Mtg Lore
Compêndio da Lore de Magic the Gathering
A GUARDIÃ
Na linha do tempo original de Khans de Tarkir, Anafenza era khan dos Abzan, a intrépida governante de um clã leal e resistente. Na linha do tempo alternativa de Dragões de Tarkir, seu destino foi menos gentil, porém não menos grandioso…
Era a mesma coisa em todos os acampamentos militares – ou assim parecia a Oret ao longo do último ano.
Ele era um cartógrafo trabalhando para o Comandante Faiso, um dos poucos humanos que a Soberana Dragoa Dromoka e seus senhores escamados respeitavam o suficiente para consultar sobre os assuntos bélicos. Assim, Oret tinha que ir e vir conforme seu comandante precisava. Ele cavalgara pela noite, e, enquanto passava pelo acampamento, era arrastado em direções opostas pela fome e pelo cansaço. Havia grupos de soldados amontoados ao redor de fogueiras, e o cheiro da carne cozinhando na gordura inclinou a disputa a favor da fome.
Ele desmontou em uma dessas fogueiras, onde os soldados estavam ocupados com uma discussão animada que Oret não tinha intenção de interromper. Ele sabia sobre o que eles estavam discutindo de qualquer forma: a Guardiã.
Oret encheu uma tigela âmbar com água e se sentou.
“Eu tenho visto espíritos. Até mesmo lutei contra eles,” disse um ainok de rosto sério. Quando ele falou, Oret percebeu que lhe faltavam vários dentes. “Eles são malignos e vingativos. Antinaturais.”
“Então explique o que eles viram,” disse uma jovem soldada.
“Não sei se consigo, não importa quantas vezes você insista nisso.” O velho ainok tremeu. “Eu não estava lá, nem você.”
A jovem soldada virou-se para a camarada à sua esquerda. “Yeffa! Você estava lá!”
“Você sabe que eu estava,” disse Yeffa, uma mulher robusta que deu um rápido sorriso ao ver a exasperação da amiga.
“Explique ao Khurz aqui o que você viu.”
“Não deveríamos estar falando sobre isso, Ajuf,” disse um quarto soldado. Era um homem magricela, a pele do rosto bronzeada pelo sol. Ele não olhou para os outros enquanto falava.
Yeffa gesticulou com a mão dispensando seu comentário. Para Oret, pareceu um gesto já bastante praticado, e ele observou enquanto a veterana se inclinava para mais perto dos outros. Yeffa estava sussurrando, claramente se deleitando com a emoção do que era proibido. “Embora eu estivesse do outro lado do campo de batalha, sei o que vi. De lugar nenhum, os gritos vieram, seguidos por salteadores sem conta, todos atacando nosso flanco esquerdo.”
Essa é uma contadora de histórias, Oret pensou.
“Antes que nossas forças pudessem fazer algo além de enfrentar o ataque,” disse Yeffa, “os Kolaghan iniciaram a carnificina. A linha começou a romper diante dos cascos de seus cavalos. E foi então que aconteceu.” Ela pausou para olhar seus camaradas nos olhos, um por vez. “Uma grande onda de areia se ergueu atrás da linha. Ela passou direto pelos nossos soldados para se quebrar sobre o inimigo.”
Khurz levantou as duas mãos para protestar, mas antes que conseguisse falar, Yeffa continuou, “’mas nós temos magos de areia que podem fazer essas coisas,’ vocês poderiam dizer. E a isso eu adicionaria que à frente dessa grande onda de areia estava a forma de uma mulher, com arma e armadura como um soldado de Dromoka. Esse não era um truque de magos de areia. Essa era a Guardiã.”
“E você viu esses detalhes do outro lado do campo de batalha?” Khurz estalou a língua. “Taram está certo, nós não deveríamos estar desperdiçando nosso tempo falando sobre isso.”
“Ela nos salvou, não importa o que você diga,” disse Yeffa.
“Tem outros que viram a mesma coisa,” disse Ajuf. “Em outras batalhas também. Até ouvi conversas de que ela curou soldados feridos e libertou prisioneiros capturados.”
