Mtg Lore

Compêndio da Lore de Magic the Gathering

UM JARDIM DE CARNE

“Aqui, na Ortodoxia das Máquinas, há perfeição. Aqui, há bênção.”

Ao dizer isso, sua voz sintetizada ecoando no pátio da Basílica da Equidade, Elesh Norn, regente phyrexiana e Mãe das Máquinas, sentiu a luz daquela verdade profundamente dentro de seu corpo sagrado e mecanizado. A Ortodoxia das Máquinas era o único caminho para a unificação final, um caminho tão puro, infalível e inegável quanto seu próprio óleo brilhante.

Olhando de seu tablado para os phyrexianos agrupados, sua armadura brilhando na luz esbranquiçada, Norn nunca teve tanta certeza disso. Aqui estavam os símbolos do poder que ela havia promovido: a Basílica da Equidade, suas torres, suas espirais de metal como porcelana, grandes catedrais arqueadas em direção ao céu, sinuosas, delicadas e arejadas. Estandartes vermelhos tremulavam nas pontes e torres, austeros contra as lajes e estruturas brilhantes do pátio.

Os fiéis phyrexianos, seus rostos mecanicamente alterados voltados para ela, suas consciências entrelaçadas com a dela, estavam ansiosos para que ela falasse. Eles eram seu povo, crescidos em casulos de nascimento. Eram seus filhos adotivos, capturados de exércitos inimigos, criaturas outrora pobres e lastimáveis que viveram tanto tempo cobertas pela pele vil e inalterada, agora idealizadas com partes mecânicas. O ar cheirava a seus novos corpos. Metálicos. Afiados. Limpos. O distante canto das orações phyrexianas, centenas de vozes sincronizadas, fluía em torno de tudo.

Devido Respeito | Arte de James Ryman

Como alguém poderia negar a beleza disso? A retidão? A verdade absoluta?

E, no entanto, a mirraniana que ela segurava ainda lutava. Era um esforço inútil. O alto do cabelo escuro e emaranhado da mulher mal chegava na altura do ombro de Norn. A carne embaixo de seus dedos longos e em garras era lamentavelmente fraca, e ela precisou apenas reforçar seu aperto para dominá-la. Ela gritou, seus braços e pernas amarrados, endurecendo-se assim que sangue começou a brotar da ferida que Norn havia feito.

Humanos eram coisas tão imperfeitas e frágeis.

Norn havia considerado deixar os sacerdotes e implantadores do tonel começarem as alterações desta mirraniana enquanto se dirigia à assembleia. Ela não tinha dúvidas de que eles fariam um trabalho admirável, mas a Ortodoxia das Máquinas estava crescendo e se expandindo rapidamente.

Qual a melhor forma de ensinar seus filhos, se não pelo exemplo?

“Agora é a hora da unificação.” Norn levantou a voz, fria e suave como a brisa que soprava pelos jardins da Basílica. “Vejam esta criatura imperfeita. Até ela, uma abominação orgânica, é digna da misericórdia da Ortodoxia. Até ela pode ser abençoada.”

Norn empurrou a mirraniana em direção à beirada do tablado. Ela cambaleou em seu aperto, ofegando e suplicando, uma performance vergonhosa e agitada. Alguma coisa nela, o cabelo escuro, o ângulo dos olhos, o quadrado da mandíbula, fazia cócegas nas memórias de Norn. Ela já tinha encontrado esta humana antes? Improvável. Ela certamente teria transformado a criatura lamentável se o tivesse feito.

Era quase desconhecido o fato de alguém ter escapado da Ortodoxia das Máquinas.

Norn apertou sua mão. “Em breve, esta humana miserável será libertada do fardo do medo. Nós a esfolaremos. Retiraremos a carne que a prende a este corpo fraco. Então, ela também se unirá a nós em total unificação com nosso propósito e vontade divinos.”

Houve uma mudança de som, um estrondo grave que ela nunca tinha ouvido antes, vindo de todos ao seu redor. O que poderia ser isso senão o poder da fé phyrexiana, suas vozes sintéticas se aprofundando em oração? O som ressoou quando Norn levantou a mão livre, curvou o dedo comprido e em forma de garra e perfurou o próprio pulso.

