Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
BATALHAS PESSOAIS
Texto original (arquivado)
por Rei Nakazawa
O punho de Iwamori bateu violentamente no carvalho, e a árvore, que havia ficado imóvel por centenas de anos, caiu com um baque ensurdecedor. A orochi renegada nos seus galhos mais altos saltou para uma árvore vizinha segundos antes do chão tremer com o impacto da queda.
“Você está começando a me irritar, monge.” silvou Shisato, veneno pingando de suas presas e formando uma poça verde no chão da floresta.
“Você caça a mim e meu povo por muito tempo,” veio a resposta direta e estrondosa. “Acho que sou eu quem deveria estar irritado.”
Os olhos de Shisato brilharam nas sombras das folhas farfalhantes. “Você sabe que eu poderia descer ai agora e enchê-lo com meu veneno antes que você pudesse piscar.”
“Você até poderia tentar.” O monge era alto e grande, com um peitoral que parecia uma rocha e braços tão grossos quanto o carvalho que jazia a seus pés. Ele estalou seus dedos, com um som que cortou a quietude da silenciosa Jukai. “Acho que você descobriria que minha pele é mais grossa do que você imagina. Ou, eu poderia simplesmente te pegar no ar e torcer seu pescoço. Você acha que seu pai ficaria terrivelmente desapontado comigo se eu fizesse isso? Eu evitaria que ele mesmo tivesse que fazer isso.”
O brilho dos olhos do orochi se tornaram duas pequenas bolas de fogo. “Eu sei o que você está tentando fazer, monge. Forçando que eu cometa algum erro. Bem, não vai funcionar. Eu vou te matar do meu modo, na hora que eu escolher. Eu sugiro que você se desculpe antes disso.”
As poderosas pernas de Iwamori o fizeram voar em direção à árvore, em direção à voz, mas Shisato havia desaparecido antes que o último silvo de sua voz evaporasse no ar. Iwamori grunhiu.
“Você não escapará de mim para sempre, renegada. Eu juro, sua pele ainda decorará as paredes do meu quarto.”
Iwamori curvou-se, lembrando Ansho do pequeno garoto, então cheio de temor e respeito, que havia se juntado à ordem tantos anos atrás. “Desculpe-me, Mestre Ansho.”
“Você não tem motivo pra se desculpar. Você nunca tem. Shisato é um problema, mas ela não é o mais urgente no momento.” A face do velho monge estava enrugada, mas seu corpo ainda comportava muito do poder que ele teve durante sua juventude, ainda robusto e mais musculoso que muitos homens com metade de sua idade. Como um dos mais antigos alunos de Dosan, e um lutador cujos feitos ainda eram contados em poemas, ele mantinha um olhar de predador em seus deveres administrando as defesas do monastério e de Jukai. “Na verdade, inicialmente, eu questiono o motivo de persegui-la.”
O corpo do jovem monge ergueu-se, o horror marcado em sua face. “Você acha que eu não deveria deixar o monastério sem um defensor? Você está absolutamente certo, Mestre, e eu me desculpo por…”
Ansho acenou com uma mão enrugada. “Acalme-se, jovem. Se eu quisesse dizer isso, eu teria dito diretamente. Mas não.”
Iwamori ficou em pé, elevando-se acima de seu mentor como Boseiju. “Contudo, minha falha em parar Shisato significa que eu relaxei em meus treinos. Após minhas meditações treinarei pesado, eu juro.”
“Se tem uma coisa com que eu sempre posso contar, Iwamori, é com o seu treinamento.” Ele disse isso com um pequeno sorriso que Iwamori não tinha certeza de como interpretar. “Eu sei que você treinará corretamente.” Ansho parou, seus olhos passando por seu estudante. “Posso fazer uma pergunta?”
“Claro!”
“Eu gostaria que você se perguntasse qual é o propósito da sua vida e de seu treinamento.”
Iwamori piscou. “Buscar esclarecimento e defender Jukai contra todos que desejarem destruí-la, é claro. Essa não é a pergunta que você faz para os novos acólitos, para testar sua força interior?”