Khurz soltou uma risada cavernosa. “E suponho que ela faça os ermos florescerem, e as tempestades amainarem também. Quem, então, é esse espírito que olha por nós?”
Houve um silêncio entre eles. Todos menos Taram pareceram pensar em uma resposta plausível, e se não chegasse a ser plausível, então que ao menos fosse inteligente. Sem encontrar nenhuma, Yeffa remexeu a lenha da fogueira com um galho. “Quem saberia dizer?” ela respondeu afinal.
Oret conhecia essas histórias. Ele as ouvia em cada acampamento em suas viagens. Elas o aqueciam mais do que o fogo diante de si.
“Eu posso dizer a vocês quem é ela.” Ele não sussurrou. As palavras vieram vivas e com o peso da autoridade. A forma como os soldados se viraram para Oret conforme ele falava lhe dizia que eles haviam se esquecido de que estava sentado ali. Para Oret era um pouco idiota pensar em si mesmo como um estranho misterioso. Mas era exatamente isso o que ele se tornara no ano anterior, vagando pelo território de Dromoka.
“E quem é você, estranho?” perguntou Khurz, finalmente.
“Eu sou quem matou esse espírito em vida.”
Os soldados se agarraram a cada uma das palavras de Oret que se seguiram.
Duas trilhas de poeira se juntavam em uma só atrás do par de íbex que corria a pleno galope, carregando seus ginetes vestidos com armaduras pelo fundo do cânion. Anafenza, que montava à frente, arriscou um olhar rápido sobre o ombro para procurar o aglomerado de inimigos que ambos estavam esperando que os alcançassem.
“Capitã! Nós os despistamos?” chamou Oret, sua voz carregada de tensão. “Eu acho que os despistamos.”
A cabeça da capitã se virou para o céu, onde nuvens escuras e inquietas se juntavam. “Improvável,” ela disse mais para si mesma do que para o outro ginete. As paredes do cânion se fecharam ao redor deles, e a capitã estimulou seu íbex a prosseguir.
“Nós deveríamos esperar por nosso senhor escamado. Ele interromperá a ofensiva deles.”
A capitã girou tão rápido que Oret quase foi jogado de sua sela em seu esforço de parar sua montaria. “Nosso senhor está ocupado com outras coisas no momento.” Ela apontou para cima, em direção às montanhas que se erguiam no extremo oriental do cânion. “No afloramento, está vendo?”
Oret o viu, seu senhor escamado, o dragão ao qual ele estava vinculado. O senhor escamado tinha um dragão menor de quatro asas enfiado sob seus braços enormes. Enquanto Oret olhava, relâmpagos irromperam da boca do dragão menor. Seu senhor escamado caiu para trás enquanto o outro dragão voava para longe.
“Ele está com problemas?” perguntou Oret.
“Ele está ocupado. Nós estamos com problemas.”
“Então estamos sozinhos.”
“Não exatamente. Siga-me.” E a capitã se foi novamente.
Oret ficou olhando por mais um momento para seu senhor escamado, preso em uma troca de poder que ele nunca compreenderia completamente. De trás dele vinha o estrondo de cavalos, e os gritos de zombaria dos salteadores, então ele também saiu dali. Oret seguiu sua capitã, que guiou o íbex através do caminho sinuoso que levou a dupla para as profundezas do cânion. Manter o ritmo dela se mostrou difícil, pois Anafenza quase desaparecia em uma curva aqui, ou repentinamente mudava de direção para disparar em direção a uma das incontáveis ramificações labirínticas do cânion. Aonde quer que ela os estivesse guiando, ao menos era para longe dos guerreiros Kolaghan. Oret havia servido sua capitã por muitos anos, e nunca a vira agir de forma imprudente. Sempre havia um plano, sempre havia alguma medida de contingência que provava que ela tinha considerado as ameaças e tomado as providências necessárias. Mas aqui estavam eles, sua fortaleza perdida e suas linhas rompidas, fugindo para salvar suas vidas diante do bando da horda Kolaghan.