Por um momento, o céu pálido pareceu escurecer, como se estivesse nublado por fumaça, mas a atenção de Norn estava fixa no óleo brilhante que fluía de seu pulso, seu próprio corpo, a fonte mais pura possível. A multidão balançou para a frente como se fosse apenas um, seus olhos brilhando enquanto observavam o óleo fluir do ferimento para a cabeça e os ombros trêmulos da mirraniana. Ele escorreu por seu cabelo, cobrindo sua nuca. Ela se debateu quando ele penetrou na ferida e gritou, o som estridente e orgânico. Irritante. Logo essas cordas vocais seriam substituídas e calibradas imaculadamente e sua voz se juntaria à dos outros em reverência.

Ela engasgou e cuspiu quando o óleo brilhante a sufocou, a preencheu, seu corpo se contorcendo quando o óleo começou a escorrer de sua boca e dos cantos de seus olhos.

Ao redor de Norn, o estrondo ficou mais alto.

Ela segurou a mirraniana pela nuca para todos verem. “Eis a perfeição.”

Mas sob seu controle, a mirraniana estremeceu, um movimento orgânico que borbulhou do centro de seu corpo em ondas repentinas e irregulares. Não havia nada de mecânico naquilo, nenhum ritmo determinado pela sagrada alteração. Em vez disso, a carne sob a mão de Norn inchou. Ela mexia e se contorcia como se as vértebras ósseas embaixo de sua mão estivessem tentando empurrá-la para longe.

O corpo da mirraniana arfou, uma convulsão tão violenta que Norn quase a deixou cair, e um cordão polpudo de material orgânico, uma raiz de madeira fibrosa, sinuosa e estranha, irrompeu da barriga da humana. Sangue, anormalmente grosso e sujo, escorria no tablado. Ele se acumulou sob os pés de Norn, uma abominação distorcida do seu próprio óleo brilhante, aumentando mais ainda à medida que novas raízes se projetavam da boca aberta da humana, arrancando os dentes e afastando a língua de lado, rompendo suas órbitas oculares e se contorcendo no ar.

Elesh Norn ficou tão perplexa que levou um momento para reagir. Com um crepitar e o clarão de luz branca, ela transformou um pedaço de sua armadura de porcelana em uma lâmina estreita e cortou a garganta da mirraniana com um único golpe. Seu corpo sem vida caiu aos pés de Norn, uma pilha de raízes sobrenaturais, sangue e vísceras.

Não havia nenhum sinal de transformação ou maquinaria. Havia apenas corrupção sobrenatural.

Isso nunca deveria ter acontecido.

Abaixo dela, os cânticos dos phyrexianos vacilaram, embora aquele estrondo grave permanecesse, rolando baixo em meio à confusão.

Norn se recompôs, ficando de pé enquanto reabsorvia sua lâmina de porcelana. “Testemunhem este exemplo e tenha pena dela,” ela disse, sua voz calma, embora sua mente estivesse tropeçando, passando por todas as probabilidades, todas as explicações possíveis para o que acabara de acontecer. “Ela era um receptáculo tão corrupto que nem mesmo nosso óleo brilhante poderia salvá-la. Aqui está a prova de que devemos espalhar nossa doutrina rapidamente, para que todos possam ser salvos.”

Mas mesmo enquanto dizia isso, Norn teve que lutar para se recompor.

Nada do que tinha acabado de acontecer fazia sentido.

O óleo brilhante nunca deveria ter falhado.

A luz pálida da Basílica da Equidade estava brilhando sobre suas cúpulas e pináculos, tornando-os um branco prateado frio, seus estandartes estavam preto escuro, quando Elesh Norn voltou ao pátio.

Ela não se deteve depois do incidente com a mirraniana. Ela só ficou tempo suficiente para ordenar que o corpo inchado com suas raízes carnudas fosse removido, para ser dissecado e descartado. Norn tinha caminhado graciosamente daquele tablado para demonstrar que ela, de fato, ainda estava no controle. Ela se movimentou com propósito e facilidade de volta à Basílica, como se tivesse antecipado o fracasso de sua demonstração, a erupção daquelas raízes do corpo trêmulo daquela humana. Mas ela nunca tinha visto uma coisa daquelas.

