Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
MARCHA DAS MÁQUINAS: AS CONSEQUÊNCIAS | IRRECUPERÁVEL
No fundo do que antes era Emeria, Enclave Celeste, Nahiri removeu a corrupção de Phyrexia do seu Plano.
Teoricamente, era um processo simples: remover o metal que tinha sido enxertado nos arredores e deixar para trás apenas a rocha original. Na prática, era um pesadelo. A completação havia fundido pedra e metal em um nível molecular, e desprender os dois exigiu uma quantidade excruciante de trabalho paciente e intricado para cada parte de metal. Felizmente, Nahiri não tinha nada além de tempo.
Ela havia perdido a noção de quanto tempo ficou lá embaixo, na escuridão. No começo, a escuridão foi desorientadora, mas eventualmente seus outros sentidos se ajustaram para compensar, e agora Nahiri conhecia cada centímetro de seus arredores. Ela sabia de onde vinha o gotejamento da água pela pedra, o sibilar frio do vento pelos corredores, o cheiro sangrento da ferrugem. Sabia que estava sozinha.
Tudo teve início quando ela acordou e descobriu que a invasão havia acabado e que, de alguma forma, ainda estava viva, então arrancou todos os traços restantes de metal de seu corpo. O processo foi doloroso e sangrento. Descascar o metal havia levado menos de um dia, mas foram vários dias até que as feridas parassem de sangrar, e semanas antes que todas as crostas caíssem. Durante todo esse tempo, ela ficou tensa, esperando que alguém fosse procurá-la. Mas com o passar do tempo, Nahiri percebeu que todos deviam pensar que ela estava morta – ou seja, eles não se importavam se ela estava viva ou não.
Bom, assim estava bem para ela. Ela tinha trabalho a fazer.
No momento, ela enfrentava uma situação complicada: estava trabalhando por um específico corredor nos últimos dias, mas agora seu caminho estava bloqueado por uma parede de metal entrelaçado, fundido na rocha circundante. Os pedaços de metal eram extremamente afiados; ela havia se cortado explorando sua forma. Teria que desmontar tudo antes de poder avançar.
Envolvendo suas mãos em uma garra de metal, ela procurou pela junção onde a pedra e o metal se entrelaçavam, persuadindo a pedra a afrouxar sua aderência. Ela tentava não pensar em quanto esforço isso custou. Cada ato de litomancia agora lhe custava muito, antes ela precisava apenas pensar para moldar a pedra à sua vontade.
Por outro lado, ela já não era mais uma planinauta.
Não conseguia ter certeza do que havia acontecido. Tudo o que lembrava era de uma explosão de Halo que a atingiu momentos antes da queda do Enclave Celeste, quando ainda estava dentro dele. Talvez o Halo tenha sido o que permitiu que ela – talvez outros também – sobrevivesse depois que o controle da Nova Phyrexia se desfez. Talvez fosse algo relacionado ao fato de ela ter se fundido com o próprio Enclave Celeste. Ela não sabia ao certo. Tudo o que sabia era que estava viva, e vazia. O núcleo de seu poder, sua centelha, não fazia mais parte dela.
No começo, a dor de sua ausência foi tão grande que ela pensou que morreria, mas com o tempo, se acostumou com a dor vazia em sua alma. E aceitou que agora era fraca.
Assim que afrouxou suficientemente a aderência da rocha no metal, se preparou e puxou. O metal resistiu – e então se soltou tão abruptamente que Nahiri tropeçou e caiu sentada com força, e a garra parou com a ponta aberta logo abaixo de seu esterno, a pouca distância de perfurar sua pele.
Nahiri congelou. Memórias surgiram através dela: como era sentir o metal não apenas pressionando contra o seu coração, mas envolvendo-o, quando sua alma foi fundida com a glória da máquina. Como era pura e não contaminada a visão de perfeição deles, como Zendikar poderia ser glorioso através de sua salvação…
Com um arrepio ela afastou esses pensamentos. Eles pertenciam a uma entidade que não existia. Aquele era o fantasma de Phyrexia. Não era ela.
Não era ela.
A ponta da garra raspou levemente contra a sua pele enquanto ela se contorcia para sair de baixo dela. Uma vez livre, envolveu as mãos em torno daquilo, tendo o cuidado de evitar as bordas cortantes, e seguiu de volta pelo corredor, deixando a garra se arrastar atrás dela. O rangido do metal contra a pedra ecoou ao seu redor.
