comandante. No entanto, estou disposta a negociar. Temos bens, comida e artesãos,” Kayla disse. “Seu povo é livre para buscar refúgio em nossa cidade, mas pedimos que nenhum soldado entre. Nenhuma arma pode cruzar nossos portões.”

Raddic curvou-se o melhor que pôde no cavalo. “Sua caridade será lembrada,” ele disse. “Graças seja dada a Tal por sua humanidade.”

Tal. Um antigo deus de Yotia, algo a ver com o sol. Kayla reconheceu o nome, mas não se lembrou de nenhum grande culto ou monumento à divindade; o fim do mundo sacudiu todos os tipos de coisas estranhas de seus cantos escondidos.

“Sua missão é a de todos nós,” Kayla disse. Educada, neutra. “Penregon está feliz em vê-los em nosso caminho.”

Raddic sorriu, entendendo bem sua linguagem diplomática. Ele estalou a língua em seu cavalo, virando-o. Seus guardas seguiram o exemplo. Sem olhar para trás, ele ergueu a mão encurtada para o céu, um gesto preguiçoso, meio aceno, meio saudação. Uma despedida, por enquanto.

Kayla, escoltada por sua própria comitiva, voltou pelos portões para a segurança de Penregon. As multidões na muralha expressavam um coro de excitação, curiosidade, bravura e medo. Era o som de uma decisão antes que seu desfecho fosse decidido. Kayla torcia que ela tivesse tomado a decisão correta, e que os próximos dias não provassem que sua caridade estava errada.

Arte de Dominik Mayer

A paz durou um dia e terminou em gritos. Kayla não os ouviu a princípio; ela estava ocupada em uma reunião com representantes das guildas de pescadores de Penregon, mediando enquanto os mestres gritavam acusações de corte de rede e ameaçavam de pular um no outro. Os peixes, ao contrário das indústrias de caça e agricultura terrestres, não foram brutalizados pelo cataclismo; pobres antes da guerra, após o seu fim, esses pescadores tornaram-se fantasticamente ricos. Com grande parte do mundo se esvaindo como uma vela se apagando, o ouro písceo passou a ser duramente disputado pelos marinheiros que trabalhavam longas horas para coletá-lo, no entanto nenhuma luta no estaleiro era tão sanguinária quanto essas discussões sobre contratos, direitos de pesca e madeira de frota. Kayla tinha acabado de erguer as mãos em frustração quando Tawnos entrou nas câmaras do conselho.

“Ah, graças aos deuses,” Kayla disse. Ela falou sem preocupação, já que os mestres da guilda certamente não podiam ouvi-la por causa dos gritos. “Nada tão doce quanto passar da miséria ao aborrecimento.” Kayla se levantou e correu até seu artífice, gesticulando para que ele deixasse as câmaras do conselho. “Eles vão ficar bem,” Kayla disse, tranquilizando-o quando ele olhou para os mestres de guilda discutindo. “Eles vão acabar com isso em algum momento, ou os guardas vão intervir antes.” Kayla pegou Tawnos pelo braço e caminhou com ele pelo corredor, guiando-o com a determinação de um comandante navegando em um estreito traiçoeiro. Ela parou ao lado de uma janela estreita com vista para o interior de Penregon, com vista para as Khers envoltas em névoa.

Havia uma rigidez em Tawnos, uma rigidez que transformou o alívio de Kayla em preocupação. Mesmo assim, ela manteve seu tom agradável — vozes carregadas em salões de pedra. “Agora, me diga,” Kayla disse. “O que é importante o suficiente para tirá-lo de sua fábrica?”

“Houve um incidente,” Tawnos disse. “Um grupo de talitas no mercado atacou um dos meus civis.”

Kayla xingou. “E o-”

“Não,” Tawnos disse. “Não. Nenhum dos modelos na cidade foi treinado ou equipado para lutar. Ele não revidou. Já a guarda da cidade.” Tawnos suspirou. Ele verificou o corredor para ver que eles estavam sozinhos. “Dois dos peregrinos estão mortos e uma dos nossos guardas foi ferido. Ela vai viver. O resto dos peregrinos perto da área foram presos.”