Mesmo quando administrado por um phyrexiano sem seu considerável poder, os efeitos do óleo brilhante eram previsíveis. Apagava coisas inúteis — memória, apegos, desejos — e reorganizava mentes caóticas e orgânicas em padrões perfeitos. Enquanto o óleo frequentemente vazava dos olhos, nariz e outros orifícios antes que os implantadores e sacerdotes do tonel fizessem seu trabalho substituindo a matéria orgânica por máquinas, o óleo em si nunca induzia convulsões. Certamente nunca engrossou o sangue ou causou a ruptura do corpo.

O óleo era o mais sagrado dos elementos. Sua graça era óbvia.

Então, o que exatamente deu errado?

Nenhum humano jamais tinha sido poderoso o suficiente para resistir ao óleo brilhante, apesar do que Norn havia dito para os que estavam reunidos.

Elesh Norn atravessou o pátio, o zumbido distante das orações phyrexianas era o único som que acompanhava seus passos calculados. Ela correu um longo dedo sobre a borda do tablado. Ela pensou em subir os degraus, revisitar o local onde a mirraniana havia caído e tentar determinar o que poderia ter causado o rompimento, quando notou uma pequena mancha nas lajes.

Elesh Norn parou.

Ali, onde o sangue da mirraniana escorrera sobre o tablado e para o pátio, havia uma pequena erva daninha, brotando por uma rachadura nas lajes. Seu talo era retorcido, uma mistura malhada de verde e marrom. Era totalmente orgânico. Horrível. Ofensivo.

Elesh Norn se abaixou para arrancá-la, para livrar a pedra perfeita da erva daninha, mas ela era escorregadia, cedendo ao seu toque como a carne macia do pescoço da mirraniana. Norn fez uma careta. O que quer que estivesse acontecendo, qualquer que fosse essa anormalidade que havia se infiltrado na Ortodoxia das Máquinas, não seria tolerada. Ela tinha trabalhado muito duro para cultivar este lugar, para assegurar o avanço da causa phyrexiana para vê-la suja, ainda que só um pouco.

Norn torceu o pulso, com a intenção de arrancar e esmagar a erva em um movimento rápido, mas ela resistiu como se estivesse agarrada à parte de baixo das pedras.

“Heresia,” Norn respirou e puxou a erva violentamente para cima. Ela se soltou, muito maior do que o previsto, a laje se rompeu com a força do movimento. Mas nenhuma raiz estava pendurada na pequena intrusa. Em seu lugar, um antebraço humano balançava, desproporcionalmente grande, meio apodrecido, o osso balançando como o badalo de um sino rachado na lama mexida. Seus dedos flácidos estavam bem abertos como se ainda estivessem tentando alcançar o solo de onde ela o arrancou.

“Abominação.” Norn levantou a coisa ofensiva para estudá-la, com a cabeça inclinada.

Isso era o resultado do sangue contaminado da mirraniana fluindo para dentro das lajes?

Não fazia sentido.

Elesh Norn, Cenobita-Mor | Arte de Igor Kieryluk

Norn jogou a erva com nojo. Ela precisava descobrir o significado dessa heresia, acabar com a verdadeira causa antes que ela pudesse criar raízes novamente. Ela estava prestes a ordenar aos sacerdotes que se desfizessem dela quando viu outra planta estranha em seu pé. E outra mais adiante no caminho. E lá, outra.

Uma tensão desconhecida se enrolou no fundo da barriga de Elesh Norn.

Norn atravessou o pátio, arrancando outra erva do mármore. Eram os restos de um pulmão humano, uma protuberância flácida e sem raízes, o lóbulo superior enrolado no que deveria ter sido o caule da planta. Ela o esmagou em sua mão. Não poderia ter vindo diretamente do corpo da mirraniana. Os sacerdotes do tonel haviam dissecado seu cadáver e não encontraram nada de anormal, exceto aquelas raízes, e nenhuma razão para elas terem brotado do corpo humano, pra começo de conversa.

O aperto em seu estômago aumentou.