A passagem serpenteava em uma subida torta. Quando os ecos mudaram, ficando mais ocos, ela sabia que estava se aproximando de seu destino. Ela diminuiu a velocidade e avançou até que seus pés tocassem a beira de um penhasco. Se desse mais um passo, cairia no poço contendo sua obra-prima: um monte de metal phyrexiano, todas as peças de Phyrexia que ela havia passado os últimos dias, semanas, sabe-se lá quanto tempo, arrancando do Enclave Celeste.
Provavelmente agora havia o suficiente para rivalizar com a altura do próprio Portão Marítimo, e mal tinha arranhado a superfície do que o Enclave Celeste continha. Levaria meses para libertar tudo. Anos, talvez, mas não descansaria até ter vasculhado todos os vestígios do metal amaldiçoado deste lugar.
Eventualmente, ela teria que descobrir como destruí-lo. Mas por enquanto, se pudesse arrancar o frio e alienígena controle de Phyrexia de seu Plano, isso era o suficiente.
E depois disso?
Teria que lidar com isso mais tarde. Por enquanto, isso era tudo o que podia fazer. Teria que ser suficiente. Antes ela teria ficado com raiva. Teria ficado furiosa contra o Multiverso por tirar seu poder, por lhe dar esse destino. Mas agora, onde deveria haver raiva, ela sentia apenas o vazio e um cansaço sombrio para ver o trabalho concluído.
Ela jogou o pedaço de metal na escuridão e voltou para baixo da encosta.
Pequenas criaturas esquivas rastejavam pelo escuro: coisas duras e magras de ossos demais e carne de menos. Além de Nahiri, eram os únicos seres vivos naquele lugar. De vez em quando, capturava uma com um punho de pedra, esmagando-a e superaquecendo a rocha para cozinhá-la diretamente. O ato de comer era tedioso, mas necessário. Percebeu-se desejando o sabor da culinária kor. Não a cozinha dos últimos séculos – a comida pesada e direta de acampamento que as caravanas kor se reduziram – mas os gostos mais sutis de uma cultura que o Plano havia esquecido há muito tempo, quando ela ainda era apenas uma mortal. Comeria novamente quando terminasse, prometeu a si mesma, e não pensou em quanto tempo isso poderia levar.
A parede de metal desceu, apenas para revelar outra atrás dela, derrubou aquela também para encontrar mais outra. Então outra, e outra. Um vago senso de medo crescia nela a cada camada descascada. Este Enclave Celeste tinha sido o coração do motor destinado a converter Zendikar em si mesmo; as paredes foram colocadas deliberadamente para proteger algum componente central. Certamente não estavam ali para decoração; Phyrexia era nada se não eficiente. Indecisão e frivolidade eram fraquezas da carne. Não era nada como uma máquina, pura e reluzente, incorruptível, bela…
Nahiri agarrou a peça mais próxima e a arrancou com um ímpeto selvagem de litomancia que a deixou trêmula, sensação que ela abraçou com prazer. Concentre-se no aqui e agora. Não pense no que veio antes. Não pense no que você costumava ser.
Não pense no que você fez.
Por fim, a última parede caiu, e ela entrou na câmara onde havia se ligado ao Enclave Celeste.
Ela soube assim que pôs os pés dentro. A sala cantava para ela, rocha e metal unidos como o emaranhado onde Nahiri havia se fundido às próprias paredes. Nessa teia deliberada, ela podia ler a influência de Phyrexia, como havia tentado pegar a matéria deste Plano e virá-lo contra si mesmo. Porque era isso que Phyrexia fazia de melhor, não era? Corromper a essência de um Plano, pegar seu impulso para proteger, defender e distorcê-lo para servir a seus próprios fins…
Uma onda de tontura e náusea passou por ela, e Nahiri colocou uma mão na parede para se equilibrar. Mas, pela primeira vez, o toque do metal phyrexiano a confortou. Não importava o que este lugar tinha sido. Phyrexia se foi para sempre. Ainda assim, ela caminhou ao redor da sala, traçando uma mão sobre a parede para se tranquilizar que o metal estava, de fato, morto.
Então ela esfregou uma seção da parede e sentiu uma onda de choque de poder profundo no seu interior.
Puxou sua mão para trás por instinto. Seu primeiro impulso foi agarrar a rocha ao redor e forçá-la para dentro, esmagando o que quer que estivesse lá. Mas a sensação não havia sido desagradável. O que sentiu foi algo… familiar.
Cautelosamente, Nahiri colocou sua mão na parede novamente. Lá estava ela, uma pequena espiral de poder embutida em metal e pedra. Agora que estava concentrada, pensou que podia sentir as bordas. Não estava muito fundo dentro do metal.