“Talvez, mas achei que você poderia se beneficiar dela também.” Um momento de silêncio. “Agora vá, vá para seu treino. Eu tenho certeza que conversaremos mais tarde.” Iwamori curvou-se e deixou os aposentos de sue mestre. Ansho balançou a cabeça. “Tantos problemas, aquele jovem…”
Quando Iwamori meditava, parecia que o mundo todo parava apenas para dá-lo paz. Aves cessavam seu canto, folhas recusavam-se a farfalhar, e as gentis brisas que corriam pelas árvores paravam de soprar. Ele achava fácil entrar em seus domínios interiores, onde o mundo de fora deixava de existir, ele não sabia exatamente como. Ele sentia que Mestre Ansho estava, de alguma maneira, preocupado com isso, mas ele não tinha ideia do porquê.
Como sempre, quando suas meditações estavam terminadas e seus olhos abertos, ele se percebeu cheio de uma estranha sensação de desapontamento. Talvez fosse porque ele tivesse falhado em achar uma resposta para a pergunta de Mestre Ansho, diferente da que ele já havia dado? Francamente, ele não estava certo se realmente existia outra resposta.
Iwamori sabia que Mestre Ansho não era o mais erudito dos discípulos de Dosan, haviam muitos que haviam alcançado níveis maiores de esclarecimento dos que o dele. Ele não era o mais forte, alguns haviam sido até mesmo mais fortes que ele, mas não tantos quanto os que eram mais sábios. Mas por alguma razão, todos sabiam o nome dele, até mesmo numa ordem como a do Mestre Dosan, cujas fileiras estavam abarrotadas pelos refugiados da longa Guerra dos Kami.
Um baixo ruído ecoou pela floresta, enviando ao monastério uma repentina lufada de atividade. Mulheres derrubaram suas trouxas e cessaram seu treinamento. Homens recolheram as crianças e agarraram suas armas. Iwamori, seu sangue fervendo em suas veias, falhou em conter um pequeno sorriso quando começou a correr, apressando-se aos altos portões de madeira, que mantinham o resto de Jukai à distância.
Assim que os portões apareceram em seu campo de visão, ele viu que estavam cheios de monges, alguns armados com lanças, outros com nada mais que seus punhos. Eles gritavam e gesticulavam e rogavam por ordens. Não havia uma hierarquia oficial entre os monges, eles concediam respeito um ao outro com base no que eles sabiam sobre a habilidade de cada um. Mas quando o sino soava, quando o monastério estava em perigo de ataque, havia apenas um homem em quem eles podiam contar: Iwamori.
“Acalmem-se!” ele rugiu. O balbuciar finalmente foi interrompido, o silêncio quebrado apenas pelo contínuo soar do sino de aviso. “Qual é o perigo?”
“Um kami foi visto em Jukai,” um dos monges gritou mais alto do que o necessário.
“Somente um?” A voz de Iwamori cresceu afiada e irritada. ‘Eu espero que haja mais do que está parecendo, ou ficarei muito desapontado com quem quer que tenha tocado o sino de alerta.”
O monge engoliu em seco. Agora, Ansho havia se juntado à multidão, seus ouvidos aguçados. “Não é um problema de número, irmão Iwamori… é um problema de… estatura.”
“É o Kami dos Mortos Honrados!” Um deles gritou. “Korin pôde vê-lo mesmo quando ele estava na extensão oeste! Ele está vindo nessa direção!”
Agora o rosto de Iwamori estava fechado. Até mesmo em Jukai haviam chegado histórias sobre Eiyo – um grande kami, maior que a maioria, que havia destruído uma legião dos melhores oficiais do daimyo. “Certo.”
“Nós estamos prontos para defender o monastério do jeito que você achar melhor.” O resto dos monges concordou, suas faces fechadas e suas mãos agarrando suas armas.
“Vocês confiam em mim para fazer a coisa certa?”
“Claro!”
“Ótimo.” Ele olhou para o grupo, uma mistura de feições, alturas, idades e corações. “Então aqui está meu comando: fiquem aqui e defendam este lugar com suas vidas. Eu irei lá fora e tentarei mudar o caminho de Eiyo.”
Um murmúrio correu pelo grupo, Ansho franziu o rosto. “Sozinho?” Um dos monges perguntou.
“Sim, sozinho. Nós vamos precisar de todos os defensores que tivermos se o Kami dos Mortos Honrados chegar até aqui, e ter outros comigo iria me atrasar, e velocidade será a essência do que eu vou fazer.” Ele se virou para os outros com um olhar severo. “A menos que vocês duvidem das minhas capacidades.”