Uma após a outra, Norn arrancou as abominações do chão. Ela desenterrou uma coxa grossa e desmembrada, tendões se desfazendo entre seus longos dedos enquanto ela a dilacerava. Um coração, as artérias se soltando dele. Um cordão protuberante de intestinos. Um único rim. Uma orelha. Uma dúzia de dentes impossivelmente unidos como pérolas irregulares. De novo e mais uma vez, ela os puxou para cima, cada vez mais rápido, determinada a purgar a Basílica de impurezas. E a cada descoberta, ela sentia algo dentro dela apertar e amargar.

Um nervosismo se espalhou por seus membros.

Será que era uma avaria? Impossível. Ela era a Mãe das Máquinas. Regente. Infalível.

E, ainda assim, a última coisa que havia tocado na mirraniana fora seu próprio óleo brilhante.

Elesh Norn ficou imóvel, sua armadura de porcelana brilhando, suas mãos sujas cerradas, suas vestes vermelhas flutuando na brisa delicada e constante.

“Nós somos a Mãe das Máquinas,” ela respirou e em algum lugar ao longe, aquele fluxo interminável de orações phyrexianas pareceu tremer e aquele estrondo grave retornou, profundo e quase imperceptível. O que antes parecia uma afirmação de poder e fé agora parecia ressoar com dúvida. Mil mentes phyrexianas tremeram.

Ela não podia permitir que a Ortodoxia fosse vítima da sensação alienígena que a atormentava. Tinha que haver uma explicação para tudo isso. Uma ordem para tudo isso.

Elesh Norn levantou a cabeça, mas mesmo o céu brilhante parecia impossivelmente mais escuro, como se o próprio ar tivesse escurecido, como se uma nuvem tivesse descido sobre a Basílica. A penumbra esfumaçada congelou e suavizou aos poucos, parecendo por um pequeno segundo se resolver em uma figura flutuando acima do horizonte da Basílica, magra e escura, antes de se dissipar. Ela balançou a cabeça, querendo acreditar que não era sua visão falhando. Deve ter sido um truque da mudança de luz, Norn tentou dizer a si mesma.

Ou outra corrupção inexplicável.

A mera ideia de que qualquer coisa ousasse ofuscar a beleza de sua gloriosa criação era absurda. E, no entanto, a atmosfera parecia mais escura, o mundo ao seu redor vagamente fora de sincronia de um modo inédito na Ortodoxia das Máquinas. Havia uma característica irreal, um peso que desmentia a natureza aérea que ela tanto tentou cultivar.

Esta era a sua Basílica, afinal.

Este lugar não era nada se não uma extensão de si mesma.

E ainda assim…

Norn olhou para a praça e recuou. Cada buraco que ela havia limpado daquelas atrocidades orgânicas, cada lugar que o sangue da mirraniana havia manchado a terra requintada, estava cheio de novas ervas daninhas brotando. Elas pulsavam e cresciam, invadindo a Basílica da Equidade como um jardim de carne.

Norn entrou no espaço outrora aberto entre a Basílica e a torre norte, onde os nascimentos sobrenaturais agora se enrolavam sobre as lajes quebradas. Ela os arrancou da terra enquanto passava.

Ela parou ao lado de uma torre onde uma perna irrompeu das lajes como a coroa de um dente em desenvolvimento. Isso era realmente o resultado do sangue daquela mirraniana? Era isso que acontecia quando se permitia que a imperfeição orgânica infectasse a Ortodoxia? Norn levantou o membro decepado, segurando sua carne entre as mãos. Era mole. Fraco. Apodrecendo de maneiras que uma máquina não faria. Parecia que sua Basílica estava fazendo exatamente isso. Apodrecendo de baixo para cima. Era intolerável.

Não.

Era impossível.

Quando ela jogou o pesado pedaço de carne para o lado, Norn disse isso a si mesma novamente.

Impossível.

Tinha que haver uma explicação lógica.

Se a humana e seu sangue sobrenatural não tivessem desencadeado essas abominações, o que, então, teria sido poderoso o suficiente para alterar o mundo que a própria Elesh Norn havia criado?

Norn olhou para a própria mão, o pulso do qual o óleo brilhante havia fluído.

Será que ela mesma teria feito isso?

Quem mais teria sido poderoso o suficiente para perturbar a ordem da Ortodoxia tão completamente? E se ela fosse a razão do óleo ter esse efeito no corpo da mirraniana?