Sua curiosidade batalhou contra o medo e venceu. Ela recuou para o corredor externo e moldou para si uma lâmina de pedra.
Ela cortou lentamente, canalizando calor para a borda da lâmina para derreter o metal. A última coisa que queria era danificar o objeto que estava tentando libertar, então se concentrou no ato, forçando-se a não pensar no que poderia ser…
Sua lâmina tocou o ar vazio, e o objeto caiu da parede em sua mão.
Ela estava segurando um pedaço de pedra do tamanho do seu punho. Ela passou as mãos sobre ele, sentindo suas curvas. Era um edro, se aquele edro tivesse crescido em fatias finíssimas de pedra camada por camada em torno de uma semente central, como uma ostra depositando camadas de pérola em torno de um grão de areia. Tudo parecia delicado, como se qualquer pressão errada pudesse esmagá-las. Quanto ao grão em seu centro…
Era sua centelha de planinauta.
A sensação era inconfundível. Agora que ela a segurava em suas mãos, podia sentir o fluxo de poder que ela continha, que havia sido seu por séculos. De repente, ela ficou agudamente ciente do vazio onde sua centelha costumava estar, aquele vazio que havia se esforçado tanto para ignorar.
Vazio, porque eu derramei tudo o que tinha para destruir minha casa. Eu me esgotei tentando salvá-la de si mesma, porque acreditei que estava fazendo o certo naquele momento.
Seu coração batia em seu peito como o golpe de um martelo em metal. Algo borbulhava dentro dela, algo que não pensava ser capaz de sentir novamente.
Esperança.
O peso do metal acima, abaixo e ao seu redor: de repente, era sufocante. E a escuridão. Quando foi a última vez que viu a luz do sol? Há quanto tempo não via sua casa, via Zendikar de verdade? Ela estendeu a mão, agarrou pedras em punhados grandes e, com um impulso de poder, arrancou.
Pedra se rompeu para cima. Metal gritou e descascou em afloramentos violentos. A rocha perfurou o teto da câmara e depois subiu e subiu ainda mais, até, muito acima, perfurar o teto abobadado do próprio Enclave Celeste, uma escadaria irregular que se estendia desde seus pés até o exterior. A luz do sol pingava na escuridão.
Nahiri sentou-se com força. Todo o seu corpo tremia de exaustão, teve que engolir rapidamente para evitar vomitar, mas estava feito. Ela tinha um caminho para sair.
Conforme seus olhos se ajustavam à luz, viu seu corpo pela primeira vez. Sabia que estava marcada, é claro; havia sentido as cicatrizes no escuro. Mas uma coisa era sentir, e outra era ver as linhas brancas e enrugadas que listravam sua pele: o padrão losangular dos Enclaves Celestes marcado em sua pele, onde a carne havia se fundido ao metal, arrancado e fundido novamente, uma e outra vez. Sobrepostas a essa precisão friamente geométrica estavam marcas mais novas e mais duras, onde ela mesma havia arranhado o nojento e belo toque do metal de seu corpo.
Ela passou o dedo ao longo de uma junção irregular que descia pelo lado externo de sua mão direita, desde a ponta de seu dedo médio até o cotovelo. Havia um núcleo de metal nas lâminas de rocha enxertadas em suas mãos, e logo depois que acordou, ela ainda não tinha descoberto como separar as duas, como conseguia fazia agora. Mesmo que conseguisse, ela não teria se importado. Tudo o que queria era se libertar do domínio de Phyrexia, não importava o quanto se ferisse ao fazê-lo. A carne sempre poderia se curar, afinal. Parecia uma pequena penitência a pagar por ter fracassado em Zendikar novamente.
Ela se levantou. Suas pernas ainda estavam um pouco trêmulas, mas, pelo menos, seu estômago não parecia mais querer subir pela garganta. O edro encaixou-se firmemente em sua palma, como se pertencesse lá, e ela supôs que, de certa forma, pertencia mesmo.
Nahiri começou a subir.
O caminho para cima era mais longo do que tinha previsto; ela não tinha percebido o quão fundo tinha ido. A luz aumentava gradativamente enquanto subia, até que seus olhos doeram com a claridade. Quando emergiu no casco da Enclave Celeste, seus olhos estavam fechados e ela sentindo a direção apenas pelo toque na rocha.
O contato do vento em seu rosto parecia tão estranho quanto o ar de um novo Plano. Por um momento, ela simplesmente ficou lá, tentando não se afastar do toque. Mesmo através da pele de suas pálpebras, seus olhos doíam. Levaria um tempo para se acostumar a enxergar novamente.