Com resmungos e balanços de cabeça, os monges relutantemente debandaram e tomaram posições defensivas. Apenas Ansho manteve a posição, com o rosto ainda franzido. Iwamori se virou para seu mestre. “Não se preocupe. Eu me certificarei de que todos vocês ficarão seguros.”
“E você? Quem te manterá seguro?” Ansho perguntou calmamente.
“Isso importa, se o resto sobreviver?” Ele se virou. “Abram os portões!” Ansho assistiu seu estudante passar sozinho pelos portões do monastério, assistiu até que as portas maciças bateram atrás dele.
“Ah, Iwamori… Eu vejo que você ainda não respondeu à minha pergunta…” Ansho não se moveu para buscar abrigo ou sair de seu lugar. Ele ficou encarando os portões, como se já estivesse esperando pela volta do jovem monge.
A floresta estava estranhamente silenciosa, exceto pelos passos do próprio Iwamori que quebravam gravetos e folhas. Isso já era um sinal, não havia aves nem animais, sendo que Jukai deveria estar cheia deles. Até mesmo os kami menores que importunavam caçadores e viajantes estavam ausentes. Eles sabiam o que estava acontecendo, mesmo que demorasse um pouco para os humanos perceberem.
Com três saltos, Iwamori atingiu o topo de uma árvore anciã, e então pode olhar sobre as vastas copas verdes de Jukai. No oeste, vindo cambaleando, como se estivesse andando pelas copas, estava a figura metálica com uma armadura que brilhava deslumbrantemente no sol do meio dia. Ele poderia ser confundido com um samurai, se samurais tivessem trinta pés de altura. Garras maciças, feitas por centenas de katanas, varriam o topo das árvores, cortando galhos e partindo folhas. De sua cabeça (ou onde uma cabeça deveria estar, se ele fosse humano), uma máscara kabuto com feição de ódio. Iwamori não sabia porque Eiyo estava passando por Jukai, e nem se importava com a razão.
“Lorde Kami!” Ele rugiu numa voz que sacudiu os céus. O kami gigante diminuiu a velocidade e virou, o kabuto olhando para ele como se fosse a face de um deus julgador. “Pelo bem de Jukai, eu te desafio para um combate! Enfrente-me, se você não tiver medo de um mero humano!”
Os passos do kami pararam completamente. Ele parou, congelado, encarando o pequeno monge abaixo dele. Um barulho pôde ser ouvido dele, o som de cem mil placas de metal batendo umas nas outras. Mas o som não era sem significado, ele aumentava e diminuía, como o ritmo de uma voz humana. Se era pra ser realmente isso, não estava funcionando, pois Iwamori não entendia nada do que ele estava falando.
Depois do que pareceu serem horas, o Kami dos Mortos Honrados levantou uma de suas enormes mãos e a lançou em direção a Iwamori. Ele saltou para fora da direção, seu corpo ainda assim atingido pelos ventos formados pelo movimento brusco. Sem parar, ele pulou de novo e novamente, usando-se como isca para tirar o kami do caminho do monastério. Felizmente, o kami parecia contentar-se em tentar eliminar seu inimigo blasfemador, os elmos vazios que o cercavam brilhavam com uma luz furiosa e intensamente branca.
Uma poderosa manopla rebateu Iwamori de uma árvore antes que ele pudesse reagir. Suas mãos falharam em se apoiar, quase não conseguindo segurar-se num galho para não cair descontroladamente no chão da floresta. Ele olhou para cima e foi imediatamente cegado pela luz branca. A magia do kami lançou adagas de fogo em seu corpo, e sua aderência afrouxou-se. Ele caiu num monte de galhos, que fez com que o impacto com o chão fosse suavizado. Iwamori piscou para recuperar a visão a tempo de ver unhas feitas de lanças ensanguentadas cortarem em sua direção.
Ele se atirou para fora do caminho, mas uma das lâminas cortou seu ombro esquerdo. Logo que se colocou novamente em pé, o monge recuou de um galho próximo, seu sangue saindo quente de sua ferida. A máscara de Eiyo brilhou com uma luz deslumbrante que iluminou toda Jukai. Iwamori saltou instintivamente. A explosão errou sua perna por pouco, mas estilhaçou os galhos da árvore; ele percebeu, enquanto caía, que não encontraria mais suporte para se apoiar ali. Ele atingiu a copa, sentindo os arranhões de galhos e folhas e gritou quando ramos quebraram sob seu peso. Ele saltou novamente e agarrou um dos galhos mais espessos que encontrou, balançou e se lançou para frente, fazendo isso mais duas vezes até chegar habilmente ao solo.