Mais voltas. Mais caminhos estreitos. Os bradadores de guerra Kolaghan que estavam em seu encalço logo se dispersaram e gritos confusos ecoaram pelas paredes do cânion. Um sorriso se insinuou no canto da boca de Oret. Ele entendeu o que sua capitã estava fazendo. Na melhor das hipóteses, os Kolaghan perderiam o rastro da sua presa e errariam completamente a localização deles. Na pior, a capitã teria forçado os Kolaghan a dividirem suas forças para encontrá-los. Nos corredores estreitos do cânion, os dois até poderiam ser capazes de lutar para escapar.
A capitã deu outra virada abrupta para dentro de uma abertura na parede do cânion. Oret não a viu e cavalgou além dela antes de reduzir a velocidade para dar a volta. Ele abriu a boca para chamar sua líder, mas antes que as palavras saíssem, foi atingido repentinamente pelo gosto metálico em sua língua. O ar ficou seco de um jeito sobrenatural, e um zumbido crepitante encobriu todo o barulho, exceto pelo balido de pânico de seu íbex. Ele lutou com as rédeas em uma vã tentativa de manter o controle sobre o animal.
“Capitã!” Oret gritou, desesperado para sair dali. “Anafenza!” Ele bateu com as rédeas no flanco de sua montaria e ela disparou.
Um estalo se espalhou pelo ar. Depois de apenas três passos, o íbex balançou e caiu a meio-galope. Oret caiu com tudo de sua sela e sua mandíbula se fechou abruptamente quando o chão se ergueu para encontrá-la. Ele sentiu o gosto de sangue enquanto se arrastava para se abrigar atrás de seu íbex, que jazia sem vida com uma lança despontando de suas costas. Por todo o cabo, a energia elétrica ainda dançava, ondulando e escurecendo os pelos ao redor.
Outro eco ressoou pelo cânion. Este, o rosnado gutural de um caçador perseguindo sua presa. Oret viu um orc Kolaghan empoleirado sobre a borda de uma rocha plana que aflorava da metade do caminho até a parede do cânion. Ume rede de relâmpagos se espalhava de seu manto para completar a aparência de asas formidáveis, brilhantes contra as agitadas nuvens escuras acima dele.
O orc rugiu mais uma vez, dessa vez formando um som que Oret conseguiu discernir. “Gvar!”
Oret conhecia aquele nome. Gvar, o orc que liderara o ataque ao Portal da Estepe Arenosa. Sob as sombras das asas de Kolaghan, Gvar havia investido contra as muralhas, desalojara seus defensores e fizera os sobreviventes irem para o deserto.
O grito do guerreiro chamaria Gvar para acabar com os dois soldados remanescentes da guarnição.
Mas o orc não esperou por seu líder e, ao invés disso, pulou na direção de Oret.
Havia tempo suficiente para Oret se colocar de pé ou para sacar a espada, não para fazer os dois. Oret se levantou, e o salteador já estava sobre ele. Um poderoso corte para baixo pontuou seu grito de guerra, mas Oret desviou de modo que o golpe passou de raspão em uma de suas ombreiras. Ele diminuiu a distância até o orc e, antes que seu atacante pudesse se recuperar, arremessou todo o seu peso revestido em armadura para frente, levando ambos ao chão em uma nuvem de poeira e xingamentos.
O salteador Kolaghan se contorceu até que seu cotovelo pressionasse a garganta de Oret. O sangue brotou em sua boca, mas ele não podia engolir. Ao invés disso, cuspiu no orc um spray vermelho. Foi o suficiente para se libertar. E então ele ouviu a voz de sua capitã.
“Oret, mexa-se,” disse Anafenza.
Era um comando simples, e Oret o obedeceu. Ele se afastou do salteador, mas o orc se recusou a desistir. Anafenza deu um passo à frente, envolta em uma brilhante luz branca e dourada, e a areia ao redor dos seus pés ondulou como se estivesse viva. Ela estendeu a mão, e a luz rodopiante se enrolou em seu braço e espiralou para fora em direção ao orc. Anafenza o atravessou, puxando dele enquanto passava algo invisível, porém vital, deixando-o sem vida na poeira.