Mas essa era a única razão pela qual os mantinha tão firmemente fechados?
Olhe, covarde.
Ela abriu os olhos.
O mundo era uma mancha borrada de luz e cor. Então a luz diminuiu, e Zendikar se revelou diante dela.
Ela quase chorou ao ver a paisagem. Era pior do que qualquer devastação que o Turbilhão já havia causado, pior do que quando os Eldrazi haviam devorado Bala Ged. Tendões e metal se estendiam até onde a vista alcançava, distorcidos e rasgados com rios de óleo. Foi então que Nahiri viu com muita clareza a força bruta de Phyrexia em ação, a terraplanagem cega da terra nativa, ansiosa apenas por espalhar a completação o mais longe e rápido possível. A finalidade disso era quase inexplicável. Isso não era algo que mortais pudessem consertar; esse era um problema para os deuses.
E ela pensou que conseguiria desmontá-lo, uma peça insignificante de cada vez.
A amargura começou a se formar em seu estômago. Meu Deus! Ela realmente havia se convencido de que estava fazendo algo significativo lá no Enclave Celeste, recolhendo restos? Era como se estivesse tentando separar o mar de volta em seus rios componentes. Sua coleta inútil não era nada comparada ao que Phyrexia – não, ao que ela havia realizado.
Ao ver Zendikar, ela não podia mais negar: isso era culpa dela. Phyrexia a tinha usado como um martelo, mas ainda era a responsável por ter golpeado, por ter trazido o peso de Phyrexia para baixo em sua casa. Isso era culpa dela.
As cicatrizes em seus braços se contraíram enquanto cerrava os punhos. Bem, talvez ela tivesse sido parte do problema antes, mas estava cansada de se esconder como uma covarde. Agora ela ia consertar as coisas, retorná-las ao que eram antes. O que significava, em primeiro lugar, encontrar uma maneira de restaurar sua centelha.
À luz do dia, a delicadeza translúcida do edro parecia ainda mais impossível, as fatias em camadas de pedra eram como um papiro tridimensional que capturava a luz do sol e a fragmentava em um arco-íris brilhante. Isso deve ter sido uma barreira protetora de algum tipo, uma proteção instintiva que sua centelha havia desenvolvido para protegê-la enquanto era usada para alimentar o motor do Enclave Celeste. De alguma forma, ela precisava encontrar uma maneira de extraí-la e fundi-la novamente em si mesma. Ela deixaria este lugar e encontraria quaisquer aliados que ainda tivesse em Zendikar – Kesenya, talvez. Nahiri havia ajudado Kesenya a iniciar sua casa expedicionária, e essa era uma dívida que a outra mulher, com certeza, reconheceria, mesmo que seu relacionamento atual não fosse ideal. E Kesenya tinha conexões com casas expedicionárias em praticamente todos os continentes. Mesmo que ela não soubesse o que fazer, seria capaz de apontar Nahiri em uma direção promissora.
O plano se cristalizou em sua mente, afastando uma névoa escura que ela não tinha percebido antes. Um senso de propósito a preencheu. Era bom ter um objetivo novamente. Deveria ter deixado o Enclave Celeste há muito tempo.
Então ouviu antes de sentir, o deslocamento do ar como uma exalação forte. Uma brisa agitou seus cabelos. Ela girou, sabendo antes mesmo de ver o que estava acontecendo.
Um planinauta.
A ironia da situação não lhe escapou, que um planinauta viria caçá-la agora, neste momento. Nahiri havia feito muitos inimigos em suas viagens pelo Multiverso, e estava fraca. Se fosse Sorin que viesse procurá-la, ou Jace…
Mas a figura que apareceu na frente dela era maior do que esperava, com um rosto felino forte e pelos brancos cobrindo todo o corpo. Uma cicatriz corria pelo olho esquerdo.
“Olá, Nahiri,” Ajani disse.
Por um momento, Nahiri só conseguiu encarar, sentindo um senso inegável de alívio de que o planinauta que ela havia sentido não era um dos seus inimigos. Na verdade, Ajani era a última pessoa no Multiverso que ela teria esperado ver. Ela mal o conhecia. Quando o vira pela última vez, ele era o evangelista mais fiel de Elesh Norn, seu tenente mais favorecido. O leonino que estava diante dela agora não estava coberto com porcelana. Agora ele era apenas… ele mesmo. Carne. Intacto.
E ainda um planinauta.
Ela falou a primeira coisa que veio à mente. “O que você está fazendo aqui?” Saiu como um grunhido rouco e enferrujado. Tinha passado muito tempo desde que tinha falado.