“Já chega disso,” ele resmungou sem fôlego. Ignorando a dor em seu ombro, Iwamori se lançou em outra grande árvore, encarando Eiyo novamente nos olhos.
Novamente, garras na forma de lança vieram em sua direção, mas, dessa vez, seu salto de esquiva o levou para cima da armadura de um dos braços do kami. As juntas e músculos do monge doíam enquanto ele subia e pulava pelo braço gigante. Ele olhou para a esquerda, a investida mortal do outro braço ainda não havia terminado. Ele tinha pouco tempo. Pouquíssimo tempo.
Finalmente em cima do ombro do kami, Iwamori alcançou uma das maciças placas de metal que formavam a carapaça corporal de Eiyo. Suor escorria de sua face, veias saltavam de seus braços enquanto seu aperto tensionava o metal. Finalmente, com um rugido bestial, a placa separou-se do corpo. “Não é a mais impressionante das armas, mas deve servir.”
Agora, o olhar sinistro do kami havia se virado para ele, os olhos vazios da máscara kabuto guinchando com indignação. “Eu imagino que você espera que eu reponha esse pedaço de armadura,” resmungou Iwamori. “Tudo bem. Você terá ele de volta.” Gritando um kiai que ecoava por sua alma desde seus primeiros anos, Iwamori arremessou a placa de bronze. O pedaço de metal bateu na máscara kabuto, que foi estilhaçada pela velocidade do projétil.
O kami guinchou, um som muito agudo e doloroso que reverberou no cérebro do monge. Rios de um líquido brilhante fluíram da viseira estilhaçada de Eiyo como se fossem lágrimas. Rapidamente Iwamori arrancou outra placa de metal, jogando-a novamente na cabeça do kami. Dessa vez, o pedaço de armadura atingiu o outro lado da face destruída de Eiyo, destruindo um dos elmos que circulavam. Outro grito irrompeu, e Iwamori pode ver o elmo quebrado dissolver-se em pequenas fagulhas amarelas que choveram pela floresta. Seus dedos agarraram outra placa.
Mas antes que ele pudesse arrancar essa outra, o corpo do kami começou a tremer e balançar. Iwamori sentiu a estrutura abaixo dele ficar enevoada e macio. Em segundos, o kami havia desaparecido inteiramente.
Iwamori desceu novamente, mas dessa vez por escolha própria. Ele resmungava enquanto descia, secando o suor de suas sobrancelhas. Quando voltou ao monastério, gritos de comemoração e elogios choveram sobre ele assim que perceberam sua volta. Mestre Ansho ainda estava no mesmo local, onde ele o havia deixado, olhando para Iwamori com olhos avaliadores.
“Uma centena dos melhores homens de Lorde Konda não conseguiram derrotá-lo. E você conseguiu!”
“Você nos salvou!”
Iwamori balançou a cabeça, sua face séria. “Não, eu falhei. Eu poderia ter salvado o mundo de um kami maior, salvando várias outras vidas inocentes.”
Ansho finalmente falou. “Você o feriu, o machucou o suficiente para mandá-lo de volta para o kakuriyo, uma coisa que nenhum homem já havia feito antes, e você ainda fala em ter falhado?”
“Eu não falo disso. Meus atos já gritam isso alto o suficiente.” Sem se atentar aos olhares e à comemoração, Iwamori partiu. Mais tarde, Ansho o encontrou no campo de treino, socando postes de madeira e chutando sacos cheios de folhas até que seu corpo ficasse totalmente exausto.
“Estamos fazendo um banquete de celebração em sua homenagem. Você não vai se juntar a nós?”
“Não,” disse com um solitário resmungo. E foi isso. Voltou aos chutes, socos e giros. Ansho retirou-se lentamente e retornou para as chamas que rugiam onde todos comemoravam.
A manhã chegou clara e quente sobre a Floresta de Jukai. Embora nenhum dos paparicados e perfumados nobres do Castelo Eiganjo tivessem levantado, os monges seguiam o curso da natureza, e já estavam de pé. Havia treinos a serem feitos, koans a serem escritos, comida a ser plantada e reparos a serem feitos. Eles trabalhavam como formigas, carregando seus pacotes, madeiras e problemas, numa atividade constante.