Kayla foi até a janela. Daquele ponto de vista, nada parecia diferente. A marcha diminuiu ou parou nos campos fora de Penregon, e finos fios cinzentos de fumaça de fogueira subiam, puxadas pelo vento. Fogueiras e fumaça industrial saíam das chaminés por toda Penregon. As pessoas se agitavam com seu trabalho. Era uma noite normal de primavera, embora as notícias que Tawnos trouxesse colorissem o panorama com um tom sinistro.

“Alguém da ordem deles testemunhou o ataque?”

“Havia dezenas de pessoas lá,” Tawnos disse. “Eu ficaria mais chocado se os manifestantes não soubessem disso.”

Kayla xingou novamente. “Os talitas atacaram os civis sem provocação?”

“Sim,” Tawnos disse. “Eles o chamaram de demônio. Eles conseguiram danificar uma das articulações do joelho, mas nada sério – pode ser consertado em uma tarde, no máximo.”

“Tudo bem,” Kayla disse. “Vamos tentar manter isso quieto. Eu-”

Um grito ecoou pela casa do governo. Uma porta se abriu, seguida pelo som de botas correndo pelo andar de baixo. Kayla olhou para Tawnos com preocupação, então para o final do corredor onde um canto escondia as escadas para o andar de baixo. Os dois se prepararam para quem viraria a esquina.

“Senhora! Senhora Kayla!”

Kayla expirou. Ela se inclinou um pouco contra a parede. Era apenas Myrel.

“Estou aqui,” Kayla respondeu. Ela estendeu a mão e deu um tapinha no ombro de Tawnos. “

“Recomponha-se,” ela disse, baixinho. Tawnos assentiu, relaxando os punhos.

Capitãe Myrel contornou o salão, sem fôlego, com dois de seus batedores. Seus olhos estavam brilhantes e as bochechas coradas — adrenalina, o frio: ação. “Senhora Kayla, precisamos colocá-la em segurança,” disse Myrel entre respirações. “Os manifestantes estão se organizando contra a cidade.”

“O que?” Kayla disse. Primeiro o civil, agora os manifestantes. Onde estava Jarsyl? Com um de seus tutores, com certeza. Ela precisaria mandar chamá-lo, mantê-lo por perto…

“Senhora,” Myrel interrompeu, chamando a atenção de Kayla. Eles apontaram para fora da janela, em direção às fogueiras distantes. “Raddic e uma dúzia de homens, todos armados – eles estão se aproximando dos portões, e meus batedores viram seus manifestantes se armando para a batalha.”

“Então eles sabem,” Kayla disse. “Devemos dizer a eles que os civis de Tawnos não são as mesmas máquinas-”

“Senhora, por favor,” disse Myrel. “Devemos ir para um andar mais alto. Meus batedores estão barricando a casa-”

“Envie-os para encontrar Jarsyl e traga-o até aqui.” Kayla disse. “Eu não vou me esconder, não ainda.”

A preocupação cruzou o rosto de Myrel. Kayla acenou para longe.

“Esta é minha cidade, capitãe. Não me esconderei quando Penregon for ameaçada.”

Myrel acenou para os dois batedores, que saudaram e saíram correndo para encontrar Jarsyl. Kayla observou-os ir, então voltou para a janela.

O sol poente brilhou quente atrás das Khers, mergulhando os campos fora de Penregon em um crepúsculo natural que escondia os manifestantes vestidos de preto. Enquanto Kayla observava, fogueiras pontilhavam a escuridão, brilhando como estrelas fracas na noite profunda.

Esta marcha superava em número os guerreiros de Penregon. Quantos eles tinham nas cores da cidade? Apenas uma centena de batedores, uma guarda municipal com menos de mil. Ela poderia ordenar que as tropas da cidade fossem chamadas, mas isso colocaria pessoas inexperientes na linha de batalha. A força de Penregon era seu isolamento, mas quando ela não estava isolada e quando uma força ameaçava a cidade-

Chega. Havia apenas uma opção para Kayla. Em sua juventude, ela fugiu de Kroog e nunca mais voltou. Até hoje, seu lar estava em ruínas. Kayla não fugiria de Penregon.

“Tawnos, arme os civis,” Kayla ordenou.

Tawnos balançou nos calcanhares – um pequeno movimento traindo sua surpresa. “Eu não sei se devemos fazer isso,” ele disse.

Os olhos de Kayla brilharam com o mesmo aço que animava Urza, frio e eficiente. Brilhante, implacável.