“Não é óbvio? Eu vim procurar por você.” Seus olhos se moveram sobre o corpo dela. Nahiri encontrou o olhar dele firmemente, desafiando-o a dizer algo sobre sua aparência. “Eu pensei… Eu esperava te encontrar morta.”
Ela sorriu sem humor. “Desapontado?”
“Surpreso.” Seus bigodes se mexeram. “Os outros estão mortos.”
“Quem?”
“Os outros.” Quando não teve uma resposta, ele continuou: “Tamiyo. Lukka. Jace e Vraska também, eu suponho, exceto que ainda não encontraram seus corpos.”
Os outros planinautas que se tornaram os evangelistas de Elesh Norn. Uma lista daqueles que lideraram o ataque contra seus mundos de origem. As sílabas de seus nomes rasgaram seus ouvidos. “E Nissa?”
Por um longo tempo, Ajani não respondeu, o suficiente para que Nahiri pensasse que ele não iria fazê-lo. “Ela também sobreviveu,” ele disse por fim, “mas foi danificada. Eu não sei o que aconteceu; alguma parte do processo quando fomos purificados de Phyrexia, mas ela não pode mais transplanar. Eu posso, mas… custou a todos. Teferi, Kaya, Melira… tantos outros. Eles me salvaram. Eles me purificaram da contaminação de Phyrexia e me mantiveram intacto.” Um arrepio passou por ele. “Os outros… não foram tão sortudos quanto você e eu.”
Nahiri manteve a mão fechada em volta do edro, escondendo-o. Claramente ele ainda estava sentindo a centelha dela, mesmo que não estivesse mais com ela. Se ele quisesse pensar que ela ainda era uma planinauta, não via motivo para informá-lo do contrário. Nenhuma razão para revelar qualquer sinal de fraqueza, especialmente com aquela expressão estranha em seu rosto que a fazia parecer… culpada, ela diria. Mas culpada pelo quê? “Quem te enviou?”
“O quê?”
“Você não pode ter vindo por conta própria. Quem te pediu para me encontrar?”
“Ninguém.” Ele parecia surpreso. “Eu só queria ver o que havia acontecido com você.”
“Bem, se isso é tudo que você veio ver, pode ir embora. Estou bem.” Ela caminhou até a borda do casco do Enclave Celeste e olhou para baixo. Seu primeiro passo seria voltar ao nível do solo. Essa lateral era íngreme, mas ela poderia fazer buracos com as mãos para subir. Felizmente, o Enclave havia caído em uma superfície plana, então não precisaria lutar contra florestas ou matagais densos. Antes, jamais teria se importado, poderia simplesmente desejar ir aonde quisesse.
Em breve, ela prometeu a si mesma.
Sua nuca se arrepiou. Ela se virou para encontrar Ajani a encarando. “O quê?” ela respondeu com raiva.
“Você está?” ele perguntou.
“Eu estou o quê?”
“Você está bem mesmo?”
Seus olhos se apertaram. “O que isso quer dizer?”
Ajani não respondeu. Parte do alívio que Nahiri sentiu no começo desapareceu, sendo substituído por um desconforto. Algo não estava certo. Ninguém a procuraria a menos que tivesse um propósito, e em sua experiência, esses propósitos raramente eram benevolentes.
“Olha, estou bem. Então, se não se importa, vá embora e me deixe em paz. Estou ocupada agora.”
“Curando Zendikar, certo?”
Ela se irritou. “E se eu estiver?”
Outro silêncio. Nahiri percebeu que estava tensionando todo o seu corpo e se forçou a relaxar. Os bigodes de Ajani se moveram. “Eu tenho uma proposta para fazer.”
“Não estou interessada,” Nahiri disse imediatamente.
“Você não vai nem me ouvir?” As palavras ainda eram suaves, mas havia um rosnado nelas, um brilho em seus olhos. Raiva ou ameaça, Nahiri não sabia e não queria saber; o perigo era claro.
Ela cruzou os braços sobre o peito.
“Desde que as coisas terminaram, tenho viajado pelos Planos e visto a extensão da destruição que causamos. Tenho certeza de que não preciso dizer sobre os danos incalculáveis causados ao Multiverso. Alguém precisa se redimir pelo que fizemos. Consertar as coisas.” Ele respirou fundo. “Isso pode ser feito por você e por mim.”