No centro de tudo, como era comum, dois homens estavam parados. Ansho sentado em seus aposentos e Iwamori curvado diante ele. A face do ancião estava estampada com preocupação. “Eu não vou tentar te parar. Mas eu sugiro fortemente que você reconsidere.”
“Não.” O forte monge levantou-se. “Minhas falhas nos últimos dias não deixarão de me perseguir enquanto eu não agir. Eu não retornarei até que Shisato seja uma prisioneira do nosso povo, ou morta pelas minhas mãos.”
“Você faria isso mesmo que significasse nos deixar sem nosso defensor mais poderoso?”
“Eu não planejo ficar longe por muito tempo. Mas minhas ações são para o bem de todos, e eu devo passar por isso para que minha honra permaneça intacta.”
“Ah, honra,” suspirou Ansho. “Um conceito tão nobre. Até os homens do daimyo começaram a morrer desnecessariamente por causa disso.”
“Mestre?”
“Você sempre foi um dos meus estudantes mais frustrados.” Ansho disse com um sorriso que não continha nada de malícia. “E tem tanto potencial…”
Iwamori piscou. “Mestre?” Ele repetiu.
“Você achou uma resposta para a pergunta que eu te fiz anteriormente?” Ele perguntou casualmente, como se tivessem acabado de começar a conversar.
“Pergunta?” A face de Iwamori se contorceu em dúvida por um momento. “Ah, aquela! Não tenho outra além da que já dei. Por quê você pergunta?”
“Se você tem que perguntar, é porque você não entendeu meus motivos.” Ansho pausou. “Pense nisso em suas viagens, Iwamori. E pense no motivo que te trouxe aqui, para começar.” Então ele fechou seus olhos.
“Por que eu…? O que você…?” Mas a respiração lenta e a quietude do ancião disseram para Iwamori que Ansho não estava mais verdadeiramente presente, pelo menos não de espírito. Silenciosamente ele se pôs de pé e deixou o monastério. Ele não disse adeus a ninguém, não havia ninguém de quem ele gostaria de se despedir. Alguns monges o viram e quiseram questioná-lo, desejar boa sorte, mas não sabiam como fazê-lo. A partida de um dos lutadores mais fortes de toda Jukai, talvez de toda Kamigawa deixou todos sem palavras.
Os dedos de Iwamori acariciaram o chão, correndo a borda de uma pegada estampada na lama. Rastreamento nunca foi uma de suas grandes habilidades, Azusa sempre poderia ultrapassar suas escassas habilidades. Mas ele reconhecia o rastro de um orochi quando via um, e esse era relativamente fresco. O passo era de alguém com pressa, e a direção era de alguém que estava muito longe de qualquer região segura dos orochis. Isso significava Shisato.
Ele seguiu o rastro o melhor que pôde. Embora os rastros sumiram logo, ele achava que poderia enxergar sinais aqui e ali de alguém passando: um galho quebrado ou grama amassada. O som de folhas quebrando chamou sua atenção. Alguém estava se mexendo nos arbustos ali perto, e não estava fazendo muita questão de se esconder. Shisato não seria tão descuidada. Ou, talvez, fosse uma armadilha. Essa não era, com certeza, uma região para um viajante casual… pelo menos não para alguém sem um motivo obscuro. Iwamori agachou-se ao lado de uma árvore. O som estava cada vez mais próximo, e vinham quase para onde ele estava. Levantando-se, Iwamori respirou fundo, esperando por mais um passo, então saiu de trás da árvore, projetando seu punho para frente em um poderoso soco.
Seu punho cerrado encontrou apenas ar. O monge piscou, olhando ao redor. Ele não pôde ver ninguém. Mas como? Ele reconhecia passos humanos quando os ouvia, e ele estava tão certo que os passos vinham dali…
“Hmm. Acho que aquele kanji foi útil, afinal.” A voz macia veio de trás dele. Iwamori girou e viu um homem alto e magro em vestes negras. Ele estava encostado casualmente em uma árvore, seus braços cruzados e sua boca aberta num pequeno sorriso. “Você nunca sabe quando encontrará com o inesperado. Que é o que o inesperado significa, claro.”
Iwamori apertou os punhos, transformando-os em rochas. “Quem é você?”