Norn sempre foi tudo o que um pretor deveria ser, mas e se ela tivesse falhado de alguma forma nisso? E se ela estivesse errada? E se todo esse tempo, espreitando dentro dela, houvesse alguma falha invisível, germinando e esperando para explodir e arruinar a Ortodoxia das Máquinas? Ela estava de alguma forma intrinsecamente corrompida? A Grande Cenobita Elesh Norn inadvertidamente gerou algo tão impuro e orgânico? Ela era incapaz de liderar a Ortodoxia das Máquinas?

A Ortodoxia era reta, portanto, o próprio óleo brilhante não poderia ser culpado. Não havia nenhuma razão lógica que o sangue de uma humana humilde e lamentável tivesse gerado o horror que se espalhava diante dela.

Elesh Norn pressionou uma mão estranhamente trêmula contra o tablado como se estivesse se preparando para enfrentar seu próprio mundo, retorcido e inexplicável em sua imperfeição.

Tudo isso, tudo isso, ainda parecia tão estranhamente irreal.

Ela se lembrou, uma vez, de testemunhar mirranianos, capturados após a insurreição, dormindo em suas celas. Eles estavam enrolados em torno de si mesmos, sonhando, choramingando, presos nos projetos de pesadelo de suas próprias mentes singulares e fracas. Ela se lembrou de como eles uivavam e gritavam através de uma realidade que só existia em si mesmos, presos e implorando para acordar.

A Ortodoxia os purgou desses sonhos quando os presenteou com suas alterações, mas Norn não havia esquecido a visão alienígena deles sonhando. No mínimo, confirmava sua crença de que a carne era inferior. Era mais uma razão para despojá-los e presenteá-los com a certeza mecânica da Ortodoxia.

Os phyrexianos não sonhavam.

As mentes phyrexianas estavam ancoradas na realidade, no ritmo previsível da maquinaria e da retidão. Não havia razão para sua mente vagar por um espaço fantasioso e subconsciente cheio de plantas, horrores de carne e suposições ilógicas. Mas enquanto ela estava ali, seu corpo tenso, sua mente tentando dar sentido a uma realidade improvável, Norn sentiu como se estivesse presa como aqueles humanos adormecidos. Como se tudo estivesse bem se ela conseguisse acordar e pensar com clareza novamente.

Elesh Norn ficou imóvel. Ela não respirou. Sua armadura de porcelana estava tão imóvel quanto os pilares de pedra ao seu redor.

Este não era o mundo dela.

Lentamente, Elesh Norn olhou para o céu onde a escuridão pareceu formar uma figura antes. Com uma careta, ela sussurrou, “Ashiok.”

O som retumbante que rolava sob tudo se aprofundou e então, do outro lado do pátio da Basílica, uma forma esguia e andrógina apareceu. Flutuou para cima e sobre as pontes delicadas e torres cuidadosamente esculpidas como se a gravidade não exercesse sua força; mantos finos arrastando sob seus pés descalços, o ângulo estreito do seu rosto espiralando para cima em um par de chifres onde seus olhos deveriam estar. Fumaça preta enrolada, fantasmagórica e sinuosa das pontas afiadas de seus chifres, o mesmo escurecimento do ar que Norn tinha visto quando cortou a mirraniana pela primeira vez.

Ashiok, Tecedor de Pesadelos | Arte de Karla Ortiz

Os dedos de Norn se curvaram ao redor da beirada do tablado, rachando a pedra branca.

Ashiok. Planinauta. Mago do pesadelo. Ela já tinha ouvido falar, é claro. Norn estava familiarizada com o caos que Ashiok havia infligido aos mirranianos; como o mago do pesadelo muitas vezes infectou mentes inferiores com sonhos para sua própria diversão, para induzir o medo. Mas ela nunca havia considerado que Ashiok seria tão imbecil a ponto de tentar impor sua “arte” do pesadelo sobre ela.

Embora Elesh Norn fosse uma phyrexiana e uma regente, acima de explosões emocionais, ela se sentiu furiosa ao perceber que nada disso – nem a sujeira orgânica que havia infestado sua Basílica, nem as partes de corpos humanos brotando como ervas daninhas sob seus pés, nem mesmo sua improvável aflição – tinha sido real. Era simplesmente uma ilusão.

Uma diversão.

Um desperdício.