Levou um momento para o significado de suas palavras fazerem sentido para Nahiri. “Você quer que eu… me junte a você? Seja sua parceira para consertar o Multiverso?” Um riso incrédulo escapou dela. “Você tem outros que ajudariam prontamente. Eles te salvaram, não foi? Vá pedir a eles. Tenho certeza de que você tem muitos amigos que adorariam fazer isso.” Ela não conseguiu evitar a amargura em sua voz. “Eu já disse que não estou interessada, então você pode ir salvar o resto do Multiverso. Aliás, obrigada por isso. Mas deixe Zendikar em paz. Esta é minha casa, não sua. Eu vou consertá-la sozinha, sem a sua… a sua intromissão!”
Ele balançou a cabeça irritado. “Isso não é apenas sobre o Multiverso. Também é sobre nós. Ninguém mais enfrentou o que nós enfrentamos. Somos os únicos que sabem o que é passar por… pelo que passamos.”
“Pelo que passamos,” Nahiri repetiu. “Você quer dizer como phyrexianos.” A palavra estava amarga em sua boca, mas ela se obrigou a dizê-la mesmo assim. Ajani recuou. “Nissa sabe.”
“Ela também não é mais uma planinauta.” A tensão de Nahiri sobre o edro aumentou. “Ela nunca viu as consequências do que fizemos. De todos no Multiverso, você e eu, Nahiri, somos os únicos que realmente conhecem os pecados que cometemos. É por isso que precisamos estar lá um para o outro. Precisamos nos ajudar, para o nosso próprio bem. E não podemos fazer isso sozinhos.”
Nahiri franziu a testa, sem se preocupar em esconder sua irritação. Ela sempre considerou Ajani um pouco mandão, assumindo que sabia o que era melhor para todos, mas isso já era demais. “Eu nunca pedi sua ajuda,” ela retrucou, “e não serei um bálsamo para a sua culpa. Você terá que aprender a conviver com isso.”
As orelhas dele se achataram contra o crânio. “Você acha que estou aqui por acaso?” rosnou. “Isso deve ser feito. Nós trouxemos o pecado até aqui; temos que ser os que vão consertar isso. Custe o que custar.” E quando ela não respondeu, ele continuou, a voz mais suave, mas agora instável: “Não te assombra o que fizemos? Lembro-me de tudo como… como um phyrexiano.” Parecia lhe custar dizer aquela palavra. “Cada ato malvado, cada memória. Está lá, intacto. É assim com você também?”
De repente, ela se viu ajoelhada sobre o pescoço de um elemental do Enclave, ungindo-o – não, afogando-o – em óleo. Como ela havia abençoado – amaldiçoado – corrompido – tudo o que tocava, levando Phyrexia em seu rastro em uma orla de óleo brilhante. Como acreditou com todo o coração que estava salvando seu Plano de algo pior. Um gosto amargo e metálico encheu sua boca. Furiosa, ela afastou essa memória. “Já disse para me deixar em paz, o que você não entendeu? Por que você ainda está aqui?”
“Porque quero te ajudar,” Ajani rosnou. “Quantas vezes tenho que repetir?”
Nahiri olhou com raiva, mas, mesmo assim, uma consciência fria e perturbadora a preencheu.
Ajani era um planinauta e ainda estava no controle total de seus poderes. Vir até aqui, apenas porque haviam servido juntos sob o controle de Elesh Norn, era ridículo. Ninguém em sã consciência gostaria de relembrar aquele tempo.
E se ele estivesse aqui para matá-la?
Se estivesse, então tudo faria sentido. Sua presença aqui. A maneira como ele continuava a pressioná-la para lembrar-se de seu tempo como phyrexiana – ele poderia estar tentando desestabilizá-la emocionalmente, tornando mais fácil para ele surpreendê-la com um ataque. Ajani havia sido o estrategista de Elesh Norn, o mais implacável e leal de seus evangelistas. Phyrexia mudou sua lealdade, mas não o cerne do que eles eram. Aquela determinação obstinada, aquela capacidade de ser implacável, tinham que ter vindo do próprio Ajani.
Ele havia vindo para Zendikar procurando por ela especificamente. Queria descobrir se ainda estava viva. Ele poderia muito bem ter decidido procurar todos os antigos completados e eliminá-los, para limpar o Plano da contaminação de Phyrexia. Custe o que custar, ele havia dito. Ele estava certo sobre uma coisa: eles haviam causado muitos danos. Pelo que ela sabia de Ajani, ele não era do tipo que deixava tais erros passarem se houvesse algo que pudesse fazer a respeito.
Era algo que ela mesma teria feito, se pudesse.
Lukka, ela pensou abruptamente. Tamiyo. Vraska. Ele não disse como eles haviam morrido.
Ele não havia dito quem os matou.