“Isso faz diferença? Apenas um viajante pegando um atalho por Jukai.” Uma espada pendia de seu cinto e balançava gentilmente com o vento enquanto o homem olhava Iwamori de cima a baixo. “Você é um dos monges de Dosan, não é? Está um pouco longe de casa, não está? Eu não sabia que o velho ensinava seus estudantes a atacar estranhos sem motivo.”
Os sentidos de Iwamori estavam confusos. Alguma coisa não estava certa com esse homem. Sua atitude, sua estatura, sua aura… O que quer que fosse, gritava de erroneidade, de alguma coisa que era sua responsabilidade destruir. “Você é um samurai,” ele respondeu. “Mas você não está vestido como um dos homens do daimyo.”
‘Isso é porque eu não sou um samurai. E você é…?”
“Alguém que sabe que você está tramando algo. Você não é bem-vindo em Jukai.”
O samurai riu. “E você é o titã eremita, o solitário defensor da floresta? Seus dias de patrulha devem ser certamente difíceis.”
“Cale-se e lute contra mim!” Iwamori investiu, seu braço balançando com uma força que poderia quebrar rochas. Seu oponente simplesmente respondeu com um mortal sobre o monge e caiu com uma graça felina. Ele empunhou sua espada, lançando flashes de luz do sol refletidos em seus olhos.
“Eu não posso perder tempo duelando com um estranho monge que eu acabei de conhecer. Saiba que eu sou um amigo íntimo da filha do Daimyo Kond…”
“Quieto!” Iwamori gritou novamente, apenas para ver o samurai abaixar-se repentinamente. Um soco, outro, um chute rápido. Tudo era evitado com facilidade.
“Qual é o seu problema?” O samurai olhou calmamente para Iwamori com olhos que penetraram sua pele, sua mente, coração e alma. “Pavio curto, hein? Eu já vi outros do seu tipo antes. Grande, forte, estupidamente bravo, cheio de honra e dever. Você sabe o que sempre acontece com eles?”
“O que?”
“Eles morrem. O que é o que eles normalmente desejam.” A face do samurai abriu-se num meio sorriso. “Por que você quer morrer, monge?”
Um silêncio mortal percorreu a floresta por um instante, enquanto os dois homens se olhavam nos olhos. Iwamori quebrou o silêncio com um rugido bestial, como o de um animal ferido. Ele avançou para o samurai com os braços abertos, dedos curvados como se estivesse se preparando para apertar e quebrar a garganta do outro homem.
“Acertei um ponto fraco, não é?” O samurai evitou a investida de Iwamori com um giro casual. O monge apenas berrou em resposta, pegando um tronco caído e arremessando-o na direção do seu inimigo. Dois cortes com a espada mandaram o tronco para o chão em pedaços. “Acho que sim, você parece ter perdido a capacidade de raciocinar.”
“Eu vou matar…” Os sons foram mais rosnados do que palavras. Iwamori pulou para frente, murro atrás de murro em direção à face do samurai, cada um assobiando pelo ar com a força de um martelo de ferreiro. O monge foi atingido por um corte que teria matado imediatamente qualquer homem normal, e aleijado até mesmo kamis menores. Nenhum deles caiu. Quando Iwamori girou, seus dentes cerrados e o rosto avermelhado, o samurai estava atrás dele, seus ossos inteiros, seus músculos intocados. Com outro grito animalesco, Iwamori atacou, sem sentir os cortes de aviso que o samurai fazia em seu peito. Sua mente quase não registrou que seu oponente estava recuando sua jitte, como se estivesse preparando uma punhalada que Iwamori não poderia parar ou desviar. Mas ao invés disso, o samurai pareceu ter mudado de ideia no último momento, simplesmente esquivando-se do ataque impensado de Iwamori.
“Continua com isso? Sabe, eu meio que gostei de você. Você é simples e direto.” O meio sorriso apareceu novamente. O samurai caiu em um joelho e desenhou um kanji na sujeira do chão. Espinhos de pedra irromperam do solo, circulando Iwamori numa jaula de pedra.
Os punhos de Iwamori bateram em sua prisão de pedra. Os espinhos racharam, mas apenas um pouco, não o suficiente para libertá-lo antes que o samurai pudesse fugir. “O que você está esperando?” ele rugiu. “Termine o que você começou!”