Elesh Norn ergueu-se em toda a sua altura, sua armadura de porcelana brilhando, suas vestes carmesim arrastando atrás dela.

“Ashiok.” Desta vez, quando ela disse o nome, sua voz foi gélida, o tom sintético de cada vogal e consoante perigosamente agudo. Era uma voz que comandava exércitos, uma voz que falava sobre verdade e pureza, uma voz que, até hoje, nunca duvidou de si mesma. Norn puxou os ombros para trás, derramando cada grama de autoridade e ameaça divina em sua postura.

Ashiok se aproximou em um ritmo vagaroso, vagando pelo pátio, olhando para a criação do seu pesadelo com um pequeno sorriso de satisfação. Elu pairava longe do alcance de Norn, os pés descalços sem tocar as lajes estragadas, suas vestes ondulando.

Ashiok estendeu suas mãos largas como se quisesse acariciar tudo. “Lindo, não é? Trabalhei tanto tempo nesta obra-prima em particular.” Ashiok se inclinou um pouco para frente, com a cabeça inclinada. “Sua mente é uma tela muito… única, Elesh Norn. Muito única mesmo.”

“Então esta abominação, esta imundície, é realmente obra sua?” Norn perguntou friamente.

“Mas é claro.” Ashiok sorriu. “Para falar totalmente a verdade, eu não tinha certeza se os phyrexianos seriam adequados para minha arte. Simplesmente não se pode criar uma obra-prima sem uma tela adequada.”

“Então você estava nos testando?” Norn disse isso com autocontrole, cuidadosamente calculado, embora sua fúria indignada tivesse começado a ferver. Ela se recusou a alimentar o pensamento de que o núcleo de sua incerteza persistente pudesse perpetuar sua dúvida.

“Quem mais teria sido uma cobaia melhor? Você é a Mãe das Máquinas, afinal, não é? Sua mente…” A voz de Ashiok sumiu, contemplativa e vagamente perplexa. “Ela não processa o medo da maneira que as mentes humanas o fazem.”

“Nós somos um Regente de Phyrexia,” Norn disse. “Somos a perfeição personificada. Não temos medo.” Até hoje, ela nunca teria questionado essa afirmação; não seria mentira dizer que ela nunca duvidou de si mesma. Mas Norn se recusou a deixar essa incerteza vir à tona completamente. Ela forçou autoridade em sua voz, cada grama de decepção e manipulação que ela havia aperfeiçoado para derrotar seus rivais. Ela não era feita inteiramente de material orgânico.

Ela não era fraca.

Ela não era carne.

Ela não era humana.

O sorriso de Ashiok só se alargou. Elu deslizou em um amplo círculo ao redor de Norn, dedos dos pés roçando a terra, mas sem tocar. “Ah, se isso fosse verdade, eu não estaria mais aqui, estaria?”

Ashiok ergueu-se lentamente no ar, e a fumaça que saía das pontas de seus chifres começou a descer, enrolando-se em torno dos membros humanos e dos órgãos que brotaram das lajes do pátio. O olhar de Norn seguiu o caminho do seu toque efêmero. Ali, no emaranhado de pedras quebradas, havia uma cabeça humana, crescendo através de uma grande rachadura, como um fungo. Era uma mulher com cabelos escuros e pele clara. Uma armadura branca surgia ao redor de seu queixo e mandíbula como folhas. Suas feições estavam cobertas pela lama, mas, sob a sujeira, algo em seu semblante parecia estranhamente familiar para Norn.

“Eu a encontrei pela primeira vez quando estava criando minha arte em Theros,” Ashiok disse, cada palavra de alguma forma ameaçadora em sua suavidade enquanto sua fumaça acariciava as bochechas e a testa da cabeça humana. “O nome dela é Elspeth Tirel.” Ashiok rolou o nome pela boca como se estivesse provando pela primeira vez. “Ela chamou minha atenção, e eu a procurei no Submundo. Seu medo de phyrexianos era glorioso. Simplesmente de tirar o fôlego. Como minha curiosidade poderia não ter sido despertada? Que tipo de artista eu seria se não procurasse tal oportunidade para aprimorar meu ofício, testá-lo em um ser como você? Eu simplesmente tinha que descobrir. Como seria um pesadelo phyrexiano?”