Assim que o corpo caiu, as paredes do cânion foram novamente despertadas pelos sons da batalha. O som de cascos e gritos de guerra explodiram, ficando mais altos a cada momento que passava.
“Capitã?”
“Por aqui,” disse Anafenza, indicando o caminho estreito atrás de si. “Gvar e sua horda chegarão aqui em breve. Nós precisamos estar prontos para eles.”
A dupla estava a pé, correndo com cuidado suficiente apenas para evitar prender o tornozelo no solo de pedras soltas. Seguindo Anafenza, Oret entrou em uma câmara comprida que era envolta quase completamente pela parede descascada do cânion. A única saída era o caminho por onde eles vieram.
“Um beco sem saída,” disse Oret.
“Isso também é uma coisa boa,” disse Anafenza. Ela estava desamarrando as botas. “Será mais difícil eles fugirem.”
Nervoso, Oret andou de um lado para o outro pelo perímetro da câmara. Ele encontrou o íbex de Anafenza amarrado a uma pequena árvore retorcida, bebendo água de uma tigela de âmbar. A árvore humilde estava parcialmente escondida na sombra da parede. Espalhados por todos os lados ao redor da árvore, Oret viu fragmentos de âmbar. Aos seus olhos, muitos dos fragmentos já haviam se encaixado para formar um número incontável de recipientes, estatuetas e ornamentos. Oret se ajoelhou e pegou um fragmento, um remanescente de algum jarro antigo intrincadamente trabalhado.
“O que é isso, Capitã?”
“Âmbar é uma substância especial, Oret. Os recipientes vazios aos seus pés serviam a duas funções. Como qualquer recipiente, eles armazenavam água. Mas por serem feitos de âmbar, uma substância das árvores, também podiam armazenar espíritos.”
Oret largou o fragmento de âmbar como se ele estivesse pegando fogo. “Capitã, por favor, nós não deveríamos estar aqui.”
“Eu quero te mostrar uma coisa,” Anafenza disse calmamente enquanto passava por ele. Ela ficou parada junto à árvore, e Oret obedeceu com cautela. Anafenza segurou a mão dele e a colocou sobre o tronco descascado. “Agora olhe mais de perto.” Oret se inclinou na direção da árvore. Seus olhos se estreitaram na escuridão crescente, mas ali, entalhados na superfície do tronco, estavam dezenas, senão centenas de nomes.
Oret se encolheu. “Nomes amaldiçoados?”
“Foi a primeira coisa em que pensei também, mas comecei a acreditar em algo diferente. Muitas pessoas percorreram longas distâncias para trazê-los aqui. Espíritos podem ser carregados em âmbar, mas eu acredito que a árvore funciona como uma âncora para eles.”
“Você já esteve aqui antes?”
“Muitas vezes.”
Anafenza se agachou na base do tronco, limpando a areia até que os arcos formados pelas raízes se revelassem. Ela se ergueu e colocou os pés descalços sobre as raízes. “Agora, Oret, fique atrás de mim. Você vai ver algo fantástico.” Ela deu um sorriso rápido para ele, o primeiro que Oret via desde o ataque ao Portal da Estepe Arenosa.
“Não posso fazer isso, Capitã.” Oret sorriu em resposta. Era um sorriso triste. Sua capitã – sua prima – morreria ali. Ele morreria ali. Mas não sem resistência. Ele sacou a espada.
Não demorou muito para que os Kolaghan os alcançassem. Os gritos de provocação recomeçaram antes mesmo de eles poderem ser vistos.
“Vamos torcer para que toda essa corrida tenha deixado força suficiente para uma luta.” No momento em que as palavras foram proferidas, o corpo enorme de Gvar entrou na câmara. “Eu sou Gvar Barzeel, aquele que despedaçou seus portões e derrubou suas muralhas.”