“Eu também vivi o fim do mundo, Tawnos,” Kayla disse. “Eu não estava na frente de batalha, mas sei o que estou pedindo para você fazer.” Kayla estendeu a mão e colocou a mão em seu braço, apertando-o. Em sua juventude, um gesto como esse teria disparado faíscas através dele. Agora, era só pressão. “Eu não sou Urza,” Kayla disse. “Estou pedindo que você faça isso para proteger Penregon e seu povo. Nada mais.”

Tawnos colocou a mão sobre a dela e apertou.

“Obrigada,” Kayla disse. Ela levantou a mão do braço de Tawnos e se virou para sua capitãe. “Myrel?”

“Já chamei os batedores,” Myrel disse. “E a guarda da cidade está em alerta desde ontem.”

“Reúna a milícia,” Kayla disse. “Esvazie os arsenais. Mande todos os que conseguirem levantar uma lança para as paredes.”

“Eles não serão muito em uma luta.”

“Eu sei,” Kayla disse. “Mas precisamos de números. Encontre aqueles com experiência na guerra e faça com que liderem os outros. Eles lutarão para defender sua cidade. Vá.” Kayla não se virou da janela enquanto Myrel corria para cumprir suas ordens; virar da janela significava o início de um terrível novo capítulo, um retorno às crueldades do velho mundo. Penregon era um lugar frágil, suas muralhas foram desnecessárias durante anos até hoje. Kayla esperava que elas se tornassem nada mais do que uma relíquia depois disso: um lembrete e um aviso do pior do velho mundo.

Kroog caiu de manhã. A memória veio a Kayla com uma dor indesejada e amarga. Um amanhecer nebuloso de primavera, o orvalho ainda fresco no vidro cinzento das magníficas torres da cidade. As ruas de tijolos vermelhos de Kroog ainda estavam úmidas da chuva da noite e apenas começando a fumegar no calor da manhã. Ela fugiu da cidade, grávida de seu filho. Tawnos também estava lá; ele garantiu que ela saísse a salvo da cidade, fugindo com ela enquanto seu povo morria.

Kayla se virou da janela. “É desanimador quão pouco o mundo mudou,” ela disse a Tawnos. “Achei que já teríamos aprendido nossa lição.”

Tawnos ergueu os olhos de seu diário. Ele estava fazendo anotações sobre os passos necessários para armar os civis — lembretes, ordens, ideias. Ele franziu a testa, franzindo a testa. “Com todo respeito,” ele disse, “acho que enquanto houver pessoas, o mundo nunca mudará de verdade.”

“Espero que você esteja errado,” Kayla disse. “Em quanto tempo você consegue deixar os civis prontos para defender Penregon?”

“Dê-me uma hora para informar meus artífices,” Tawnos disse. Sua voz vacilou de uma forma que Kayla nunca tinha ouvido. “Os civis são fáceis de adaptar – eu poderia ter dezenas prontos à noite e cem pela manhã.” Ele falava como um homem mastigando carne dura — perseverando no que deveria ser feito.

“Ótimo,” Kayla disse. “E então nós marchamos com eles para o mar depois disso, certo?”

Demorou um pouco, mas Tawnos percebeu que Kayla estava brincando com ele. Ele sorriu, e Kayla riu. Curto e afiado. Nervoso, mas genuíno. Com um aceno de despedida, Tawnos correu para o trabalho.

Arte de Francisco Miyara

“Você abriga máquinas demoníacas,” Raddic disse, gritando para Kayla enquanto ela emergia da porta levadiça. Debruçado sobre o chifre de sua sela, boca nunca completamente fechada, o sol se pondo sobre seu ombro, Raddic tinha uma silhueta animalesca. A postura dele lembrou a Kayla a forma lânguida de alguns gatos predadores se comportarem – relaxados e mortais. Sua voz era fria como a lâmina de uma adaga e, desta vez, dez cavaleiros de armadura preta o ladeavam.

“Quando nossos fiéis tentaram expulsar as máquinas, seus guardas os mataram,” Raddic quase assobiou entre os dentes. “Você não ouve seus filhos chorando? Ou o zumbido das pedras do inferno de sua cidade os abafa?”