Elesh Norn se lembrava de Elspeth Tirel do seu ataque fracassado à Basílica sagrada, e aquela familiaridade incômoda que ela sentia com os mirranianos de repente fez mais sentido.

“Elspeth escapou, não foi?” Ashiok disse e sorriu suavemente. “Esta pequena e inconsequente humana escapou da Ortodoxia das Máquinas.”

“Irrelevante.” Norn sentiu sua indignação aumentar. “As verdades que vemos estão além da sua compreensão, Ashiok. Não seremos intimidados. Não seremos uma ferramenta para sua ‘arte’.” Em um lugar mais profundo do que qualquer pesadelo jamais poderia penetrar, ela sentiu a conexão com seu povo, o coletivo de Phyrexia, unido, a força daquela unidade, uma força imparável de milhares e milhares de seres esplendidamente alterados, esperando por seu comando para atacar.

O sorriso de Ashiok vacilou.

“Não vamos mais tolerar essa blasfêmia,” Norn continuou. Ela respirou fundo e voltou seu foco para dentro. Houve uma agitação nas sombras, movimento dos cantos profundos do pátio. Um rangido de portas sendo abertas. Passos meticulosos em degraus de pedra. Um por um, dezenas de phyrexianos, tão reais em seu sonho quanto teriam sido no mundo desperto, materializaram-se das sombras, seus corpos de metal brilhando, seus olhos brilhando vermelhos e ansiosos.

Por um momento, Ashiok pareceu quase confuso. “Eles não fazem parte deste projeto,” elu disse. “Eu não os projetei para estarem aqui. Não agora.”

“Nós somos um,” disse Norn. “Você achou que poderia nos controlar tão facilmente com esse pesadelo?”

Houve um momento de silêncio, todas as máquinas paradas. O ranger das engrenagens e os sons molhados do jardim do pesadelo de Ashiok cessaram. Havia apenas vento, carregando o cheiro de podridão e óleo, flamulando as bandeiras vermelhas no alto.

“Você nos subestimou.” Norn disse baixinho, um sussurro sintetizado.

E então, puro como uma oração, os phyrexianos atrás dela repetiram: “Você nos subestimou.”

Ashiok inclinou a cabeça, tamborilou as pontas dos dedos e flutuou para trás com cuidado, aumentando a distância entre Norn e o restante dos phyrexianos enquanto a luz branca brilhava, um enxame de lâminas de porcelana se formando do metal que envolvia seu corpo.

“Interessante,” Ashiok disse.

O estrondo tornou-se um rugido, um som grave, gutural e orgânico que correu pela paisagem do pesadelo como uma onda. A fumaça rodopiando entre os chifres de Ashiok escureceu, engrossou e desceu. Os galhos que brotavam da terra se misturavam em um escárnio da beleza phyrexiana, o jardim abaixo se fundindo em criaturas e arremessando-se em direção a Norn, um emaranhado de pernas e braços, cabeças malformadas pendendo de ombros dissecados.

Os phyrexianos avançaram, cortando as manifestações oníricas, a ilusão tornada corpórea em uma extensão da vontade de Norn. O que os phyrexianos não alcançavam, ela eviscerava rápida e eficientemente em uma enxurrada de lâminas de porcelana finas como agulhas voando de seu corpo em flashes ofuscantes de luz branca, crepitando violentamente no ar. Ela cortou as criaturas de Ashiok em tiras antes mesmo que elas tivessem a chance de se aproximar do tablado ao lado dela.

“Você blasfemou contra nós!” A voz de Norn reverberou pelo pátio. Ela recuou o braço, preparando-se para obliterar o corpo fantasmagórico de Ashiok, quando a coisa que seria Elspeth Tirel se ergueu.

Ela se ergueu aos pés de Norn, erupcionando da terra com um som espesso e úmido, subindo da lama do pesadelo até pairar de frente para ela, a medula espinhal balançando como a cauda de um roedor. A fumaça de Ashiok a envolveu rapidamente, inchando e curvando-se, transformando o próprio ar em um corpo alto e sólido, cercado por músculos sinuosos e coberto com metal de porcelana perolada e um capacete curvo. Era um espelho da forma sagrada de Elesh Norn.