Anafenza desembainhou a espada curva de duas mãos que ficava pendurada nas suas costas. “É por ser Gvar Barzeel, aquele que despedaçou nossos portões e derrubou nossas muralhas, que você não sairá desse lugar.”
Dezenas de guerreiros Kolaghan se amontoaram dentro da câmara atrás de Gvar. Havia xamãs entre os combatentes, e eles começaram a invocar relâmpagos que estalaram para a vida no meio do bando.
Sempre calma, Anafenza tirou o elmo e estendeu a mão para tocar um galho retorcido. “Espíritos desta árvore, ancestrais do meu povo, seus descendentes precisam de vocês.” Não era a primeira vez que ela dizia aquelas palavras, Oret tinha certeza, e, assim que foram pronunciadas, o ar parado da câmara começou a se mover. A areia se ergueu e minúsculos pontinhos dourados de âmbar se elevaram com ela. Por um momento, os guerreiros reunidos no extremo oposto da câmara silenciaram suas provocações.
Embora Anafenza mal estivesse visível através da tempestade de areia, Oret ainda podia ouvir sua capitã, que disse, “Oret, fique atrás de mim.” E Oret foi até o outro lado da árvore, protegendo o rosto tanto quanto possível.
Ele estava puxando o íbex de Anafenza para si quando viu silhuetas humanas tomarem forma na areia. Não eram formas sólidas, ainda que algumas parecessem vestir armaduras à moda dos ancestrais. Os olhos de Oret se arregalaram.
Espíritos.
A revelação roubou a saliva restante em sua boca.
Necromancia.
Anafenza respirou profundamente. Seus pulmões se encheram com areia e âmbar, e os espíritos espiralaram até ela. Eles se fundiram com Anafenza, até que ela se tornou um borrão de luz âmbar. Anafenza tirou os pés das raízes, deu mais um passo à frente e um instante depois estava entre os Kolaghan.
Ela era um amontoado horripilante de braços e pernas de espíritos raivosos e vingativos. Areia e pó se moveram em enormes camadas ondulantes, alimentadas por uma corrente infinita de espíritos que continuavam emergindo da árvore. No meio do tumulto, Oret conseguia localizar Anafenza pelos lampejos de sua espada e pelos gritos que ela arrancava dos Kolaghan enquanto se movia entre eles.
Gvar, os xamãs, todos os salteadores Kolaghan – nenhum deles teve a menor chance.
Durante a carnificina, as nuvens de tempestade aumentaram. Quando Anafenza alcançou e cortou o último dos guerreiros de Gvar, um relâmpago partiu o firmamento, um trovão estremeceu o cânion e as nuvens derramaram seu conteúdo. Dragões da prole Kolaghan desceram dos céus.
Oret estava preso entre o horror feito de espíritos e a morte diante de si, e os horrores nascidos com quatro asas sobre ele.
O dragão que liderava fechou suas quatro asas emplumadas e caiu em um mergulho na direção da capitã de Oret, agora encoberta por espíritos. Não houve hesitação, nenhum momento de pânico ou de medo. Anafenza simplesmente olhou para cima e, todos de uma vez, os espíritos dentro dela riscaram os céus em direção às nuvens para confrontar o dragão. Eles se moveram como um enorme raio de luz dourada, e diante do seu avanço o dragão tentou reverter seu curso. Mas era tarde demais, pois o raio atravessou escamas, carne e osso.
Oret viu espíritos se separarem para devorar o resto do monstro, e os dragões restantes se dispersaram de volta para a segurança das nuvens.
A poeira e a areia da câmara se assentaram novamente no solo. Totalmente exausta, Anafenza desmaiou.
Levou um momento para Oret perceber que a sequência de ameaças se fora. Lentamente, ele foi até onde sua capitã estava caída, imóvel. O ar fazia barulho nos pulmões dela. Esse som tanto perturbou quanto aliviou Oret. Os olhos de Anafenza se arregalaram, mas suas pupilas tinham rolado para a parte de trás de sua cabeça, deixando apenas um par de globos brancos e vítreos no lugar.