Tão sutilmente quanto pôde, ela estendeu seu poder, trazendo todo o casco do Enclave Celeste ao seu redor. Ele havia cometido um erro, dando-lhe um aviso prévio. Se estava planejando matá-la, pelo menos ela estaria pronta para isso. Podia não ser uma adversária para ele, mas poderia pelo menos atrasá-lo tempo suficiente para – esperançosamente – escapar.
Se ele percebeu que ela havia compreendido sua verdadeira motivação, não deu nenhum sinal disso. Agora ele estava andando de um lado para o outro, em movimentos curtos e rápidos, sua cauda balançando de um lado para o outro. “Nós precisamos um do outro, Nahiri, quer você admita ou não. Eu sei como é estar onde você está agora. Quem mais pode dizer isso? Quem mais será capaz de compreender verdadeiramente a escuridão e a autodepreciação do que você fez? Quem mais vai entender?” Ele parou abruptamente e voltou-se para ela novamente. Uma nota de súplica entrou em sua voz. “Deixe-me ajudar você a se curar – e ajudar a me curar também.”
Uma onda de descrença passou por Nahiri. Curar? Curar? Com seu Plano destruído, sua centelha arrancada, e seu corpo refeito de formas que contariam a história das garras de Phyrexia sobre ela até o fim dos tempos? Enquanto ele estava ali, parecendo ileso pelo sofrimento, parecendo inteiro? Mas é claro! Ele tinha amigos para tirá-lo da confusão, cuidar dele, enquanto ela…ela só tinha a si mesma.
“Não se atreva a me dizer o que eu preciso fazer, seu gato maldito,” Nahiri sibilou. “Você não tem ideia do que eu passei. Você não sabe o que fizeram comigo. Você não sabe quais pecados eu cometi.”
“Então fale comigo. Eu quero te ajudar.”
“Não!” Nahiri cuspiu. “Quem é você para vir aqui e me dar sermão sobre o que eu deveria ou não fazer? O que te dá o direito? Você e seus amigos que me colocaram nesse estado” ela passou uma mão sobre seu corpo “em primeiro lugar. Se você quer alguém para conversar sobre tudo isso, vá encontrar Nissa. Ou Chandra, ela é sua amiga, não é? Por que você não está chorando no ombro dela?”
Outro recuo, este mais agudo. Um rosnado perigoso subiu na garganta de Ajani.
Nahiri sabia que deveria ter parado ali, mas um impulso de imprudência tomou conta dela. As bordas do edro furavam a palma da sua mão, a dor era de uma clareza aguda e concentrada. “Eu só me envolvi nessa bagunça por causa da sua fraqueza. Você acha que eles teriam que recorrer a alguém como eu se o grande Ajani Juba D’Ouro não tivesse caído? Se não tivesse ficado ao lado de Elesh Norn e dito exatamente como vencê-los? Você massacrou os deuses de Theros. Você assassinou Jaya Ballard. E agora você quer ficar aqui me dizendo como devo expiar meus pecados?”
Um olhar de fúria tomou conta do rosto de Ajani, e um rosnado pleno de raiva o rasgou, um som angustiado mais parecido com um grito animal do que qualquer outra coisa. Suas garras foram expostas, e Nahiri não precisou imaginar a expressão de luto assassino no rosto dele.
Ela puxou a pedra ao seu redor, lançando-a entre os dois. Ela só queria formar uma parede, algo para atrasá-lo enquanto escalava o casco do Enclave Celeste, mas então a rocha cedeu sob seus pés e ela percebeu que havia superestimado a força que precisava. Teve apenas o espaço de uma respiração para perceber o erro que cometeu e, em seguida, a cúpula do Enclave desabou sob seus pés.
A última coisa que viu foram os olhos assustados de Ajani se arregalando enquanto se lançava na direção dela, uma pata estendida, a boca aberta para gritar o seu nome.
Ela caiu.
Uma mancha de luz irregular voava distante acima: um buraco no telhado do Enclave Celeste, um rasgo no tecido do Plano. No início, emergindo da inconsciência, Nahiri só conseguia olhar fixamente. O buraco estava tão distante que não fazia sentido. Certamente deveria estar morta depois de ter caído tão alto. E ainda assim, aqui estava ela, ainda viva de alguma forma, por pura sorte e nada mais.
Ela tentou se sentar e quase gritou quando o ombro ardeu de dor. Ela colocou a mão no ombro e tocou um pedaço de metal, uma garra que tinha atravessado suas costas e saído pelo outro lado. Metal phyrexiano. Ela tinha caído no buraco que havia criado.