Norn deu um passo para trás. Elspeth fez o mesmo. Era um reflexo distorcido de seu próprio corpo, sua postura que parecia de repente, horrivelmente, inegavelmente humana. E lá estava novamente, aquele aperto na garganta de Norn, formigando sua nuca, caindo profundamente no centro dela como uma pedra. Ela sentiu o desejo de recuar. De correr. Aquilo era uma abominação, não só da Ortodoxia, mas dela. Mãe das Máquinas, Regente. Esta era uma versão distorcida do futuro da Ortodoxia.

Elesh Norn não queria chamar de medo, mas enquanto observava a mão de Elspeth subir à boca, enquanto observava aqueles dedos tão parecidos com os seus próprios tremerem, ela sabia que, sim, logicamente, era assim que ela também devia estar naquele momento.

Impura.

Imperfeita.

Impossível.

Como esse planinauta conseguia fazê-la se sentir assim com seus truques, pesadelos e ilusões? Com uma simples visão de uma mulher humana esculpida para se parecer com ela, para zombar dela? Ela, Elesh Norn, que tão magistralmente dobrou seus inimigos à sua vontade? Ela, que era o ápice de Phyrexia?

Com um estalo ensurdecedor e uma explosão de luz brilhante, as adagas finas como agulhas que saíam do corpo de Norn se fundiram e formaram uma lâmina enorme e mortal em sua mão. Com mais poder do que jamais seria necessário, ela a jogou na versão pesadelo de Elspeth Tirel, cortando seu peito com tanta força que ela voou pelo pátio, caindo em um amontoado do outro lado. Uma silhueta vestida com seu próprio metal branco e mantos carmesins, ainda coberta de carne humana, morta.

Não, morta não.

Porque nunca esteve viva para começar. Foi tudo uma ilusão, um truque.

Norn virou-se para Ashiok, seu funcionamento interno saltando com essa emoção nova e desconhecida, a raiva aumentando o medo que ela sentiu de algo quase incontrolável. Ela se preparou para lançar tudo sobre o planinauta, mas Ashiok já estava bem acima da Basílica, disparando para trás com velocidade incomum até ficar fora de alcance, parecendo tão inquieto quanto Norn.

“Você é a melhor tela, de fato, Mãe das Máquinas.” Ashiok abriu os braços e inclinou a cabeça. “Outra obra-prima.”

Norn assistiu Ashiok desaparecer, deslizando pelo céu noturno. O véu do mundo de pesadelo de Ashiok ergueu-se com sua partida. Os phyrexianos que ela quis que existissem se dissiparam. As lajes quebradas voltaram para sua imaculada suavidade. O sangue espesso e as plantas sobrenaturais estremeceram, endureceram e então se desintegraram em pó, facilmente espalhadas pela brisa.

O corpo de Elspeth, ainda vestido com a armadura de Norn, foi o último a desaparecer, agarrando-se à corporeidade até que a regente deu um passo em direção a ela. A armadura de Elspeth tremeu e depois se desintegrou, fina como areia branca, deixando sua cabeça humana decepada. A pele rachou. Linhas finas como fios de fumaça se formaram ao redor de sua boca, espalhando-se para fora, dissolvendo sua carne de pesadelo de dentro para fora.

Mas pouco antes da visão de Elspeth se desintegrar, ela abriu os olhos e encontrou o olhar de Norn. Ela olhou para Norn com tanta piedade humana, com uma simpatia tão horrível, que Norn não conseguia respirar.

Quando o pesadelo se desvaneceu completamente do mundo, Elesh Norn caminhou cuidadosamente sobre o pátio da Basílica e tocou as pedras, agora limpas, puras e sagradas, onde a coisa que havia sido Elspeth Tirel havia nascido. Ela não podia apagar Elspeth de sua mente. Ela não podia deixar de ver a piedade ali. Ela não podia suportar o pensamento de algo tão humano perturbando-a tão completamente.

E então Elesh Norn soube, com a mesma convicção com que ela adorava a Ortodoxia das Máquinas, que para purgar essa nova emoção que estava sentindo, esse medo e incerteza, ela precisaria encontrar a humana, Elspeth Tirel, e livrar o Multiverso dela.

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Testimonial #1 Designation

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Testimonial #2 Designation

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Testimonial #3 Designation

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