“Anafenza,” Oret sussurrou.
Mais ar passou pelos pulmões dela, de modo fraco e áspero.
Oret colocou a mão sobre o ombro dela, e gentilmente a sacudiu. “Anafenza,” ele disse de novo. E de novo, mais alto, “Capitã!” Ele queria desesperadamente ajudá-la, e, na falta de outra opção, procurou algum ferimento, alguma evidência de dano físico que pudesse fechar e curar. Mas não havia nada. Não era um corte de espada ou uma perfuração de flecha.
“Oret.” A palavra veio como um sussurro rouco.
A expressão de Oret se transformou em um sorriso. Ele olhou para baixo e viu Anafenza olhando de volta para ele.
“Você vê?” ela perguntou.
“Não se esforce demais, Capitã.”
“Eu estou bem,” ela disse apoiando-se nos cotovelos. “Sério. Só preciso de um momento.”
“Capitã, eu nunca tinha visto algo assim.”
“Nem eu. Eu nunca tinha sentido algo assim.” A voz dela estava voltando ao normal, e Anafenza começou a falar com pressa. “Oret, tantos ancestrais, todos unidos por um propósito em comum: defender seus descendentes, seu povo. Não era por política. Não era uma manobra para conseguir a proteção de um dragão. Era algo puro, e era poderoso.”
Um sopro de ar repentino agitou a areia, e eles sentiram a pressão no ar em seus ouvidos. Batidas de asas. Se não houvesse nuvens, uma sombra enorme teria preenchido a câmara comprida do cânion onde, sob seu peso imenso, a árvore anciã se partiu em pedaços. E com ela, o último farrapo de obediência de Anafenza.
“Ele viu,” Anafenza disse através dos dentes apertados. Mesmo quando Oret curvou a cabeça, ela olhou diretamente nos olhos do dragão.
“Capitã, por favor,” Oret disse. “Agora não.” Mas ele sabia, e tinha certeza de que Anafenza sabia. O preço de invocar espíritos, da prática de necromancia, era a morte. Seu senhor escamado abriria a boca e dela sairia uma explosão de luz pura que arrancaria todas as camadas de seu ser até que nada dela restasse. Nem mesmo um espírito.
O dragão jogou a cabeça para trás, e Oret se colocou entre seu senhor escamado e sua capitã.
“É assim que as coisas são, Oret,” Anafenza disse, “saia do caminho. Não tem como fugir disso. Minha vida está perdida por causa do que eu fiz.”
Oret continuou onde estava. “Meu soberano,” ele disse, se colocando de joelho diante do dragão, “eu lhe suplico, com todo o respeito de um de seus humildes filhos, que me conceda um único pedido.”
Dragões não se rebaixam a falar o idioma das pessoas. Quando falam, suas palavras dragônicas passam primeiro por porta-vozes. Ali, no cânion, não havia alguém para traduzir, e o único indício de compreensão que Oret teria seriam as ações do dragão. Era uma perspectiva que lhe apertava o estômago.
“Minha capitã praticou necromancia,” ele continuou. “Uma afronta que deve ser punida.” Oret engoliu. “Por favor, meu senhor escamado, permita-me ser aquele que a executará.”
O olhar do dragão passou de Oret a Anafenza, e finalmente de volta a Oret, para quem ele fez um movimento para baixo com a cabeça. Foi um gesto que Oret entendeu como um assentimento. Seu pedido fora concedido.
Anafenza não fez nenhuma menção de fugir, e Oret se permitiu um olhar momentâneo na direção dela. Ela estava calma, como sempre. Anafenza se ajoelhou para receber seu julgamento, e quando ele se curvou para pegar a espada de duas mãos dela, ela se virou para lhe lançar um sorriso.
O couro na empunhadura da espada de Anafenza estava coberto de areia, fazendo com que fosse difícil de segurá-lo.