Pedras do inferno? As luzes da rua, Kayla pensou. No inverno passado, Tawnos havia orientado seus artífices para instalar fragmentos de pedras de energia quebradas nas tochas públicas, garantindo que mesmo nas tempestades de inverno mais severas, Penregon permanecesse iluminada contra a escuridão. Nas partes silenciosas da cidade, podia-se ouvi-los zumbindo. Uma constatação arrepiante e crescente passou pelas costas de Kayla.

Kayla nunca tinha visto a bandeira negra de Tal hasteada na cidade, nem tinha ouvido nenhum pregador de rua exaltando as escrituras do deus sol, mas ela não podia estar em todos os lugares. “Há quanto tempo seu pessoal está dentro de Penregon?” Kayla perguntou.

“O suficiente para saber que esta cidade não pode ser salva,” Raddic disse. “Muitos fiéis chegaram aqui anos atrás, desesperados por abrigo, pensando que você, de todas as pessoas, conheceria o perigo das máquinas. Eles assistiram horrorizados a forma que você recebeu um dos mais próximos do Lorde Protetor em seu conselho, como seus artífices trabalharam para trazer mais máquinas à vida, e como eles treinam os demônios mecânicos de Penregon para obedecer seus comandos. Os fiéis enfrentaram provações amargas para nos dizer que Penregon permanece sem arrependimentos,” Raddic rosnou. “Você e seu povo são tolos. Você ergue novas muralhas e consome a terra da mesma maneira que os assassinos Urza e Mishra fizeram. Diga-me, Senhora Kayla – por que você se apega às mesmas coisas que mataram o velho mundo?”

“Nossos civis não são essas máquinas,” Kayla disse. “As obras de Urza e Mishra morreram junto com eles. Estamos construindo…”

“Novos demônios para um novo mundo,” Raddic disse, jogando seu protesto. Ele olhou além dela, na direção de Penregon. “Não podemos salvar esta cidade,” ele disse.

“Nós não precisamos da sua ajuda,” Kayla disse. “Nós oferecemos suprimentos para sua viagem à Torre como você pediu, ajuda a seu povo depois de sua longa jornada, mas agora você deve continuar. Penregon não precisa de vocês, nem queremos lutar. Deixe-nos.”

“Expulsem todos eles,” Raddic a ignorou. Ele falou para as muralhas da cidade, olhando para os guardas e a milícia nervosa lá. “Leve os demônios mecânicos para o mar,” ele disse. “Ajoelhe-se e implore o perdão de Tal. Marche até a Torre Branca e derrube-a, tijolo por tijolo, ou ao amanhecer, faremos o mesmo com Penregon.”

Myrel começou a desembainhar a espada, mas Kayla ergueu a mão. Myrel deslizou a espada de volta na bainha, olhando para Raddic.

“Povo de Penregon,” Raddic berrou. “Vocês ainda não são nossos inimigos. Vocês que cospem e amaldiçoam as máquinas demoníacas, vocês que rejeitam os líderes que não conseguem imaginar um mundo sem máquinas – vocês encontrarão companhia em nossos números.” Ele estendeu a mão para um de seus companheiros, que lhe passou uma lança. “A era da magia das máquinas está morta,” Raddic disse, erguendo a lança acima de sua cabeça. “Escolham: morram com ela ou vivam conosco!”

Myrel desembainhou a espada totalmente dessa vez, mas Raddic não atacou. Em vez disso, Raddic jogou a lança nos paralelepípedos entre ele e Kayla. Ela deslizou e saltou até parar perto de seus pés.

“Amanhecer,” Raddic disse. “Você decide, Senhora Kayla.” Ele virou seu cavalo e assobiou para seus cavaleiros. Juntos, eles esporearam seus cavalos em movimento, indo para o acampamento.

“Devo ordenar que meus arqueiros disparem?” Myrel perguntou.

Um vento frio sacudiu a estrada de paralelepípedos que levava a Penregon. Os campos que se estendiam diante da cidade, tão vibrantes no início da primavera, foram transformados em ruínas lamacentas. O rio escuro da marcha talita se espalhou por ele, suas fogueiras acesas. As Khers assomavam além, cinzentas e austeras.

Era o fim do mundo. O fim da era dos artífices e das máquinas; ao amanhecer, uma nova era surgiria em Terisíare.

“Guarde nossas flechas,” Kayla disse. “Vamos precisar delas amanhã.”

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