“Tenho certeza que você gostaria disso, não é? E, se eu me lembro bem, foi você quem começou isso.” Ele olhou para o monge com um ar de suave interesse, como se estivesse olhando para um animal exótico num zoológico. “Um pequeno conselho. Você pode continuar com isso ou deixar de lado, não interessa para mim qual você vai escolher. Mas você deve pensar sobre porque você está tão determinado a defender Jukai sozinho.” Com isso, o samurai sumiu em meio às árvores. Foi-se, deixando uma jaula de pedra e um monge com os ombros caídos, joelhos fracos e a cabeça tomada de pensamentos.
Uma hora depois, quando Iwamori havia finalmente estilhaçado uma das colunas de pedra, ele ainda estava pensando, pensando sobre coisas que não haviam entrado em sua cabeça em anos.
Ele acordou com o som de gritos e de passos correndo. Ele piscou para afastar o sono de seus olhos a tempo de ver seu pai entrando em seu quarto. “Iwamori! Você deve correr!”
Ele tinha apenas oito anos de idade, mas até ele sabia o que o terror estampado nos olhos normalmente calmos do pai só podia significar uma coisa. “Eu quero ajudar!”
O monge deu passo para fora das pedras quebradas. Não havia sinal do samurai ou de qual caminho ele havia tomado. Mesmo que soubesse pra onde ele havia ido, ele já estava muito à frente.
Não que fosse ser útil segui-lo. Ele devia ser demente. Que ideias ridículas!
“Seus irmãos já estão nos portões da cidade,” veio a curiosamente calma resposta. “Você é necessário na estrada. Ajude sua mãe e sua irmã a escapar para Jukai.”
“Não! Eu quero ficar aqui e lutar com você!”
Iwamori não pensava em Shisato, a orochi havia escapado totalmente de sua cabeça. Ele também não pensava nos roncos que seu estômago dava. Ele começou a andar.
Depois disso ele só se lembrava de algumas partes: o braço de seu pai envolto fortemente em sua cintura, seu grito enquanto ele era carregado no ar frio da noite. Ele lembrou de ter sido praticamente jogado nos braços de sua mãe, e uma pequena luz cintilante que correu pela face de seu pai, um pouco antes de ele se virar e correr de volta para os portões, a lança em suas mãos. A luz das casas queimadas à sua volta dançavam enquanto desapareciam, até serem totalmente engolidas pelas chamas.
Iwamori olhou à sua volta. Ele já estava nos portões do monastério. Lentamente, uma grande mão os alcançou e os abriu. Os monges ainda estavam no meio de seus afazeres diários, assim como estavam quando ele saiu. Nenhum deles se preocupou em olhar enquanto ele passava pelo seu meio, entrando nos aposentos de Ansho.
O mestre esperava por ele, é claro.
Ele percebeu que seus pulmões queimavam e doíam, puxando ar o suficiente para manter suas pequenas pernas se movendo. Então vieram os gritos atrás dele. “Não olhe para trás, Iwamori!” Sua mãe gritou. “Corra!” Estalos, lágrimas, uivos, hálito quente no seu pescoço, passos pesados que assoviavam em seu ouvido e estremeciam seu corpo. Ele podia sentir a lama fria sob seus pés enquanto entrava nos confins de Jukai, ouvir os gritos dos monges que lutavam contra seus perseguidores, sentir as farpas de madeira que entravam em suas mãos enquanto ele batia nas paredes do monastério. Sozinho.
“Bem-vindo, Iwamori.”
Ele se curvou. “Obrigado.”
“Isso significa que você pensou no que eu te falei?”
“Sim.”
Ansho ergueu uma sobrancelha. “E qual é sua resposta?”
Ele parou, as palavras ainda se formando em sua cabeça. “Eu tenho feito muito pelos monges daqui em nome de minha família. Eu quero… queria… mais do que tudo me juntar à minha família honrando o nome deles e morrendo por uma causa que eu não pude proteger enquanto criança.”
“E agora?”
“E agora… eu não sei mais qual é o meu propósito.”
O ancião acenou com a cabeça. Iwamori levantou e se virou para sair. “Espere.” O grande monge se virou. “Não pense que eu não apreciei tudo o que você fez por nós todos esses anos. Mas as batalhas importantes não são lutadas apenas nos vastos campos de batalha. Nem são lutadas meramente para salvar vidas mortais. Medite sobre isso hoje.”
Iwamori assentiu. Ele foi para os campos de meditação, com a intenção de pensar sobre o que havia acontecido hoje.
O treino podia esperar.
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