Anafenza tinha invocado os espíritos da árvore para protegê-los. Ela chamara os espíritos dos ancestrais, e através das eras esses anciões encontraram um vínculo em comum e emergiram para lutar contra os inimigos de seu povo. Anafenza descobrira aquele vínculo. Ela era guiada pela mesma causa que eles.
Oret ergueu a espada sobre a cabeça dela. “Esse não é o fim,” ele sussurrou para sua capitã. Um momento depois, estava feito.
Taram cuspiu no fogo. “A justiça foi feita. Agora já ouvi o bastante. Se você vai continuar falando sobre necromancia o dia todo, então eu vou embora.” Ele se levantou e caminhou para longe na luz fraca da manhã.
“Eu não entendo,” disse Ajuf, ainda petrificada. “Esses espíritos te salvaram. Ela te salvou. E você matou ela por isso.”
“Matei,” Oret disse, “e foi uma honra. O sangue estava se juntando em volta do corpo sem vida da minha capitã, e eu me ajoelhei diante do meu senhor escamado para receber sua graça.”
Ele continuou. “Quando cheguei à cidade de Kavah, fui recebido como herói. Fui promovido à patente de capitão de patrulha, honrado com o título de cartógrafo e, com isso, uma vida no exílio. Mas eu fiz bom uso do meu exílio e logo minhas andanças me levaram de volta ao cânion. Nada restou do corpo de Anafenza. O deserto garantiu isso. Mas não foi por ele que eu fui até lá. Entre os restos da árvore estavam todos aqueles pedaços de âmbar que tinham carregado espíritos de ancestrais até aquele lugar. Eu coloquei minhas esperanças neles e vasculhei as areias por cada pedaço de âmbar que consegui encontrar.”
Oret bebeu o resto de sua água. “O cartógrafo do Comandante Faiso tem a distinta honra de guardar os mapas oficiais do território, e com esses mapas eu achei o meu destino. Meses de viagem me levaram a um trecho extenso de terra árida e rachada. No horizonte, eu vi as ruínas de uma fortaleza desmoronada que sabia que encontraria. Entre eu e a fortaleza, chegando ao ponto mais alto de uma pequena colina, estava uma árvore ancestral. Eu comparei a árvore distante a uma anotação equivalente no meu mapa. Todas as árvores no território de Dromoka estão anotadas nos mapas como indicativos de água, mas os ramos sem folhas daquela árvore nunca seriam capazes de fornecer conforto a viajantes. Não havia nada lá. Era perfeito.
“Quando alcancei a árvore, esvaziei minhas bolsas de todos os pedaços que tinha levado do cânion e os espalhei ao redor do tronco em um anel. Eu não tinha ideia se estava fazendo do jeito certo, mas se o âmbar realmente era um recipiente para os espíritos, então Anafenza tinha que estar em um daqueles pedaços.
“Onde o tronco desaparecia na areia, eu cavei. Com minha faca, escrevi o nome dela na madeira viva, e, quando terminei, empurrei a areia de volta para o lugar. Era para ser a árvore de Anafenza. Uma árvore que não seria despedaçada, ou queimada, ou arrancada. Seria a âncora dela.”
“Inacreditável!” disse Ajuf.
“Eu concordo. Não sei se acredito em uma palavra do que você disse,” falou Khurz. Foi a vez dele de se levantar para ir embora. Mas antes que se fosse, “onde fica essa árvore então?”
“Minha resposta não te convenceria da verdade do que eu disse,” Oret falou com um sorriso, “porque todos os registros dessa árvore em cada um dos mapas oficiais foram destruídos.”
“É claro que foram.” Khurz emitiu um silvo agudo de descontentamento. “E agora você viaja pelas nossas terras contando essa história?”
“Acredite no que quiser. O sucesso da minha jornada não ficou evidente para mim até que contos como o de Yeffa começaram a surgir. Para Anafenza, tudo era em nome do clã. Na morte, o fervor dela se recusou a desaparecer. Eu agora viajo pelo nosso território para contar a verdade. Ela é, como Yeffa disse, uma guardiã.”
Traduzido por Alysteran
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