Quase não conseguiu alcançar e agarrar o metal. A dor quando o puxou a fez gritar. Mas então ele saiu, e ela ficou lá, o ombro latejando e o nariz cheio do cheiro de sangue. Ela conseguiria passar por aquilo. A dor era um estado temporário. A carne sempre poderia se curar. Quando fosse uma planinauta novamente, isso não seria nada mais do que uma lembrança distante.
Suas mãos estavam vazias. Onde estava o edro?
Nahiri se sentou de repente, olhos já se movendo pela pilha de pedras. Ela estava segurando o edro quando caiu, o que significava que ele também deveria ter caído… sim, lá estava ele, aninhado em uma curva de metal pontiagudo, a meio caminho. Ela rastejou na direção dele, as bordas de metal cortando suas mãos e joelhos.
Assim que o pegou, porém, soube que algo estava errado. Os pedaços de pedra fina e frágil que se projetavam em torno do núcleo estavam rachados, e até mesmo os que ainda estavam intactos pareciam opacos e ásperos. Ele deve ter se quebrado na queda. Ela não conseguia sentir sua centelha.
Por um momento, tudo o que Nahiri pôde fazer foi sentar-se e observar. Qualquer essência de si mesma que havia sido infundida na pedra já não estava lá. Sua última esperança de recuperar seu poder – de se tornar uma planinauta novamente – tinha acabado. Tudo o que sobrou para consertar Zendikar era ela mesma: impotente.
Ela teria rido, se não achasse que isso iria a despedaçaria.
Ela deixou o edro cair de sua mão. Ele rolou para baixo do lado da pilha de pedras, e ela não se incomodou em ver em que direção ele caiu.
Quando finalmente emergiu de volta ao topo do Enclave, a dor em seu ombro se transformou em uma pulsação insistente. Teve que andar com cuidado; toda a cúpula da Enclave parecia frágil, e ela estava tão exausta e meio cega de dor que não teria sido capaz de reforçar nem mesmo um único azulejo. Ajani não estava em lugar algum.
Nahiri estava ciente de uma emoção crescente dentro dela, algo profundo, quente e familiar. Havia luto, aquela dor lenta e longa por seu Plano que havia sofrido tanto e sido quebrado tantas vezes. Mas, por baixo disso, havia algo ainda mais quente e mais familiar.
Raiva.
Ela conseguia ver tudo com clareza agora. A verdadeira ameaça, o verdadeiro problema, não era ela. Nem mesmo era Phyrexia. Eram os planinautas. Era isso que os planinautas faziam. Eles iam para um novo Plano, causavam estragos e depois partiam sem pensar no dano que causaram. Assim como Ajani tinha vindo aqui, procurando-a por seus próprios interesses egoístas, destruiu sua última chance de curar verdadeiramente Zendikar e depois fugiu, deixando-a lidar com as consequências de suas ações.
Ela devia saber disso. Ela já fora um deles.
Nahiri cerrou os punhos, sentindo as unhas penetrarem em suas mãos. A fúria era prazerosa, o calor dela era reconfortante e familiar. Ela conhecia a raiva. Ela poderia usá-la como combustível para futuras obras.
E ela sabia o que precisava fazer em seguida.
Se não fossem os planinautas, Phyrexia não teria sido capaz de alcançar o Multiverso, e Zendikar não teria sido atormentada como foi. Sorin e Ugin nunca teriam conseguido aprisionar os Eldrazi em sua terra, há milhares de anos, e despertar o Turbilhão. Enquanto pessoas como eles existissem, sua casa estaria sempre sob ameaça.
Zendikar sempre conseguiu se recuperar dos estragos provocados. Mas até os Planos ficam cansados, e mais cedo ou mais tarde, ele encontraria algo – ou alguém – que destruiria seu núcleo de forma irreparável.
Não se ela pudesse evitar.
Estava cansada de se esconder no escuro. Podia não ter o poder que tinha antes, mas isso não significa que estava indefesa. Ainda havia coisas que podia fazer. Ainda havia maneiras, talvez, de selar Zendikar de forças externas que lhe fariam mal.
Nahiri olhou para os destroços de seu Plano, sua linda casa, agora devastada e quebrada. Ela protegeria aquilo até seu último suspiro. Afinal, ainda era a guardiã de Zendikar. Ela sempre seria a guardiã de Zendikar.
“Nunca mais,” ela respirou. “Chega de dor. Chega de sofrimento.” Sua voz endureceu com uma convicção furiosa. “Custe o que custar, eu juro. Nenhum planinauta colocará os pés em Zendikar novamente.”
Traduzido por Rissa Rodrigues
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